Nova Baixa-Chiado. Bom para o ambiente, mau para o negócio

Nova Baixa-Chiado. Bom para o ambiente, mau para o negócio


A zona da Baixa-Chiado vai ser mais amiga do ambiente e menos amiga dos comerciantes. Quem faz negócio por ali diz que os centros comerciais vão ganhar terreno e os clientes vão fugir, porque andar a pé não é com eles.


Uma pastelaria no Chiado, uma retrosaria na Rua Nova do Almada, uma loja gótica na Rua dos Fanqueiros e uma loja histórica na Rua da Conceição. A distância entre estes espaços é considerável, mas há um ponto que os une: o descontentamento com a zona de emissões reduzidas (ZER), cujo projeto foi apresentado na semana passada pela Câmara Municipal de Lisboa. A partir de junho, quem antes fazia este percurso de carro é melhor preparar os pulmões, porque só a pé será possível fazer o circuito.

Ainda os primeiros turistas saem à rua na zona da Baixa, é pouca a azáfama de carros para lá e para cá, e já Guilherme e Carlos Vaz, dois comerciantes, discutem como será o futuro – deles e dos espaços que gerem. “Nada de bom se avizinha”, diz Guilherme, um dos sócios da Retrosaria Adriano Coelho, uma das lojas históricas de Lisboa, na Rua da Conceição. Atrás do balcão que divide com o sócio Orlando e com os dois empregados, Francisco e Paula, Guilherme conta que a zona “vai ficar uma loucura”. “As pessoas só não trazem o carro para dentro da loja porque não podem. E tenho uma vendedora da Margem Sul que tem aqui na Baixa uns 20 clientes e está em pânico, porque ela tem de carregar os mostruários”, acrescenta. E vai mais longe: “Os consumidores que queiram comprar coisas maiores ou fazer muitas compras vão levar as coisas como? Nos transportes públicos? Isto se eles passarem às horas certas”.

Na Rua da Conceição vai continuar a passar o elétrico, exibindo o número 28. Carros também, mas só os dos residentes. Nas ruas cujo trânsito vai ser condicionado, os passeios serão mais largos e terão também ciclovias – vai ser possível pedalar desde Telheiras até ao Terreiro do Paço.

Os contras, dizem os comerciantes, sobrepõem-se aos prós. Mas é preciso falar também das coisas boas. Orlando encarrega-se disso: “Mais silêncio vai haver, porque às vezes nem conseguimos ouvir-nos uns aos outros aqui dentro da loja, com os carros a passar e a buzinar”. “Vai ficar mais calmo, não sou contra, mas acho que isto tem de ser bem feito, deviam primeiro garantir mais transportes e só depois cortar o trânsito”, acrescenta.

Já Carlos Vaz, que tem uma pastelaria e uma loja destinada sobretudo aos turistas, defende que “assim é que os centros comerciais ficam a ganhar”. E dá o exemplo dos dias em que há maratonas. Nesses dias “nota-se logo menos clientela”, diz, acrescentando que aquela zona está cada vez mais para os turistas do que para os portugueses. Por enquanto, espera pela reunião de apresentação do projeto aos comerciantes e moradores, que vai realizar-se na próxima quinta-feira.

As reclamações saltam para a loja gótica Triparte, na Rua dos Fanqueiros, onde o preto é rei. Entre botas de biqueira de aço e camisolas dos Iron Maiden, clientes ali não faltam, pelo menos por enquanto. “É ridículo, nós temos clientes que vêm de Mafra, Ericeira e Margem Sul, portanto, só têm a hipótese de vir de carro. Isto afasta os clientes, sem dúvida”, diz Anaïs Gomes, gerente do espaço. Aliás, Anaïs Gomes é uma das mais de três mil pessoas que já assinaram a petição “Contra as Obras para Fechar a Baixa de Lisboa”. Na petição é referido que “o problema de Lisboa não são os carros, é a má gestão”, e que “o projeto apresentado por Fernando Medina vai arrasar o comércio na zona da Baixa e centro histórico da cidade”.

E há ainda outra questão: as cargas e descargas. Habitualmente, o caos provocado pelas carrinhas que param em cima dos passeios deixa qualquer condutor de cabelos em pé. A partir de junho, isso deixa de ser problema, já que a autarquia promete mais espaços destinados às cargas e descargas. No entanto, o período é reduzido. “As operações de cargas e descargas em termos gerais estão autorizadas apenas no período entre as 24h e as 6h30”, refere a autarquia no seu plano. E os comerciantes respondem: “Ninguém vai estar aqui a essa hora, como é de imaginar”.

