Ainda está por ser sonhada a criação de uma Ordem dos Editores, uma guilda reunindo essas figuras que se tomam tantas vezes por supremos pedagogos, soberanos de Estados meio à deriva, cheios de riquezas e de atracções, tantas vezes revelando mais promessa como exílios, praças distantes de impérios encalhados à margem da História ou navios fantasmas colecionando manuscritos lançados ao mar em garrafas.
Falta também um museu que nos guie entre as simpatias e diferenças de cada um desses personagens que se imaginam a assumir o papel de autênticas instituições literárias. E embora seja difícil imaginar os moldes em que uma organização desse género pudesse funcionar, teria certamente alguma utilidade não só para estabelecer estratégias comuns ou planos de contingência em alturas críticas como a actual, como para dirimir disputas, conter o nível das calhandrices cometidas entre os seus membros, os calotes em todas as direcções. Os antagonismos são mais que muitos, como se sabe.
De resto, também poderia impor-se um exame de admissão, até para garantir um nível mínimo de consciência e conhecimentos sobre esta tão subtil forma de penetração no imaginário. Nesta lógica, Hugo Xavier poderia bem ser proposto como secretário-geral da Ordem, não só pela experiência como por ser desses que, como ficará claro na leitura desta entrevista, estão de tal modo comprometidos com o destino da edição que, no caso de um naufrágio, hão-de preferir ir ao fundo com ela.
Nascido em 1976, o co-fundador da E-Primatur, a primeira editora, entre nós, a aplicar o modelo do crowdfunding a um projecto cultural, tinha já estado na origem de um outro selo marcante da nossa edição literária – a Cavalo de Ferro –, e passou também pela Babel, assistindo à derrocada dessa forma de soberba ignorante que tem tentado aplicar ao mundo editorial as receitas do mundo dos negócios, que tomam o público por uma entidade vasta e amorfa, sem levarem em consideração o facto da leitura ser um acto solitário, tal como o pensamento, o que segundo nos diz o editor italiano e escritor Roberto Calasso, pressupõe a obscura e desacompanhada escolha de uma pessoa singular.
Em actividade desde 2015, de forma discreta e empenhada, a E-Primatur tem vindo a construir um catálogo que só embarca em delírios já testados, náuseas vigorosas, com tradição, hálitos que dificilmente apodrecem. Desde clássicos fundamentais como “As Mil e Uma Noites”, passando pela reedição de clássicos da ficção há muito esgotados, como os romances de Charles Dickens, entre outros nomes menos constantes mas não menos inquietantes, como August Strindberg ou Hermann Ungar, além das reedições de clássicos portugueses há muito esgotadas, seja Camilo ou mesmo Camões, merecendo destaque ainda a recuperação das obras de Bernardo Santareno, Mário-Henrique Leiria ou Vilhena. Agora acaba de editar “Os Sete Pilares da Sabedoria”, de T.E. Lawrence, livro de um fôlego, de uma vastidão, e que combina tantos géneros, que é difícil descrevê-lo sem gaguejarmos.
“Os Sete Pilares da Sabedoria” tinha já sido editado em 1989, pelas edições Europa-América. O que é que vos levou a reeditar este livro?
A pessoa que assumiu esta iniciativa foi o meu sócio Pedro Bernardo, que foi durante anos editor das Edições70, responsável pelas ciências sociais e humanas. Era um livro que, dentro da área da História, poderia ter integrado aquele catálogo, mas, uma vez que aquela editora está integrada no grupo Almedina, e sendo que a tradução do livro seria bastante cara, esta nunca foi autorizada. Portanto, este era um sonho antigo do Pedro. De resto, a edição que existia da Europa-América estava esgotada. E, embora não a tenha lido, nesse período a fama das traduções dessa editora não era a melhor. Ora, tratando-se de um clássico, importante não só em termos históricos, em termos de encontro de culturas, é uma obra que fazia todo o sentido no catálogo da E-Primatur, editora cujo objectivo é a publicação de clássicos nos diversos campos do saber.
A tradução foi proposta por vocês ao Marcelino Amaral?
É um tradutor e revisor que trabalha há muitos anos para as Edições70, com trabalho nas áreas das ciências sociais e História, e sendo um projecto acarinhado desde esse tempo, o Pedro Bernardo propôs-lhe ser ele a fazer a tradução.
E quando lhe foi proposta a tradução?
Julgo que foi em Maio do ano passado. Inicialmente, contactámos a Europa-América, a perguntar se nos queriam vender a tradução deles, sendo que depois faríamos um cotejo com o original… Falámos com o Leão de Castro, e ele disse-nos que não, que a tradução era propriedade da editora e que não autorizavam nenhuma reedição.
E o Marcelino Amaral demorou apenas um ano a fazer a tradução?
Sim. Nestas coisas, um tradutor faz mais ou menos um rácio de 100 páginas por mês. Obviamente, este livro demorou um pouco mais porque coloca alguns problemas de investigação, seja termos técnicos, nomes de tribos, lugares, e que levantam alguns desafios.
Embora seja um projecto de estimação do Pedro Bernardo, o que é que te ficou de marcante da aproximação a esta obra?
Este livro desdobra-se a vários níveis. À distância de quase um século, num dos capítulos, que são quase sempre bastante breves, ele explica todo o contexto para aquilo que está hoje a ocorrer na Síria. São três páginas, e ele dá-nos ali uma perspectiva resumida e que nos permite perceber o desencadear dos acontecimentos desde então.
A referência que a maior parte das pessoas têm para esta obra é o filme “Lawrence da Arábia”. Como é que comparas um e o outro?
O filme é, obviamente, uma adaptação muito condensada, mas é uma boa adaptação. O livro tem oitocentas e muitas páginas, nalgumas edições inglesas chega perto das mil, e é uma obra muito detalhada… O Lawrence não só vai dando ao leitor um relato histórico como o vai submergindo na sua aventura e experiências. Ao mesmo tempo que nos explica as intrigas, o motivo dos ódios entre as diferentes tribos e facções, vai ainda dando conta do desenrolar dos acontecimentos, enquanto nos diz aquilo que lhe foi pedido pelo governo britânico, a ele e aos outros oficiais, sendo que, em traços gerais, a ideia era aliar as diferentes facções do mundo árabe para fazer frente ao domínio otomano, portanto, turco. E isto porque os turcos eram aliados dos alemães. Embora, o filme seja bastante longo, o livro tem um alcance espantoso, tocando nos aspectos culturais, históricos e humanos. Até se debate com as questões de linguagem… O Lawrence sabia árabe, mas depois, ao deparar-se com as variantes usadas por cada tribo, tudo isso ganha relevo, e consegue ser assim um livro de aventuras, uma descrição da guerra e dos conflitos intermitentes, das tensões regionais, por isso, é um contributo notável para a compreensão do outro, para dar ao relato histórico aquele grau de complexidade que nos faz perceber o que está em causa quando se discute o Médio Oriente. E se, naquele tempo, o conhecimento sobre aquela região quase se limitava aos livros, e remontava ao período da Antiguidade Clássica, ele mostra-nos o que é uma realidade degradada, quando as divisões estavam a ser regadas a combustível pelos otomanos, a quem interessava elevar a tensão entre as tribos, para evitar o aparecimento de uma frente comum que se lhe opusesse, e tudo isso nos informa sobre o fracasso das intenções das altas esferas do poder britânico, e acaba por nos mostrar, com um detalhe que escapa ao filme evidentemente, porque razão o Lawrence e aqueles povos se vieram a sentir traídos, porque as promessas do governo britânico acabam por não ser cumpridas. O objectivo do Lawrence era, portanto, explicar ao público britânico de que forma o seu governo traiu um outro povo.
