No passado sábado, José António Saraiva publicou no jornal SOL um artigo questionando a função dos advogados. O artigo é, a vários títulos, lamentável, primeiro porque pretende reduzir a advocacia à defesa de causas, quando nunca foi essa a sua exclusiva função, e segundo porque acha que, mesmo na defesa de causas, o advogado, afinal, nem sequer deveria defender a causa, mas antes defender a verdade, não pedindo a absolvição do seu constituinte quando ele fosse culpado.
Há neste artigo enormes confusões. Em primeiro lugar, o art.o 1.o da lei 49/2004, de 24 de Agosto, é claríssimo no sentido de que os actos próprios do advogado não abrangem apenas o mandato forense e a consulta jurídica, mas também a elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos (designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais), a negociação tendente à cobrança de créditos e o exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários. E ainda bem que assim sucede pois, se esses actos fossem praticados por profissionais não qualificados nem sujeitos a uma deontologia própria, os cidadãos seriam altamente lesados pela sua actuação.
Já relativamente à defesa das causas, José António Saraiva parece esquecer que o arguido só tem o dever de responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade (art.o 61.o, n.o 6, b) CPP) e que o advogado tem por lei um dever de sigilo profissional (art.o 92.o do EOA), não podendo naturalmente actuar em tribunal em sentido contrário à posição do seu constituinte, que lhe compete defender. E por muito que José António Saraiva apreciasse ver os arguidos sumariamente condenados, apenas porque a opinião pública fez esse juízo com base em notícias de jornais, num Estado de direito, os julgamentos fazem-se nos tribunais, com todas as garantias de defesa. E a primeira garantia de uma defesa é precisamente a de que os cidadãos sejam representados competentemente por um advogado, que efectivamente os defenda, em vez de ajudar à sua condenação.
Pelo contrário, ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade, sendo para esse efeito que apresenta a acusação. Mas o Ministério Público é composto por magistrados, que têm o dever de inclusivamente propor a absolvição dos arguidos se não houver provas de que praticaram o crime. É por isso que vemos com grande apreensão a recente notícia de que foram dadas instruções a magistrados para que não pedissem a absolvição dos arguidos nos processos mediáticos, como se o facto de um processo ser mediático justificasse uma alteração do comportamento processual de um magistrado perante as provas produzidas em julgamento.
Só que a função dos magistrados é diferente da dos advogados e a estes compete defender o seu constituinte, independente do juízo que a opinião pública faz dele. Já houve muitos processos em que o arguido estava condenado na comunicação social e na opinião pública e foi depois absolvido em tribunal, porque teve um advogado que o soube defender. Recordemos o dramático caso de Asia Bibi, a mulher cristã condenada à morte no Paquistão porque tinha bebido água de uma fonte reservada a muçulmanos, o que foi considerado um acto de blasfémia, que suscitou indignação geral. Essa mulher passou oito anos no corredor da morte e só foi libertada no início deste ano porque o seu advogado Saif-ul-Malook, muçulmano, conseguiu reverter a sua condenação com fundamento na insuficiência de provas. É essa a função nobre do advogado: lutar pela justiça e defender o seu cliente, mesmo quando uma turba pretende a sua condenação.
É preciso, por isso, que todos respeitem o trabalho dos advogados em defesa dos seus constituintes, independentemente da avaliação que a opinião pública faça dos factos pelos quais os visados são acusados. Ninguém está livre de um dia ter qualquer problema judicial e, nessa altura, quererá seguramente ter um advogado que o defenda eficazmente em tribunal.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990