Futuro dos parques de estacionamento Na Rua Nova do Almada, pouco comércio tradicional existe. Multiplicam-se os espaços que vendem tudo e mais alguma coisa – desde isqueiros a azulejos para o frigorífico – e as lojas de fast-fashion. À frente de um dos 14 parques de estacionamento daquela zona, dentro da Casa Senna, uma loja de retalho, a notícia de que aquela rua, daqui a uns meses, não terá carros a circular, ainda não tinha chegado. Aliás, a par desta rua, também a Rua da Prata, a Rua Garrett, o Largo do Chiado e o Largo das Belas Artes ficarão pedonais. E as duas empregadas ainda não sabiam que os clientes só poderão ir a pé até à loja. “Os clientes já são poucos, nunca há estacionamento aqui na rua. Se tirarem os lugares de estacionamento e o trânsito, então é que o negócio morre, vai ser muito complicado”, diz uma delas.

E automaticamente surge a questão: “Então o que vão fazer com o parque de estacionamento? Se não há trânsito, não podem ir para lá”. Na Rua Nova do Almada existe o parque de estacionamento do Largo da Boa Hora, inaugurado em 2013. O i tentou contactar a Câmara Municipal de Lisboa para perceber em que moldes vão funcionar os parques de estacionamento mas, até à hora de fecho desta edição, não foi enviada qualquer resposta. Segundo o relatório elaborado pela autarquia da capital referente à ZER, nos últimos anos, a zona envolvente da Baixa pombalina foi reforçada com parques de estacionamento, como o parque do Campo das Cebolas ou do Chão do Loureiro. “Esta política torna aquele território acessível em veículo particular, sem necessidade de entrar necessariamente no interior da zona em estudo”, lê-se no documento. Além disso, “o tráfego gerado pelos visitantes da zona deve ser maioritariamente contido nas portas de entrada da zona de intervenção, através da criação de parques de estacionamento de rotação de grande capacidade”.

“Querem matar o Chiado” É preciso fôlego para ir a pé da Rua dos Fanqueiros ao Chiado. Quem sobe a rua dos armazéns do Chiado até à famosa estátua de Fernando Pessoa já não encontra a zona com o mesmo aspeto. Não pelas obras relativas à ZER, mas devido a uma intervenção feita pela autarquia da capital para reestruturar o pavimento. E é assim que, diz quem passa ali os dias, o Chiado começa a morrer. Lentamente. Maria Augusta, proprietária da Pastelaria Benard, conta ao i que as vendas desceram cerca de 75% da faturação desde o dia 13 de janeiro – início das obras que ergueram uns tapumes que tapam praticamente a entrada das pastelarias e lojas que estão no último quarteirão da Rua Garrett. Em termos práticos, por baixo da típica calçada portuguesa, o terreno começou a ficar oco, e por isso é necessária uma intervenção. Estas obras são contestadas, não pela sua realização, mas pela forma como estão a ser realizadas e foram planeadas pela Câmara Municipal de Lisboa. “Querem matar o Chiado e estão a fazê-lo aos bocadinhos”, diz Maria Augusta.

Neste momento, a estátua de Fernando Pessoa está rodeada de buracos, máquinas e pó. As esplanadas das pastelarias A Brasileira e Benard não existem e os clientes são poucos. Maria Augusta explica que a esplanada representa cerca de 50% das vendas e era isso que, no início da obra, achava que ia perder. Enganou-se: perdeu mais, foi obrigada a mandar funcionários de férias, dispensou dois pasteleiros e fecha portas duas horas mais cedo. “As pessoas sobem a rua, veem este aspeto de obras e voltam para trás. Até os guias turísticos vão dar a volta e já não passam por aqui”, acrescenta.

Voltando ao fôlego que é preciso para subir a Rua Garrett, Maria Augusta contesta a conversão daquela rua numa zona pedonal: “Uma zona pedonal é uma zona plana, vir da Baixa até aqui a pé, para as pessoas mais velhas, é impensável”.

No relatório técnico da ZER, a Câmara Municipal de Lisboa utiliza as alterações climáticas como a grande justificação para as mudanças a realizar nos próximos meses. “Para melhorar a qualidade do ar em Lisboa é preciso agir hoje”, lê-se no documento de 61 páginas. No entanto, “o que estão a fazer hoje pode matar as lojas no futuro”, acrescenta um dos donos da Retrosaria Adriano Coelho.