Este livro foi sujeito, como acontece com a maioria das vossas edições, ao processo de crowdfunding, que é, no fundo, uma lógica de cooperativismo no financiamento. E como é que correu neste caso?
Bastante bem. Temos vindo a crescer no número de apoiantes. Em Portugal, não há qualquer tradição de usar este processo no sentido de apoio a projectos na área cultural. Existe mas é, sobretudo, voltado para a área da beneficência, campanhas de solidariedade, etc. Sabíamos à partida que nunca nada estaria garantido, e, por isso, reservámos sempre a possibilidade de completarmos o valor em falta com o investimento da editora. Neste caso, tivemos cerca de dois terços dos apoiantes necessários para custear a edição.
Isso quer dizer que foram quantas as pessoas que apoiaram este livro?
A edição precisava de 172 apoiantes, e atingiu 109.
E, assim, as pessoas compraram o livro a que preço?
Dois terços do valor final, que é 24,90€.
Mas vocês têm uma espécie de fraqueza em relação a qualquer outra editora que é o revelarem de antemão as vossas apostas, o que vos torna alvos expostos à canibalização editorial.
Absolutamente, é um risco que nós corremos. Já nos aconteceu inclusivamente abandonar alguns projectos (estou a lembrar-me de pelo menos três casos), por terem aparecido depois edições noutras editoras. Isso obriga-nos a devolver o dinheiro aos apoiantes e recomeçar o processo com uma outra obra. Sendo o nosso propósito colmatar lacunas na edição portuguesa, e não propriamente o estar a concorrer, até porque há tanta coisa por fazer, tantas obras da literatura universal que não estão publicadas entre nós, que não me parece ser esse o caminho.
Antes do aparecimento da E-Primatur, em 2015, quando é que começaste a trabalhar no campo da edição?
Quando ainda estava na universidade, comecei a trabalhar num clássico da edição portuguesa, no bom e no mau sentido, que foi a Vega. Foi lá que conheci o Diogo Madredeus e, quando saímos passado um ano e meio, no final de 2001, fundámos a Cavalo de Ferro.
Dizes que a Vega era um clássico no bom e no mau sentido… Porquê?
(Risos) Falar na Vega é falar no Assírio Bacelar…
Que já tinha estado na origem da Assírio & Alvim.
Sim, é quem dá um dos nomes à Assírio & Alvim, e é um editor que, no pós 25 de Abril, foi expulso da sua editora pelos trabalhadores porque em questões de pagamentos e de cumprimentos dos compromissos não era das pessoas que tinha o comportamento mais lícito deste mundo, ou sequer do outro, e continuou toda a sua carreira pelo mesmo padrão. De resto, quem quiser fazer um trabalho sobre a Vega, será engraçado ver que esta Vega é para aí a trigésima encarnação de uma mesma empresa. Aquilo foi Vega, Nova Vega, Vega Publicações de Revistas e Não-sei-quê…
O que estás a dizer é que ele extingue por falência uma editora, para se desembaraçar de dívidas, e cria uma nova, para voltar ao mesmo.
Exactamente. E tem um catálogo à moda do Luís Oliveira, da Antígona. Ou seja, um catálogo que muito raramente pagou direitos pelas obras que editava.
Uma das coisas que se ouve nos bastidores da edição é que, lá fora, têm a edição portuguesa como um bando de caloteiros, e, por isso, muitas vezes recusam-se até a negociar direitos.
Dou-te um exemplo muito concreto disso. No primeiro ano em que fui a Frankfurt, tive uma reunião com uma veterana dos direitos de autor, que era a responsável pelos autores estrangeiros do grupo Seuil, que era a Martine Heissat, e esta senhora, que tinha já sessenta e tal anos, depois de lhe explicarmos o que era a Cavalo de Ferro, e que tínhamos interesse em publicar clássicos contemporâneos, pega na sua backlist, para nos mostrar uma série de grandes autores cujos direitos ela detinha, e começa a dizer este, aquele, o outro… E eu olhei para o Diogo Madredeus, e ele para mim, e depois interrompemos a senhora para lhe dizer que todos esses autores estavam já publicados em Portugal. Que este estava na Presença, aquele na Europa-América… E a senhora, estupefacta, diz-nos: “Mas como é que isso pode ser, se não temos nenhum contrato para Portugal com essas editoras?” E estavam lá todas: a Dom Quixote e tantas outras que vieram a integrar depois a Leya, entre outras.
Mas nem essas editoras maiores pagavam direitos?
Sim, sim, isso é um clássico da edição em Portugal. Isso prende-se com uma questão cultural simples. Como sabes, o pós-25 de Abril levou à falência de uma série de editoras. A Portugália, a Estúdios Cor, a Ulisseia, etc. Eram editoras que tinham catálogos bem compostos e que cumpriam os seus compromissos. Ora, o pós-25 de Abril deu azo ao surgimento de uma série de editores que, sob a capa da defesa da cultura, e, citando o Assírio Bacelar, “em prol do povo e da difusão cultural”, basicamente se estavam nas tintas para qualquer tipo de compromisso. Isso foi uma questão histórica que se proporcionou e se manteve. Também levou a uma consequência muito simples: no resto da Europa, e confirmas isso se tentares negociar direitos de autor, os avanços a título de direitos de autor que pagas andam geralmente à volta dos 40 a 60% daquilo que vais imprimir na primeira edição. Em Portugal, como as editoras estrangeiras já sabem que raramente irão conseguir receber alguma coisa dos direitos e das vendas futuras, os avanços andam à volta dos 60 a 80%, e, por vezes, até mais. Portanto, ou pagas à cabeça ou não há contrato. E isto é a única maneira de eles se protegerem. Isto foi-me dito pela Martine Heissat, foi-me dito pela Maryvonne Le Doucen, que foi durante 40 ou 50 anos directora dos direitos estrangeiros da Gallimard.
Quanto tempo estiveste na Cavalo de Ferro?
A editora foi criada no final de 2002 e saí no começo de 2009.
