António Jaime Martins. “Acho que hoje a ordem e a figura do bastonário não contam para nada. São meramente decorativas”

António Jaime Martins. “Acho que hoje a ordem e a figura do bastonário não contam para nada. São meramente decorativas”


António Jaime Martins, presidente do conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, lamenta a falta de atuação e o silêncio do bastonário.


Esta entrevista é-lhe feita na qualidade de presidente do conselho distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, ainda que não se possa ignorar que é também candidato a bastonário. Qual é o balanço que faz do seu trabalho nos últimos anos?

Creio que os mandatos podem sempre correr melhor. Eu concluo agora o segundo à frente do conselho regional de Lisboa, que é o maior conselho do país, com cerca de 14 mil advogados inscritos, três grandes comarcas. Eu e a equipa que lidero desde 2014 estivemos em todos os grandes combates da advocacia. Estivemos na questão da reforma do mapa judiciário em 2014, onde com alguns membros das delegações da circunscrição de Lisboa evitámos que alguns tribunais perdessem competências e outros fossem encerrados – para nós, é límpido que a questão da proximidade da justiça é importante para a cidadania e para o tecido empresarial. Estive ao lado dos advogados na questão do crash no Citius, que se verificou sobretudo nesse ano. 

E mais?

Em 2015, penso que o conselho prestou um serviço importante à classe quando, a propósito da alteração do estatuto da Ordem dos Advogados, impediu a liberalização dos atos próprios dos advogados. Os atos próprios estiveram na iminência de serem praticados por outras entidades que não sociedades de advogados e advogados. Em 2016, já com o Governo do PS e com a atual ministra, lutámos pela reabertura de alguns tribunais encerrados em 2014 e pela recuperação de algumas competências, e isso verificou-se. Procurando respeitar as competências do conselho regional, tenho tentado ter uma postura ativa de defesa da profissão. Entendo que a ordem tem de ter um papel ativo quer na sociedade civil, quer junto da comunidade judiciária, quer junto dos próprios advogados, e não me revejo atualmente na ordem, que é uma ordem de desconstrução da profissão.

Não me respondeu ao que correu mal nestes seus dois mandatos…

Penso que dentro do limite daquilo que consegui fazer, correu bastante bem. Hoje, naquela que é a principal competência reconhecida aos conselhos regionais, que é administrar formação contínua aos advogados, o conselho regional de Lisboa é reconhecidamente uma marca formativa de excelência, com conferências para 700, 800, 900 advogados. No ano passado terminámos com 12 mil participações de advogados em conferências nossas, este ano já vamos com 15 mil. Paulatinamente temos vindo a permitir que haja uma formação, que é um problema sério que os advogados têm, cada vez mais especializada e que abranja as alterações legislativas que vão ocorrendo, mas também que permita aos advogados a especialização. O balanço que faço deste mandato – deste e do outro que o antecedeu – é bastante positivo.

Quais são as principais divergências com o bastonário?

Há muitas. Para já, entendo que uma ordem que é meramente uma ordem de autorregulação, que já não envia a revista aos advogados, já não envia o boletim aos advogados, que se limita a cobrar cotas, que não lhes presta serviços visíveis, que não interfere visivelmente no processo relativo… A ordem, neste momento, não tem uma proatividade em matéria legislativa de propor ao Governo e à Assembleia da República a adoção de medidas legislativas que pudessem melhorar a vida dos cidadãos, que pudessem melhorar o acesso à justiça, a proteção jurídica que os cidadãos carenciados têm, que pudessem, já agora, beneficiar as prerrogativas dos advogados, quer na defesa do segredo profissional quer, por exemplo, em matérias de contribuições para a caixa de previdência. Isto divide-me de forma bastante visível do bastonário. E porquê? Porque o bastonário esteve envolvido na negociação de uma lei que esteve quase a ser aprovada e, à última hora, conseguiu convencer o Ministério da Justiça a tirá-la da votação no último dia de votação na Assembleia da República. E tem que ver com uma lei de alterações ao sistema de acesso ao direito à justiça que subalterniza o papel do advogado, que torna o solicitador o centro da ação nesse sistema, diminuindo as garantias que são dadas aos cidadãos porque, obviamente, o solicitador, com todo o respeito, tem uma atuação menos qualificada que a dos advogados e nem sequer tem experiência de foro. Nós fomos assistindo na justiça, nos últimos anos, a uma sistemática criação da figura do defensor público, que é uma figura dependente do Ministério da Justiça e que, portanto, não confere aos cidadãos a independência que o advogado tem, porque não depende nada do Ministério da Justiça. 

Como assim, o que teme com isso?

