Foi recentemente notícia a nomeação de um recém-licenciado com dois meses de experiência como técnico especialista do gabinete do ministro do Ambiente. O recrutamento como especialista de alguém que numa boa empresa seria estagiário diz bem da qualidade de serviço exigida nos próprios gabinetes ministeriais. Um caso entre muitos.
A nomeação, e não o nomeado, fez-me lembrar a cáustica obra de Eça O Conde de Abranhos, também ele especialista desde novo, mas na intriga e numa troca de favores que o fizeram ascender a tão elevado estatuto social. Num excerto da obra, o Conde dissertava sobre o papel da universidade. Substituindo o termo universidade por “universidades de verão”, onde se formam os quadros políticos dos diversos partidos, e bacharel por “jotas”, e esclarecendo os menos versados na gíria coimbrã que o termo “futrica” designava depreciativamente quem não era estudante, a versão atual seria a seguinte:
“A primeira vantagem das universidades de verão… é a separação que se forma naturalmente entre jotas e futricas, entre os que vivem de revolver ideias ou teorias e aqueles que vivem do trabalho. Assim, o jota fica para sempre penetrado desta grande ideia social: que há duas classes – a primeira, naturalmente, sendo o cérebro, governa; a segunda, sendo a mão, opera, e veste, calça, nutre e paga à primeira. Dois mundos…. o jota, tendo consciência da sua superioridade intelectual, da autoridade que ela lhe confere, dispõe do mundo; ao futrica resta produzir, pagar para que o jota possa viver… Esta ideia de divisão em duas classes é salutar porque, assim educados nela, os que saem das universidades de verão não correm o perigo de serem contaminados pela ideia contrária… de que o futrica pode saber tanto como sabe o jota…
Outra vantagem das universidades de verão é a organização dos estudos. O estudante ganha o hábito salutar de aceitar… os princípios adotados, os dogmas provados, as instituições reconhecidas. Perde a funesta tendência de querer indagar a razão das coisas, examinar a verdade dos factos… Se se acostuma a mocidade a não receber nenhuma ideia dos seus mestres sem verificar se é exata, corre-se o perigo de a ver, mais tarde, não aceitar nenhuma instituição do seu país sem se certificar se é justa…”
E, assim ilustrados, os jotas são depois nomeados como assessores, adjuntos, consultores, chefes de gabinete, secretários de Estado e ministros.
Longe de mim dizer, no caso vertente, que foi mais um boy a ser contratado, até porque a sua experiência de dois meses na área fiscal de uma grande consultora pode servir-lhe de abono. Mas, e com essa ressalva, o episódio vem mais uma vez lembrar a prática de favorecer os fiéis com cargos públicos para que não estão preparados, com grave prejuízo para os serviços e os cidadãos. Não há especialistas, por melhor que seja a sua formação, com dois meses de experiência profissional – um absurdo que ainda se agrava quando a remuneração de tais especialistas em início de vida chega a equivaler ao ordenado de um médico especialista graduado com anos de carreira.
O Conde de Abranhos chegou a ministro da Marinha e só 18 meses depois da nomeação ficou a saber onde ficava Timor. E tal como o Conde foi gerando novos barões ao serviço da sua imagem, também agora os boys, cedo alcandorados a altas funções, vão criando anéis de proteção com novos baronetes, num círculo cada vez mais impenetrável. Com a agravante de que já nem de Timor precisam de saber. E nada também sabendo do que falta aos cidadãos, sabem muito bem do que precisam para sobreviver.
Mas, como dizia o Conde, eles são “o cérebro e governam”; aos outros, resta a “mão, que opera, veste, calça, nutre e lhes paga”.
Caricatura? Creio bem que é o espelho desta democracia sem qualidade que os novos Abranhos nos vão servindo.
Economista e gestor
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
pcardao@gmail.com