E quando tu e o Diogo Madredeus saíram da Vega foi porquê? Também não estavam a ser pagos?
As condições eram péssimas. A fama do Assírio Bacelar era de tal ordem que parecia que estávamos a negociar com os autores como se fôssemos capangas. Mas essa realidade era comum a toda uma escola de editores que surgiram depois do 25 de Abril.
Chegaram-me também testemunhos, inclusivamente de tradutores, de que também a Cavalo de Ferro, antes de ser comprada pelo grupo 20|20, deixou de pagar e cumprir as suas obrigações…
Eu já não acompanhei essa fase. Porquê? A Cavalo de Ferro teve um problema grave em 2008, e que levou à minha saída no começo de 2009. Nós éramos uma editora de fundos, o que significa que os nossos livros estavam todos colocados no mercado… É claro que na altura havia mais livrarias de fundos do que há hoje em dia. Ou seja, livrarias que não viviam sobretudo da venda das novidades editoriais. Assim, os nossos livros estavam colocados no mercado em consignação ou, muitos vezes, a conta firme, com direito a devolução. E o que aconteceu foi que, naquela altura, éramos distribuídos pela Oficina do Livro, que nos distribuía juntamente com o seu catálogo porque, dessa maneira, conseguiam entrar em livrarias que de outro modo não teriam interesse no catálogo deles. A certa altura, fora do período normal das devoluções, que aconteciam ali por volta de fevereiro ou março, em 2008, de repente recebemos o aviso de que iriam vir mais algumas devoluções, mas não foram só mais algumas, foram todos os nossos livros. Ou seja, qualquer coisa como 400 a 500 mil euros de stock.
Mas a que é que isso se deveu?
Isto é simples e eu explico-te já. Passado dois meses percebemos o que tinha acontecido, quando foi anunciado que a Oficina do Livro tinha sido comprada pela Leya. Ou seja, o que eles fizeram a todos os editores que distribuíam foi não devolverem os livros no período regular, ficaram com créditos em vez de débitos, e, portanto, venderam-se por muito mais dinheiro à Leya do que valiam na realidade. Quando isto depois deveria ter sido recuperado, e a situação regularizada, rebenta a crise económica de 2008. O que sucedeu, então, foi que nós, que éramos uma editora bastante equilibrada em termos das nossas contas, vimo-nos diante de uma série de problemas, a começar por um buraco enorme em termos financeiros, e a retoma que esperávamos nunca veio a ocorrer porque o mercado quebrou em cerca de 30% em termos de vendas e colocações. Ora, sendo nós uma editora de fundos, o que aconteceu é que já não voltámos a conseguir o mesmo espaço no mercado. Depois disso o espaço já não era o mesmo, até porque as livrarias não voltaram a comprar tantos livros. O que também levou à minha saída na altura foi o facto de ter surgido, perante essa situação, duas perspectivas muito diferentes entre mim e o Diogo quanto ao que deveria ser a nossa resposta nesta nova fase da editora. O Diogo tinha então uma capacidade financeira que lhe permitia recuperar a editora, mas queria seguir por um caminho em que, no fundo, a Cavalo de Ferro continuaria a ser como até ali tinha sido, ao passo que eu queria criar um mecanismo que permitisse à editora ter uma variedade maior em termos do catálogo para não estarmos tão dependentes de um certo perfil de leitores. Isto também para precaver enrascadas como aquela em que nos vimos metidos. Portanto, saí. Pelo meio, ainda houve uma tentativa de venda àquele projecto que, veio-se a saber depois, não passava de um bando de burlões, e que era a Fundação Agostinho Fernandes…
Nunca ouvi falar disso…
Foi um esquema que apareceu aí e que supostamente tinha comprado a livraria Bucholtz, supostamente comprou a Sá da Costa e outras mais, mas depois veio-se a saber que era uma fachada, e não havia nada ali por trás. Supostamente era dirigida pelo Dinis Nazaré Fernandes, o neto do Agostinho Fernandes, fundador da Portugália, portanto o grande industrial português dos anos 1930/40. Só que depois viemos a saber que esse neto tinha fugido de Portugal porque estava envolvido em vários processos de burla, depois a nível internacional tinha ficha na Interpol, tudo por esquemas assim… Felizmente, apenas tínhamos assinado um contrato de promessa de compra e venda, mas com bastantes protecções para o nosso lado, e, como do lado dele não houve cumprimento, ao fim de dois ou três meses libertámo-nos dessa situação. Os outros ficaram lá e foi isso o que levou à situação dramática da Sá da Costa, ao passo que a Bucholtz acabou por ser vendida à Leya, e assim por diante.
Com este tipo de histórias dava para fazer “Os Sete Pilares da Edição Portuguesa” só a descrever o processo de trafulhices pegadas na forma como este sector tem andado para trás e para a frente sempre com personagens indigestas à mistura.
O triste é que a edição portuguesa tem sido isto nas décadas mais recentes. Cronologicamente, parece que associei este fenómeno ao 25 de Abril, mas quero frisar que, se a revolução deu margem a este tipo de situações no meio editorial, deu a mesma margem a empresas noutros sectores, a começar pela construção civil. Mas isto é o que acontece com qualquer mudança de regime em qualquer país. Ou seja, há sempre um conjunto de oportunistas que se aproveitam do ambiente de euforia para abusar de um certo relaxamento das regras. Muitas vezes as próprias regras do jogo são reescritas e não é invulgar que aqueles que procuram participar nesse processo tentem beneficiar-se. Mas não quero que fique a ideia de que isto se prende com viragens à esquerda ou à direita, são apenas situações em que, face à derrocada de um sistema, aparece quem se aproveite para fazer-se valer dos despojos.
Falaste numa quebra de 30% nas vendas de livros depois da crise de 2008…
Sim, no segundo semestre. Quando rebenta a crise económica, isso verificou-se mas para as editoras que apostavam na venda de livros de fundo. Isto no que toca ao quadro real, porque como nós sabemos, o que depois nos é apresentado em termos de estatísticas e dados são sempre representações risíveis. Eu recordo aquela estatística que saiu no ano passado e que dizia que 47% dos portugueses leem livros e que 53% só não lia porque não tinha tempo. Portanto, se os portugueses tivessem tempo nós teríamos claramente 100% da população portuguesa a ler livros. Isto para dizer que em Portugal nunca houve nem estatísticas nem dados que nos dessem uma perspectiva realista do que se passa no sector editorial ou livreiro, como não o há em tantos outros sectores ou esferas da vida portuguesa.
Gostava que comparasses os efeitos da crise de 2008 com os efeitos da crise actual. Não havendo ainda uma previsão sobre quando esta crise poderá ser ultrapassada ou sequer se estamos perto de conceber o seu impacto a médio e longo prazo, mas uma vez que anterior crise teve um impacto tão significativo na tua vida, gostava de saber como te parece que o meio editorial e livreiro irá reagir agora?