Neste momento não temos defensores públicos, temos advogados livres e independentes que se inscrevem junto da ordem para participar no sistema de acesso ao direito e que patrocinam de forma livre e independente um cidadão, pois o Estado tem de lhes pagar esse patrocínio. O que digo é que sou um defensor do atual modelo e entendo que não deve haver uma restrição. Os advogados têm de participar de forma condigna neste sistema; portanto, não há nenhum agente do judiciário que trabalhe a preços de 2004. Nenhum. Aliás, nós vimos isso recentemente nas greves dos funcionários oficiais de justiça, nas greves dos senhores magistrados judiciais, em que todos conseguiram ver melhorada a sua situação. Nenhum deles era pago a preços de 2004. Os advogados têm uma tabela de honorários de 2004.

E um sistema de defensores públicos deixava tudo mais dependente do Ministério…

Claro, o sistema do defensor público, que é o que o Ministério ao longo do tempo sempre quis, visa criar um corpo de defensores que depende funcionalmente do Ministério da Justiça, que lhes paga uma prestação certa ao final do mês. Isto, não. Isto é matar a defesa. Isto é matar o direito da defesa.

Sabe que hoje em dia, nos tribunais, um advogado nomeado pelo Estado é tratado como defensor público.

Não, não.

Posso dizer-lhe que, no âmbito de um megaprocesso recente, um arguido tinha uma defensora pública, uma advogada, e o coletivo de juízes referia-se sempre à senhora advogada como a senhora defensora, e aos outros advogados como senhores advogados.

O senhor magistrado faz mal. E esse anátema que é lançado no sistema judiciário, tornando menos digno o exercício do patrocínio forense quando ele é exercido por conta de pessoas que não têm possibilidade, porque está a dar-me um exemplo que pode ser visto… Se a colega tivesse reportado isso ao conselho regional, garanto-lhe que tinha pedido explicações ao senhor magistrado e ao Conselho Superior da Magistratura sobre o que se tinha passado. Isso é uma discriminação inadmissível.

E que não é comum, daquilo que tem conhecimento?

Normalmente, os advogados não me reportam. Tenho várias situações que são reportadas, mas que abrangem de forma indiscriminada advogados constituídos com um mandato passado e advogados nomeados no sistema de acesso ao direito. As situações são-me reportadas em bloco, e não porque um advogado que é nomeado fora do sistema é tratado de uma forma e um advogado que é nomeado dentro do sistema de acesso ao direito e à justiça foi tratado de outra forma. Até agora, é a primeira vez que ouço essa situação e, efetivamente, os colegas, quando têm situações dessas, devem reportar ao seu conselho regional.

Disse que, hoje em dia, as funções que a ordem tem são quase de autorregulação. Em junho perguntei ao bastonário o balanço que fazia do seu bastonato e foi-me respondido: “Em primeiro lugar encontrámos uma casa que tinha problemas e, logo no primeiro ano de exercício, conseguimos diminuir as despesas em 1,8 milhões de euros. É um pouco como se apresenta um espetáculo, as pessoas não sabem o que está nos bastidores”. Terá sido esse trabalho de bastidores que o impediu de fazer outras coisas?

Acho que o senhor bastonário e o seu conselho geral não fizeram qualquer reforma estruturante. Não propuseram nada de estruturante para a justiça, nem de muito estruturante nem de pouco estruturante, não conheço nenhuma proposta do bastonário para a justiça. Falou nas custas judiciais, que é uma chaga que todos nós, advogados, identificámos já há algum tempo. Elegeu isso como uma das suas prioridades, e chegamos ao final do triénio e as custas judiciais mantêm-se exatamente iguais. O apoio judiciário foi objeto de uma tentativa de alteração por parte do Ministério da Justiça que, se o bastonário fosse reeleito, era conseguida agora nos primeiros meses de 2020. O bastonário sabe que a justiça teve problemas de celeridade, sabe que a justiça, ao nível tributário, ao nível do direito administrativo, ao nível da família, de menores, ao nível das execuções, o senhor bastonário sabe tão bem como eu e como todos os advogados que exercem e que vão aos tribunais que há problemas com a celeridade da justiça. 

Já teve advogados de outros conselhos regionais, por força desse papel mais interventivo que diz que tem, a procurarem-no?

Não, tenho advogados da minha circunscrição. Os advogados sabem que é na circunscrição. Na maior parte dos processos, até pela presença aqui do DCIAP de Lisboa e do chamado Ticão, esses processos, digamos, mais musculados correm aqui em Lisboa, e admito que haja mais esse problema de sistemática violação do segredo profissional. Não vi nem essa postura pública do bastonário, nem para dentro da ordem. O bastonário não consulta os conselhos regionais para nada. Não consultou aquando das alterações, e fomos surpreendidos pelas alterações do acesso ao direito e à justiça, nem discute nenhum assunto estruturando o direito da justiça portuguesa com os conselhos regionais. Falo por mim: o bastonário, em três anos, não me auscultou sobre nada, sobre nada. Este bastonário escondeu durante três anos que há um grupo de trabalho da OCDE, em funções junto do Ministério da Justiça, que defende a liberalização dos atos da advocacia preventiva. 

