Em Adis Abeba e na Oromia, centenas de pessoas queimaram o livro do mais recente Nobel da Paz. Menos de duas semanas depois de receber o prémio, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, foi acusado de ameaçar o dono de um media da etnia oromo, Jawar Mohammed, recentemente regressado do exílio, que poderá enfrentar Abiy nas eleições de 2020. “Abaixo, abaixo Abiy”, gritaram manifestantes, armados com bastões. Mais de 400 foram presos, após confrontos entre oromos e amaras que causaram 86 mortos, anunciaram as autoridades na segunda-feira.
O Governo garante que só dez mortes foram em confrontos com as forças de segurança, mas testemunhas contaram que agentes abriram fogo indiscriminadamente sobre civis, incluindo crianças. “Como é que disparar assim sobre as pessoas pode ser a resposta apropriada?”, questionou Temesgen Ababa, um jovem de 17 anos baleado no peito, em declarações ao Guardian. O episódio é representativo das tensões no país de Abiy Ahmed, que ganhou o Nobel da Paz este ano por pôr fim à guerra com a Eritreia, que destabilizava toda a região, bem como por medidas para democratizar a Etiópia.
Afinal, trata-se de um país com 88 línguas e mais de 80 etnias, governadas por um Estado autoritário que, formalmente, passa por democrático, baseado num federalismo étnico em risco de colapsar. E muitos opositores do regime, incluindo boa parte dos oromos – a etnia mais numerosa, que se queixa há muito de discriminação –, não esquecem o passado. “Já ouvi da boca de vários oromos, mais ou menos favoráveis à independência: ‘A Etiópia não é o único país não colonizado de África. É um país colonizado não por europeus, mas por africanos’”, conta Manuel João Ramos, antropólogo do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, especializado na Etiópia.
“Só uma parte é nação histórica. É a Abissínia – Amara, Tigrínia e Eritreia, as chamadas terras altas – e as conquistas do séc. xix, com um influxo muito grande de oromos”, explica Ramos, acrescentando que etnias mais pequenas e parte dos oromos “sofriam razias periódicas para aquisições de escravos” por parte dos senhores abissínios. E o sentimento de injustiça mantém-se com a permanência no poder da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF na sigla inglesa), uma coligação de partidos étnicos historicamente dominada pelas elites tigrínias da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF na sigla em inglês) – que derrubou a ditadura comunista da junta militar Derg.
Aos conflitos entre etnias somam-se as tensões religiosas “num país tradicionalmente visto como um bastião cristão ortodoxo num mar árabe” mas onde cresce a população muçulmana e cristã evangélica, explica Alexandra Magnólia Dias, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, especializada no Corno de África. Face a tudo isto, o que mantém a unidade do Estado federal etíope “não é a legalidade, não é a democracia, não são os direitos humanos ou a ONU. É a força das armas, o exército federal, os que usam uniforme azul – que em momentos de crise, na prática, tomam o poder”, assegura Ramos.
Foi nesse contexto que Abiy se tornou primeiro-ministro, o ano passado, com apenas 42 anos – o primeiro chefe de Executivo de origem oromo. De uma família muçulmana, convertido ao cristianismo evangélico, com família cristã ortodoxa e amara, Abiy incorpora a visão federal do Estado etíope. E apesar de ser "um júnior numa África de homens fortes", é sobretudo "um produto do partido no poder", assegura Alexandra Magnólia Dias. “Foi criado na guerrilha desde os 18 anos, depois coronel e chefe dos serviços secretos de criptografia”, acrescenta Ramos.
Contudo, mal formou Governo, Abiy levou a cabo reformas. Com a libertação de milhares de presos políticos, o fim do estado de emergência e da proibição de vários partidos, “uma espécie de Abiymania está a varrer o continente”, escreveu a Al Jazira o ano passado. Mas o seu grande momento foi mesmo o fim da guerra fria com a Eritreia.
“São elementos importantes, mas encaixam num mecanismo de propaganda e autopreservação”, considera Manuel João Ramos. Alexandra Magnólia Dias recorda que antes da chegada ao poder de Abiy, o país enfrentou ondas de protestos, “por contágio das Primaveras Árabes e por clivagens internas, sobretudo na região de Oromia”.
A região esteve “em convulsão total, sob estado de emergência, com as tropas federais no terreno, uma administração federal direta”, nota Ramos, que vê em Abiy um líder “que gere os novos tempos” enquanto o EPRDF “tenta manter-se no poder, com alguns sacrifícios”.
É difícil saber quão grande é a oposição a Abiy. “Na Etiópia não há propriamente barómetros de opinião”, acautela o antropólogo. Mas a principal oposição foi dos sacrificados, “os revolucionários que perderam o controlo sobre a administração federal” – os tigrínios do TPLF. “O resto da população não é consultada para estas questões”, nota Ramos, explicando que, durante anos, os dirigentes do TPLF, “através de uma espécie de PPP, as chamadas empresas e indústrias do partido, criaram uma série de oligarcas e uma corrupção sentida por boa parte da população”.
Desentendimento entre amigos No final dos anos 90, o TPLF e a Frente de Libertação do Povo Eritreu (EPLF na sigla inglesa), liderada pelo atual Presidente da Eritreia, Isaias Afwerki, enfrentaram-se pelo controlo de Badme, uma pequena vila sem grande valor estratégico ou económico. A guerra fronteiriça surpreendeu o mundo, dado que os tigrínios do TPLF foram “o parceiro júnior dos eritreus, que os treinaram, armaram e alimentaram. Partilham a língua, o tigrínio, há uma proximidade muito grande”, explica Ramos. E havia um projeto comum, a independência da Grande Tigrínia – ou seja, Eritreia mais Tigrínia. Mas a chegada do TPLF ao poder em Adis Abeba, em 1991, mudou tudo. “Para quê criar um país mais pequeno e pobre quando se tem na mão um país com maior potencial?”, questiona o antropólogo.
Ainda assim, foi a influência eritreia que inscreveu na Constituição etíope um artigo, único no mundo, que dá direito à secessão de regiões através de referendo – só usado no caso da Eritreia. Todas as tentativas posteriores foram goradas, como aconteceu com uma tentativa de referendo do grupo étnico sidam, do sul. “É evidente que é um artigo fantasma, o Governo federal nunca vai autorizar outros referendos”, nota Manuel João Ramos.
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