Por acaso, acho que desta vez não haverá uma grande flutuação ou quebra na venda de livros. E explico porquê. A crise de 2008 deu lugar à realidade posterior. Ou seja, até ali, uma editora de prestígio, como a Cavalo de Ferro, que publicava ficção de qualidade para um segmento médio-alto, vamos dizer assim, as tiragens médias andavam à volta dos 1500 exemplares. Depois da crise, e o cenário manteve-se até aos nossos dias, salvo raras excepções, casos em que os autores têm outro prestígio, as tiragens passaram a rondar os 750 exemplares. E isso corresponde, na minha opinião, à realidade do número de portugueses que compram regularmente livros – obviamente divididos pelas várias editoras. Portanto, não estou a dizer que em Portugal temos apenas 750 compradores de livros, estou é a dizer que o conjunto de editoras que publicam para o mesmo segmento, editando 750 exemplares, estão a aproximar-se muito mais de um número realista, ao passo que o que acontecia até 2008 é que, com as tiragens a rondar os 1500, para o mesmo segmento, ficava dependente dos públicos flutuantes, como lhe chamam os ingleses – ou seja, aquele público que compra ocasionalmente, por curiosidade ou por impulso –, esses sim são os que desaparecem nas crises. O que me parece é que a crise de 2008 limpou o mercado e, ao mesmo tempo, deu-lhe condições de se manter.
Ou seja, o mercado que nos restou é já um mercado resiliente.
Exactamente. E acho que daqui a dois ou três anos vamos verificar que, se houve quebras, foi na ordem dos 5%, não muito mais do que isso. Isto porque as pessoas que tinham já um certo nível de vida, uma certa disponibilidade financeira, será uma quantidade mais reduzida que ficará sem essa capacidade.
Mas não pões a hipótese de, durante estes anos em que dure a pandemia, até se encontrar uma vacina, haver a possibilidade das circunstâncias económicas se degradarem muitíssimo, com o desemprego a aumentar de tal modo que ponha em causa a segurança social, provocando um tal grau de instabilidade que fragilize significativamente o poder de compra?
Sim, isso por agora é imprevisível. O que acho é que já estamos muito reduzidos àquele número de leitores regulares, aqueles que mesmo numa situação de crise, e mesmo com grandes constrangimentos financeiros, preferem comprar livros a outras coisas. E por isso é que os leitores portugueses são tão poucos.
E depois há até quem defenda que estes períodos de enorme incerteza não são os melhores para os leitores se embrenharem em obras que exigem mais concentração…
Aí tenho uma opinião diferente. Parece-me que é exactamente quando se vivem períodos de maior ansiedade que o público, aquele que já tem hábitos de leitura – o leitor formado, o leitor regular –, usa precisamente o livro (porque o livro obriga a essa concentração e a essa calma) para se abstrair do mundo e dessas condicionantes.
Seja como for, nestas primeiras duas décadas do séc. XXI, com a perda da diversidade e a concentração editorial, o ambiente tornou-se muito mais austero, e aposta-se muito menos em projectos literários ambiciosos ou na revelação e apoio dos novos autores. E talvez por isso mesmo esta falta de sentido ético na forma como as editoras partilham este espaço comum e nele competem, quando há projectos que vivem numa situação tão precária, torna ainda mais danosas as práticas de editoras que parecem estar a tentar asfixiar outras. Com a E-Primatur, pelo que sei, isto tem acontecido, e parece estar a acontecer agora, uma vez que, em cima do lançamento do vosso livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”, estava a Relógio D’Água a anunciar que também tinha a sua edição prestes a sair.
De facto, isso acontece, e não é só cá, nem é só entre estes editores literários. Na verdade, acontece muito mais no terreno das edições comerciais, porque aí a falta de ideias leva a uma muito maior canibalização. O pouco que me incomoda os casos que envolvem a Relógio D’Água prende-se sobretudo com a falta de ética. Há uma certa ética entre editores que era importante que existisse, uma vez que partilhamos um mesmo espaço e o que não falta é margem para desenvolvermos o nosso trabalho sem irmos uns para cima dos outros. Não há necessidade de canibalização porque no nosso segmento somos tão poucos e há tanta coisa boa e que falta editar… Pessoalmente, eu tenho listas de Excel que davam para alimentar Portos Editoras durante uma série de anos no que toca a este segmento de livros. E da mesma maneira que o Francisco Vale (editor da Relógio D’Água) se gaba de ter um catálogo formidável, cheio de diversidade, e esse é um mérito que ninguém lho retira, sempre que surge uma nova editora, como foi o caso da Ahab, que também não demorou a mostrar a capacidade de se afirmar com um catálogo de excepção, ou a Cotovia que, quando era uma editora mais pujante e com mais ideias, também mostrou essa capacidade… Portanto, há espaço e há uma imensidade de coisas por fazer. Assim, não se compreende esta tendência que parece haver de alguns editores para porem a pata em cima de outros.
Mas a Relógio D’Água parece ser, de facto, um caso aparte. Pois tratando-se de uma empresa média na sua dimensão, em termos de edição literária já faz mais títulos do que todas as chancelas do grupo Porto Editora ou do que o grupo Leya…
Sim, provavelmente. Se formos fazer uma triagem, pondo de parte o que são meras apostas comerciais desses catálogos, e títulos sem grande mérito literário, a Relógio D’Água pelo menos ombreia com eles. Não é que o Francisco Vale seja uma excepção no meio literário, ele soube simplesmente ir-se adaptando, mantendo uma estrutura pequena, e sobrevivendo à crise de 2008, mas faz parte daquele conjunto de editores que surgiram no final dos anos 1970 e início da década seguinte e que, no seu caso particular, beneficiando de uma fortuna familiar, e de uma alavancagem que hoje poucos dos editores têm, soube constituir um catálogo de fundos, valendo-se, como tantos outros, daquilo que fora feito nas décadas anteriores pelos gigantes que desabaram depois do 25 de Abril.
Esse efeito de falência foi uma consequência do desaire da maior empresa de distribuição na altura, a Bloco Expresso?
Sim, isso teve um grande impacto. Mas houve editoras que não eram distribuídas pela Bloco Expresso, como a Portugália, que também acabaram por falir. Portanto, esse não foi o único motivo, nem de longe nem de perto. Como as pessoas podem entender, editoras que estavam estabelecidas há muitos anos, que tinham um enorme prestígio no tempo do Estado Novo, que tinham a sua rede de influências, desde os escritores e críticos, todo esse castelo desabou e pôs em causa esses projectos. Com o 25 de Abril, todo o edifício social teve de se reconstruir, e muitas vezes esses gigantes que tinham conquistado um certo destaque e visibilidade, tivessem ou não uma postura política mais vincada, viram-se perante resistências e anti-corpos que não existiam antes. Depois, mesmo ao nível dos catálogos, houve determinado tipo de livros e colecções que faziam sentido antes do 25 de Abril e que, então, deixaram de fazer. Mas houve, é claro, editoras que ficaram queimadas por se entender que tinham compactuado com o regime de cultura vigiada pelo aparelho político.