Como assim?

Isto foi escondido pelo bastonário de toda a classe. Só recentemente, no Dia do Advogado, é que, até por interpelação minha, o bastonário acabou por revelar que havia efetivamente um grupo de trabalho da OCDE que defendia que os serviços de advocacia preventiva devem ser praticados por qualquer empresa. Uma gasolineira que tenha um advogado, um contabilista que tenha um advogado e, portanto, uma qualquer consultora que tenha um advogado pode realizar livremente este tipo de ato. Isto é verdadeiramente inadmissível, porque nós temos regras que, enquanto profissionais, temos de cumprir, e que passam pela defesa dos interesses do cidadão e não podem passar pela mercantilização da profissão. Estas regras que os advogados têm de cumprir não são aplicadas aos contabilistas, aos auditores, às consultoras.

Acha que, independentemente disso, não existe já uma mercantilização da profissão?

Mercantilização que temos de evitar.

Mas existe?

Não sei se existe. Tenho de admitir que, pontualmente, pode existir. Porque o mercado é um mercado concorrencial. A ordem não sabe proteger as sociedades de advogados. Por exemplo, a ordem cria às sociedades de advogados – sejam elas pequenas, grandes ou médias – um problema fiscal de desvantagem concorrencial quando permite, por exemplo, em matérias de transparência fiscal, que as sociedades de advogados continuem a ser objeto de transferência fiscal, tornando-as menos concorrenciais. É um regime fiscal penalizador – penalizador para as sociedades, para a pequena sociedade de dois ou três colegas que exercem a sociedade, penalizador para as sociedades com dez advogados ou penalizador para as sociedades com 100 advogados. Como mantermos regimes fiscais e, efetivamente, a ordem não tem contribuído para que a profissão se modernize, por exemplo. No meu programa proponho uma série de medidas que têm que ver com a atualização da atual plataforma de suporte à atividade da ordem e a criação de plataformas novas que permitam interagir com as plataformas públicas, permitindo tirar os advogados das repartições públicas. Entendo que os advogados não têm de estar nas filas das repartições públicas, entendo que isso permitiria ao Estado libertar pessoas do atendimento ao balcão e permitiria aos advogados fazer o trabalho no seu escritório.

Como vê que em países da América Latina, como o Brasil, o cidadão tenha facilidades na consulta de processos online?

É verdade. A digitalização dos tribunais começou há dez anos, tem sido muito paulatina, e a ordem, que deveria ser um parceiro fundamental do Ministério da Justiça nesta digitalização, tenta passar por cima dos direitos das pessoas. Fico preocupado quando, na recente alteração ao Código do Processo Civil, o legislador diz que a partir de agora se vai adotar uma linguagem clara nas notificações e comunicações ao cidadão. A comunicação tem de ser através de uma linguagem simples. Concordo que o cidadão tenha de perceber as comunicações, mas quando chegamos ao extremo, como está previsto, de os cidadãos, quando a notificação for complexa, em vez de receberem os papéis e os documentos a que se refere, passem a receber um código de acesso à papelada e podem ir ao tribunal… Se a simplificação é esta, corremos o risco de simplesmente as pessoas não perceberem a seriedade do assunto. Isto não é simplificar, é obliterar os direitos das pessoas. Quando um Estado chega à utopia e à cegueira de levar a simplificação do mundo da justiça ao facto de poder haver um cidadão que não percebe que está a ser objeto, que é réu numa ação, a ordem tem de dizer basta! O bastonário e o seu conselho geral têm de acompanhar a digitalização.

Acredita na fiabilidade da votação eletrónica da ordem?

Não sou capaz de responder. Posso dizer que, a dias da primeira volta, ainda não tinha sido dada nenhuma explicação nem aos advogados nem ao presidente do conselho regional de Lisboa sobre como o sistema está a ser implementado.

E deveria ter sido dado?

Acho fundamental! Estamos a dias da primeira ronda de votação, que são 27, 28 e 29. Os advogados aproximaram-se desta data sem saber quais as características do sistema que permitem garantir o segredo do voto e a fiabilidade do sistema, ou seja, que o voto que eu emito no meu telemóvel é o recebido no sistema e que dessa forma é contabilizado.

Vai votar online?

Ainda não decidi. 

O que seria mais sensato?