O PREC teve, portanto, um papel decisivo nessa irradiação de uma série de figuras ligadas ao Estado Novo ou, pelo menos, coniventes.
Sim, claro. Uma revolução traz sempre coisas muito boas e muito más. E depois nem tudo o que aparentemente é bom é bom, nem tudo o que era mau era assim tão mau. O facto é que o mercado da edição foi tomado por um conjunto de pseudo-críticos cuja única preocupação era afirmar certas noções ou ideologias políticas e que, mal passa o entusiasmo, passado uns quatro ou cinco anos, estas personagens ou traçam novos esquemas para se beneficiarem e aos seus ou desaparecem simplesmente. E se desaparecem é porque também não estavam a fazer nada mais do que propaganda política. Mas nisto criaram-se vazios e desequilíbrios que ainda hoje se notam no facto de haver muito pouco espaço para a crítica literária e cultural na imprensa portuguesa. Isto não é culpa da revolução, é simplesmente um dos sinais desse aproveitamento de um vazio, o qual, ou é preenchido por pessoas com competências, ou fica vago para ser ocupado pelos arrivistas que se organizam para tomar conta das coisas. Naquele tempo, pelo que eu fui investigando, houve também muitas livrarias que faliram, muitas novas que, no seu lugar, abriram, e todas as relações comerciais e de promoção ou institucionais foram refeitas, o que significa que editoras que estavam estabelecidas e que tinham um determinado modelo, estivessem ou não afectas ao antigo regime, viram a sua realidade de trabalho transformar-se. Assim, houve muitas que não conseguiram, face às crises que se foram sucedendo na área do livro, manter-se em actividade. Trata-se de um sector em que a oferta sempre foi bastante superior à procura e isso propicia sempre este ambiente de crise constante. E é claro que isso, agravado pela política de não cumprimento das obrigações durante o período de instabilidade que se seguiu à revolução, levou a que aqueles modelos soçobrassem. Uma vez mais, como dizia o Assírio Bacelar, era tudo em nome do povo. Mas acontece que esse “em nome do povo”, curiosamente, acaba por justificar o não pagamento e cumprimento das obrigações, o não pagamento dos direitos de autor, entre outras coisas. Esse período de suspensão serviu de formato para uma série de novos projectos editoriais que fizeram da edição portuguesa esse terreno de miragens e enganos que conhecemos.
Voltando um pouco atrás, a vossa edição de “Os Sete Pilares da Sabedoria” foi anunciada quando?
Em novembro do ano passado.
E ao veres esta edição simultânea da Relógio d’Água assinada por dois tradutores pressupões que a ideia foi dividir o livro por dois para que o trabalho fosse feito em tempo recorde.
Sim, essa é uma possibilidade. Mas também não posso deixar de lado a possibilidade de, tendo o livro muitas especificidades culturais e históricas, ter posto um tradutor a fazer a tradução do todo, enquanto o outro vai investigar e trabalhar as questões mais específicas, fazendo uma revisão profunda.
Pode também ser uma fantástica coincidência. Um livro que estava há muito em domínio público, que a última vez que fora editado por cá foi há 30 anos, surgindo agora, no espaço de dias, duas edições.
Pois. Em relação à Relógio d’Água, o que qualquer pessoa pode constatar, indo ao blogue da editora ou à sua página nas redes sociais, é que há uma série de leitores que estão sempre a fazer sugestões, e o que é curioso no caso desta editora é que parece sempre que tudo o que é sugerido já está nos planos do Francisco Vale editar. Eu lembro-me de ter visto, ao longo dos anos, que sempre que havia leitores que sugeriam uma edição de “Os Sete Pilares da Sabedoria”, era essa a resposta que recebiam: “Sim, temos o livro na lista, e vamos avançar em breve”. A primeira vez que terei visto uma resposta destas foi há sete ou oito anos.
Parece que isso é uma maneira de fazer xixi em todos os cantos para fazer saber aos outros: “Nós já estamos em cima disto!”
(Risos) É, é uma possibilidade. A verdade, é que é muito raro dizerem que não, dizerem que há um livro que não lhes interessa editar. Geralmente, dizem que sim.
Roberto Calasso, o editor da Adelphi, faz uma defesa da edição como um género literário, e refere como ao propor um catálogo está a estabelecer laços e relações que dão origem a um sentido, que é em si mesmo uma obra de criação. E, na entrevista que fiz ao Francisco Vale, ele subscrevia este entendimento. A questão é: como é que um catálogo que vai a todas pode estabelecer esse entendimento. No fundo, não há o risco de um catálogo tão diversificado dar uma origem a uma cobra com quarenta caudas, impossibilitando assim o morder da cauda, criando esse ciclo que constantemente se revalida? Ou seja, não há o perigo de um catálogo ser pensado mais como uma forma de anular o que está ao seu redor do que de criar uma leitura particular e uma identidade?
Eu consigo perceber isso, mas também te digo que percebo o lado de lá. Confesso-te que se me saísse o euromilhões, se tivesse uma disponibilidade financeira – que não tenho… O meu objectivo não passaria, é certo, por estar preocupado com os outros, mas seria fazer todos os livros de que gosto, e, se calhar, acabava por fazer o que a Relógio d’Água faz aos outros. Portanto, não me interessa também estar a perder muito com isso. Que aquele é um belíssimo catálogo, é. Há coisas que eles fazem que eu não faria. Posso dizer que, desde que começámos a editar na E-Primatur, houve três livros que tínhamos previsto fazer e que, tendo sido anunciados por outras editoras, preferimos recuar. Portanto, devolvemos o dinheiro aos apoiantes e partimos para outros projectos.
Além deste livro do Lawrence, tiveram problemas também com obras do Charles Dickens, não foi?
Sim. Houve obras do Dickens que surgiram em cima de edições nossas. Quando digo em cima é poucos meses depois. O que fizemos foi termos deixado de anunciar quando é nossa intenção editar obras do Dickens. Temos ainda um outro em crowdfunding e vamos tentar perceber se é uma mera coincidência. Verdade seja dita que já tinham saído outras obras do Dickens na Relógio d’Água, pelo que podia ter sido uma continuação do programa. Mas, de facto, foi estranho terem saído exactamente os mesmos títulos que tínhamos anunciado e posto em tradução. Isto também aconteceu com um texto do Max Weber… Não foram muitos, mas globalmente já são cinco casos.
Falando do catálogo da E-Primatur. Neste têm já quantos livros editados?
Entre a E-Primatur, a BookBuilders e a Livro B temos à volta de 100 livros.
E qual é a relação entre estes selos?
A Livro B é o caso mais simples. Com a insolvência da Estampa, a ideia foi fazer uma continuação dessa colecção de culto. De resto, cheguei a propô-lo à própria Estampa quando estive desempregado, depois de sair da Babel. É uma colecção que trabalha basicamente com os anti-clássicos, ou os clássicos marginais. Quanto à E-Primatur, o objectivo é a publicação de obras essencialmente de ficção, embora haja excepções, e que tenham sido marcantes a nível internacional ou nacional. Livros fundamentais que ou não foram publicados cá ou que estão esgotados há muito tempo. Portanto, há aqui uma continuação do trabalho que fiz na Cavalo de Ferro e que prossegui por pouco tempo na Ulisseia, enquanto chancela do grupo Babel. É esse trabalho de preencher lacunas. Já a BookBuilders é a nossa chancela mais generalista, e que tem o catálogo mais recente (começou em 2016), e que só agora é que está a ganhar forma. É, essencialmente, uma chancela de ciências sociais e humanas, ou seja, um pouco a continuação do trabalho que o Pedro Bernardo fazia nas Edições70. A ideia é publicar obras na área da filosofia, do pensamento político, da História. Temos também uma colecção de ficção de autores portugueses contemporâneos, que não faz sentido ser integrada na E-Primatur.
Também tem um aspecto da sua actuação que é os autores pagarem à BookBuilder os serviços de edição, revisão e publicação, não é?
Não. Nós funcionamos sempre com o sistema de crowdfunding. Ou seja: a pessoa pode abordar-nos, nós definimos quantos compradores são necessários e fazemos um contrato. O que muitas vezes acontece é que os autores, dizendo-nos que não têm um número de amigos ou familiares que possam estar disponíveis para apoiar a edição, se dispõem a colmatar o valor que fique em falta. Portanto, ao contrário dos serviços de vanity press que existem por aí…
Então, não incluis a BookBuilder na lógica da vanity press.
Não, de maneira nenhuma. Numa Chiado Editora tu pagas para que eles te façam o livro. Nós aqui o que tentamos é precisamente o contrário. Ou seja, o que não quero é que o autor tenha de arcar com os custos da edição, porque senão ele terá de arranjar 300 ou 400 compradores que lhe garantam a edição, o que significaria matar o projecto à partida. O que me interessa é que a edição surja com o preço mais ajustado e as condições adequadas a que possa vender-se no mercado. Porque nós tentamos ser editores o mais tradicionais possíveis, isto embora recorramos a um método de financiamento pouco comum, o que significa que se tivermos de estar ocupados a tentar angariar clientes vamos avolumar ainda mais o trabalho para o nosso lado. E de momento somos só duas pessoas. E eu nem sequer estou a tempo inteiro. Se nós tivermos, em quarenta projectos por ano, de estar a devolver o dinheiro às pessoas, só o trabalho de anular facturas e fazer notas de débito e de crédito significaria que não faríamos mais nada. Por isso é que aceitamos muito poucos projectos dos tantos que nos são propostos, porque queremos garantir que aqueles que vão para a frente são os que têm boas possibilidades de se fazer valer no mercado e que, ao mesmo tempo, trazem alguma coisa de novo ao mundo da edição.
Tendo em conta esta diferença, que análise é que fazes do fenómeno da vanity press em Portugal? Não há o risco de uma Chiado Editora vir a crescer de tal modo que dê mau nome à edição portuguesa?
Acho que o que está a acontecer é uma evolução normal do mercado. Não esperaria outra coisa. E muito sinceramente acho que se uma vanity press até pode ter alguma visibilidade, em termos de colocação no mercado, nas livrarias, nunca irão impor-se porque os leitores sabem perfeitamente reconhecer a diferença entre os livros que se publicam nas editoras e aqueles que acabam segregados à partida por terem o selo da Chiado e de outras do mesmo género. De resto, se não for pelo espaço que compram para terem expositores nas livrarias, e uma vez que os leitores não lhes tocam, as livrarias também não lhes encomendam os livros. Portanto, na realidade é uma coisa que funciona para o seu próprio público. Ou seja, é um serviço para o autor, para os seus amigos e familiares, pouco mais. E digo-te já que se com isso se conseguir que menos pessoas, com projectos que não têm grande mérito, e, às vezes, nem pés nem cabeça, deixem de nos vir bater à porta, poupam-me o meu tempo. Assim, na verdade, é um mal que vem por bem.
Além de ti e do Pedro Bernardo, quem mais tem um papel importante no trabalho que a E-Primatur está a fazer?
Editores somos nós os dois, os sócios principais da editora. Ultimamente, temos tido a colaboração da Susana Ramos, que tinha estado na DinaPress, e depois na Almedina, e que se juntou a nós há pouco tempo. Estávamos a ficar incapacitados de lidar com a parte editorial e logística do trabalho. Somos nós que fazemos a distribuição dos nossos livros, ou seja, somos nós que tratamos de fazer e expedir os caixotes, além de tratar das encomendas e das facturas.
Falando do teu percurso, referiste-te também à tua passagem pela Babel… Ao longo destes anos, tu já juntas no teu percurso uma série de acidentes, porque a Babel foi um desastre estrondoso na nossa edição.
A Babel foi uma coisa que me surgiu quando eu estava desempregado, depois de sair da Cavalo de Ferro. Na altura, em 2010, tive dois convites ao mesmo tempo. Recebi um telefonema do Isaías Gomes Teixeira, da Leya, e do Paulo Teixeira Pinto (presidente da Babel), por interposta pessoa. Fui às duas entrevistas, e a grande diferença é que, na altura, a Babel assumia o propósito de se tornar a melhor editora portuguesa. Não a maior mas a melhor. Esse é o tipo de desafio que eu gosto e foi a minha primeira experiência a trabalhar por conta de outrem numa empresa com meios. Tinha trabalhado para o Assírio Bacelar mas isso, pela razão que já falámos, na prática não conta. Mas a experiência na Babel foi… Bom, obviamente acabou por ser um desastre, sobretudo em função de tudo aquilo que se anunciou. Mas a mim trouxe-me grandes esclarecimentos. Na altura, tinha passado aquele ano desempregado, e, curiosamente, tinha estado a ler um conjunto de memórias dos grandes editores norte-americanos: William Targ, do Bennet Cerf, co-fundador da Random House, do André Schiffrin (“O Negócio dos Livros”, ed. Letra Livre)… E também a do Giangiacomo Feltrinelli. Ou seja, tinha estado a ler quatro ou cinco livros de memórias de grandes editores, e foi muito engraçado porque depois fui experimentar como é trabalhar para uma editora em que, por muito bem-intencionado que seja o projecto, toda a sua administração é feita por pessoas que não só não gostam de livros como não sabem nada do negócio. E lembro-me perfeitamente de uma série de amigos meus e de pessoas do mundo da edição que, estando cá fora, diziam: “Ah, a Babel é uma coisa para lavar dinheiro…” E eu tinha de encolher os ombros e retorquir: “Epá não é, é mesmo só incompetência.” Porque era. Infelizmente, era um conjunto de pessoas que não tinham talento para aquilo nem conhecimentos sobre a área. E, por muito que houvesse bons editores, e pessoas bem-intencionadas, depois a possibilidade de concretização das ideias que íamos tendo era sempre posta em causa por pessoas que emitiam opiniões e que tomavam decisões com base em qualquer coisa que eu nunca percebi o que é que era. Porque não era garantidamente experiência, não era conhecimento, não era sequer estatísticas sobre o mercado…
Como é que o Paulo Teixeira Pinto, que vinha do sector da Banca, de ter grandes responsabilidades e lidar com todo o tipo de gente, parece ter-se rodeado de uma série de gestores crapulosos que garantiram que a Babel só poderia ser um fiasco absoluto?