Eu propus um sistema misto de votação à distância por correspondência e criando urnas eletrónicas num dia para os advogados que quisessem votar presencialmente. Mas os membros do conselho geral que terão estudado o sistema de voto eletrónico dizem que seria muito mais barato que o sistema por correspondência. Isso é totalmente falso: neste momento, o bastonário adjudicou um sistema de voto que custa 162 mil euros só para esta votação – não há aquisição de nada, é um serviço -, já contratou um estudo para ver se as exigências da Comissão Nacional de Proteção de Dados estão a ser cumpridas, pelo que vai pagar mais 18 mil euros (sem IVA). A conta já se aproxima, por isso, dos 190 mil euros.

Sobre a necessidade de credibilizar a profissão, acha que a ordem, para conseguir essa credibilização, tem de ser firme a atuar em casos de advogados que estão a contas com a justiça ou a ser investigados? Como exemplo, temos Domingos Duarte Lima, que já foi condenado; foram também públicas notícias de uma investigação a Daniel Proença de Carvalho, etc…

Neste momento, acho que a ordem e a figura do bastonário não contam para nada. São meramente decorativas. Não conhecemos intervenção da ordem no processo legislativo. Naquilo que era normal um bastonário intervir em defesa do segredo profissional quando houve ataques a advogados em processos que são mediáticos, o bastonário esteve calado, enquanto o presidente do conselho regional de Lisboa proferiu uma defesa pública dos colegas. Não se viu o bastonário dizer nada quando se assistiu a suspeitas de distribuição de processos, como é que estavam a ser feitas. Há advogados que me dizem que determinados processos, sobre determinados temas, vão para determinados juízes. As regras do processo têm de ser cumpridas, são regras constitucionais, e há um papel que a ordem deve ter. Será que os megaprocessos são bons para a justiça? E será que os tribunais estão prontos para gerir megaprocessos? Será que não é preferível dividir alguns processos? Será que é possível exercer defesa nestes casos, com prazos curtos para analisar tudo? Acho que não é. 

Compreendo, mas…

Tenho advogados que me dizem que litigam num tribunal com um determinado magistrado e que esse magistrado, porque sou veemente na defesa que faço, pediu a minha condenação numa ação judicial no pagamento de um milhão de euros. Esta repressão, mesmo que a ação não dê em nada, leva a que o advogado tenha de pagar logo as taxas de justiça. E o senhor magistrado está isento de custas.

Fugiu à pergunta que lhe fiz, que é clara: em casos, como os que referi, de advogados condenados ou que estejam a ser investigados, por uma questão até de credibilização e credibilidade, a ordem tem ou não de ser mais firme? E dou-lhe o exemplo da Ordem dos Médicos, que se pronunciou no caso do bebé que nasceu com malformações, antes de qualquer decisão transitada em julgado…

Sou uma das pessoas que defende que o estatuto da Ordem dos Advogados carece de uma revisão da parte disciplinar que permita a adoção de medidas quando estão em causa, por exemplo, intervenções mediatizadas de advogados que muitas vezes não cumprem o estatuto. E os colegas ficam na dúvida se houve alguma ação. Não se sabe porque o estatuto não deixa. E deveria permitir uma atuação preventiva em relação a, por exemplo, advogados que vão para a televisão falar dos seus casos e dos dos outros. O código de deontologia tem de ser adaptado à nova realidade, ao mundo de justiça mediatizado. Agora, sejamos realistas, não podemos condenar advogados sem que sejam condenados na justiça penal…

Mas dei-lhe um exemplo de um condenado com trânsito em julgado…

Bom, mas se está a cumprir pena está claramente impedido de exercer a profissão. Muito sinceramente, em termos disciplinares, se algum processo está a correr ou se está cumprido ou não… agora, advogados condenados só porque há acusações… meus caros amigos, o cidadão que tenha paciência. Temos de ter fundamentos sólidos para suspender um advogado de funções.

O que acha da manutenção de Francisca Van Dunem na pasta da Justiça?

Acho que outra direção da ordem teria conseguido para o cidadão, para as empresas e para o sistema de justiça em geral outro tipo de colaboração com a ministra da Justiça. Se merecer a confiança dos meus colegas em janeiro, vou ter uma relação de cooperação com o Ministério da Justiça, mas não vai ser uma relação sorridente, de aceitar tudo o que o Ministério da Justiça quiser aprovar. Não vou ter nenhum tipo de subalternização da ordem para com o Ministério, que é o que tem acontecido com a ordem nos últimos três anos. Tem sido submissa. A senhora ministra da Justiça tem capacidade de diálogo, e de ouvir e de perceber as vantagens para o sistema judiciário de propostas que a ordem possa fazer-lhe. Se há pessoa que teve sensibilidade para a questão dos inventários foi a senhora ministra da Justiça, que constituiu um grupo de trabalho em 2018. O trabalho foi discutido na Assembleia da República. Nos últimos três anos houve uma inatividade da ordem sobre a matéria, a ordem não foi capaz de exercer essa sua missão.