Pessoalmente até tenho motivos para lhes chamar crápulas, mas, curiosamente, não me parece que houvesse más intenções. Estas pessoas não eram mal-intencionadas, simplesmente eram incompetentes e não sabiam dar ouvidos a quem sabia o que eles não sabiam. É tão simples quanto isso.
E o que é que explica a incapacidade de Paulo Teixeira Pinto, com a experiência que tinha já dos acidentes no mundo financeiro, para dar ouvidos às pessoas certas?
Acho que é uma percepção própria de pessoas que vêm do mundo da grande finança, a de que a cultura só não é lucrativa porque quem está nela não tem boas práticas de gestão. Eles acham sempre que se colocarem gestores à frente de projectos culturais vão arranjar uma solução e vão resolver os problemas do sector. Acham que, ao contrário do que se diz, nunca foi um problema de haver públicos pouco qualificados mas de que quem está a dirigir o projecto não o sabe fazer de modo a atrair o grande público. O problema é que a realidade não é essa. E o facto é que os gestores chegam lá e rapidamente se percebe que não sabem o que estão a fazer. Vão tentar aplicar regras de outras áreas do mundo dos negócios que não têm aplicação no mundo cultural e, por boas que as intenções possam ser, a realidade prática acaba por contrariá-los e fazer pouco deles. A Babel juntou editoras que já existiam, pegando em estruturas que estavam já decadentes, algumas arrastavam-se em crise financeira há bastante tempo, e isso obrigou a que essas estruturas tivessem de se reinventar. Ora, isto em vez de ser feito caso a caso, com conhecimento das particularidades de cada editora, foi feito numa lógica generalista. Depois, quando as coisas corriam mal, acontecia isso que é uma fórmula típica da gestão dos bancos, que é a troca das cadeiras: “Tu, que és directora de produção, passas a directora de comunicação, tu, que és director do não-sei-quê passas a director do não-sei-que-mais…” E, assim, variando nas combinações parece que imaginam que irá acabar por sair o jackpot e ter-se uma equipa perfeita. Depois havia ideias mirabolantes sobre como é que seria possível vender muito, como se o produto que estivéssemos a vender fossem lâminas de barbear ou telemóveis. Isso implica um não conhecimento do público, implica um não conhecimento do produto e um não conhecimento do processo. Quando se falha nestas três coisas garante-se o falhanço.
Entras na Babel em 2010 e sais quando?
Saí depois do verão de 2011.
Só para perceber melhor como é que chegas à edição… De onde é que tu és?
Sou de Algés, Oeiras.
E nasces em que ano?
Em 1976.
E como era a tua família… Havia livros em tua casa?
A minha família provém do norte do país, mas já havia alguma parte a viver por cá. Em relação aos livros, não havia muitos lá por casa, mas havia a clara noção de que os livros eram uma forma de riqueza. Lembro-me perfeitamente de ir a casa da minha avó no Porto e de ter encontrado lá, quando era puto, um baú com livros que tinham pertencido aos meus tios, ao meu pai, e ao encontrar aquilo fiquei deleitado, porque era como dar com um fruto proibido encerrado lá na cave. Em parte, penso que a relação que tenho com os livros nasce daí, e, em parte, vem do meu avô materno, que era director de uma empresa de transportes, mas que era uma pessoa que gostava muito de ler: policiais, livros de aventura… Tinha lido os Júlios Verne, os Alexandres Dumas, as Agathas Christie, e era uma pessoa que gostava de contar histórias. Acho que essas coisas nos vão ficando. Quando desde miúdos somos puxados para dentro de histórias por bons contadores de histórias acho que isso é meio caminho andado para sentir que são as histórias que nos dão esse equilíbrio que às vezes vai faltando à vida. E os livros são essencialmente histórias.
E o teu problema de visão é uma coisa que vem desde quando?
É uma coisa congénita. É um problema com que vivo desde sempre. Tive sempre menos de dois décimos de visão. Qualquer pessoa com o meu problema andaria com uma bengalinha e leria braille, mas eu consegui sempre a proeza de ter aquilo que é chamado o aproveitamento máximo de visão, ou seja, fiz uma vida normal. A única coisa que não consegui fazer nunca foi conduzir. Não me é legalmente permitido, e ainda bem, porque senão teria de certeza atropelado muita gente. Mas fora isso, fui dando cabo da vista com os livros.
A tua visão piorou por seres um leitor infatigável?
Isto sou eu a brincar. O que se passa é que qualquer pessoa que tenha o nível de deficiência visual que eu tenho – tenho qualquer coisa como 84,9% de deficiência visual –, sendo o olho um músculo, está sempre em esforço. Isto acontece independentemente de estar a olhar para as nuvens em vez de estar a tentar focar a visão… Está sempre em esforço porque é um músculo que está sempre a tentar ver melhor qualquer coisa que não está a ver bem. E, portanto, o normal é que qualquer pessoa que tenha o meu nível de visão chegue aos 40 anos ou aos 30 e tal, como foi o meu caso, e comece a acusar o esforço, tal como um atleta de alta competição. Isto é, não é possível seres atleta de alta competição a tua vida toda porque os músculos começam a cansar-se e começam a dar de si. Basicamente, é isso.
Mas tu estás garantido? Em princípio vais poder continuar a ver e a ler?
Eu tenho a garantia de que tenho muito poucos anos para continuar a ler e a ver.
Então e como é que estás a pensar colmatar isso? Vais fazer como o Borges, vais contar com amigos leitores que venham ler para ti?
Era bom, era muito bom… Mas acho muito pouco provável dada a realidade em Portugal. Não. Estou a tentar aproveitar ao máximo para já o que tenho, reduzindo os esforços mais intensos que fazia. Fiz no ano passado, e declarei-o aos meus amigos, a minha última revisão literária. Não o volto a fazer. É um trabalho que exige muita concentração do olhar, estar a ler um texto, estar a falar com o autor ou tradutor, estar a fazer correcções… Estou cá ainda para resolver meia dúzia de dúvidas, e posso olhar para um ecrã como posso ir vendo certas coisas, mas já não estou com a atenção ou com a minúcia de fazer uma revisão do princípio ao fim. E era revisão literária porque eu não fazia revisão ortográfica. Ou seja, tratava-se de estar a pensar no texto, ver se esta frase podia estar melhor ou pior do ponto de vista da sua construcção. Isso vou deixar de fazer como vou deixar de fazer mais algumas coisas. Vou tentar fazer outras coisas que me dão algum gozo e que me cansam menos a vista, e, a partir daí, é lidar com uma realidade que há-de vir e que pode vir de várias formas completamente diferentes. Os médicos não têm a certeza se será uma perda total de visão ou se será parcial. Se será primeiro num olho e não no outro. Tudo pode acontecer. Alguma coisa acontecerá certamente. Em função disso, terei de me adaptar. Uma das coisas que faço desde sempre, porque sabia que essa possibilidade existia, é fazer grandes listas de Excel com obras que devem ser publicadas. Toda a minha vida li vorazmente e, por isso, tenho listas com 50 ou 60 mil títulos que podem ser publicados nos mais diversos segmentos e áreas de interesse.
Entretanto, pelo menos no mundo anglo-saxónico está a dar-se um desenvolvimento fascinante do áudio-livro. Já tens ouvido alguns livros?
Não. Aquilo a que comecei a recorrer recentemente foi a e-readers porque permitem aumentar bastante a letra de texto. E isso é uma coisa que me cansa menos e, uma vez que como leitor leio sobretudo coisas estrangeiras, em inglês, francês ou espanhol, para traduzir para português, é mais fácil, de facto, pergar no livro digital que me cansa muito menos. O áudio-livro, para uma pessoa que sempre leu com os olhos, é uma mudança completamente radical do método. Já fiz a experiência e o que acontece é que me parece que me estão a contar uma história, mas não consigo ter o distanciamento crítico que já tenho quando leio um livro e que me permite estar a ler e ao mesmo tempo a pensar: isto se calhar ficava melhor desta maneira, ou aquilo podia ficar melhor daquela, etc. Quando estou a seguir uma história, que entra pelos ouvidos ao invés de entrar pelos olhos, o mecanismo mental é completamente diferente. Não quer dizer que não seja possível adaptar-me, mas vai requerer uma adaptação muito grande.
Considerando essas listas que tens, as memórias e a experiência que já acumulaste, não colocas a hipótese de fazer um livro a relatar o teu percurso na edição? Porque em Portugal, não só estes testemunhos têm estado omissos, como parece que muitos leitores já nem fazem bem ideia da importância decisiva dos editores, investigando um crime sem darem pela arma nem compreenderem o motivo.
É um pouco isso. Mas para já eu nunca me publicaria porque eu sou um péssimo escritor. Como editor o digo. (Risos) Ou seja, avalio-me como um péssimo escritor. É claro que tenho todo o gosto em contar histórias e se alguém quiser ouvi-las e fazer um livro em que relate algumas, com certeza, mas não sou um escritor e, portanto, essa ambição não partiria de mim. Mas reconheço e tenho defendido ao longo dos anos, para completar o que estavas a dizer, acho claramente que o trabalho do editor que assume as suas escolhas é também o grande trabalho de fixação do cânone literário de uma determinada comunidade e época. E isto por um motivo muito simples: não é por a academia dizer que o autor X ou Y é muito bom que ele vai entrar no cânone, mas é porque o livro está disponível no mercado e continua a chegar aos leitores. E se o livro está disponível é porque houve um editor que acreditou nele. Se não estiver, não há cânone que lhe valha. Os senhores professores podem falar muito nele na universidade, pode haver colóquios, pode haver tudo isso, mas se os leitores não o encontram não o vão ler e não serão meia dúzia de estudiosos a alterar isso. Portanto, se formos ver os cânones, perceber quais são as obras que foram escolhidas e salvas na maior parte dos países, e isto quando os cânones tinham algum peso – coisa que hoje já está um pouco posta de lado, embora não deixe de ter algum peso –, é fácil perceber que os livros que são singularizados são aqueles que estão disponíveis no mercado. É muito raro teres grandes nomes da literatura que não tenham editores a defendê-los mesmo que não tenham grande adesão do público nalgum momento. Trata-se também de passar o testemunho de uma geração à seguinte. E, na realidade, nós editores vamos estabelecendo esse legado, e isso é uma grande responsabilidade. E os editores que não estejam simplesmente preocupados com resultados financeiros devem ter consciência disto. E por isso, para unir aqui as pontas, é que eu nunca faria um livro que outro editor já tivesse anunciado e que já estivesse praticamente pronto. Não estou a trabalhar para ultrapassar ninguém. O que quero é trazer para o mercado aquilo que lhe falta. E nunca seria uma rivalidade com outro editor o que me motivaria a fazer o meu trabalho.
Tendo em conta tudo o que já editaste, quais são aqueles três livros que não precisas que mais ninguém te diga que fizeste um bom trabalho ao editá-los, e és tu próprio quem te dá as palmadas nas costas saudando o que foste capaz de fazer?
Primeiro que editor sou um leitor, e sendo um leitor que vai vagando ao sabor dos seus humores, as minhas disposições e interesses estão sempre a variar. Por isso, a resposta que te darei hoje já não seria a mesma dentro de alguns meses. Recentemente, o que me deu muito gozo publicar foi o Victor Serge, “O Caso do Camarada Tulaev”. Era um projecto que tinha há muitos anos, sendo uma obra politicamente muito relevante, desde logo porque te mostra como as ideologias políticas, quando são só isso acabam por ser receitas para um vazio, deixando claro que é preciso ter outras orientações para dar cor à vida e para fazer passar um fio entre os nossos espíritos. Ao mesmo tempo é um livro sobre a dignidade dos ideais, sobre a importância de se ter algo em que acreditar. Outro livro que me entusiasmou muito, e agora estou a concentrar-me neste trabalho que tenho feito na E-Primatur, chama-se “História Natural da Estupidez”, do Paul Tabori. É um livro que já tinha sido publicado há muitos anos em Portugal e estava esgotado, e é um ensaio muito mais sério do que o título parece sugerir, debruçando-se sobre a forma como uma certa estupidez nos distingue dos restantes animais. É uma obra cultural e ideologicamente muito importante. Quanto à ultima escolha, passo para uma coisa completamente emocional. Publiquei aquela que é para mim uma das grandes histórias de amor da literatura ocidental, um livro que li primeiro quando era miúdo e depois ainda mais duas ou três vezes já mais velho, e isto não sendo eu pessoa de ler mais de uma vez um livro. É o “Grandes Esperanças” do Dickens.