A crise climática e a crise de identidade de Hollywood

A crise climática e a crise de identidade de Hollywood


A fábrica de criação de mitos de Hollywood já se mostrou mais útil à agenda ambientalista. Hoje, entre o ativismo e a hipocrisia, é cada vez mais difícil distinguir entre heróis, farsolas e vilões.


Terá começado a soar como música para alguns ouvidos a enxurrada de notícias sobre um colapso iminente? É uma hipótese pouco explorada, mas é bem possível que o desastre ecológico e as perspetivas de ruína total estejam a transformar-se em visões tentadoras para um número crescente de pessoas. O que em tempos parecia uma simples atitude de negação reveste-se cada vez mais de um tom petulante. E sinal disso é a forma como a cultura popular parece ter voltado os canhões do maior franchise cinematográfico contra os ambientalistas.

Na semana passada, o New York Times publicou um artigo com o título: “Porque está Hollywood tão assustada com a crise climática?” A autora, Cara Buckley, chamava a atenção para o facto de muitos dos vilões nos filmes de super-heróis e ficção científica se servirem de preocupações ecológicas para arrasar a humanidade. “Os humanos deram cabo de tudo. Cresceram e multiplicaram-se excessivamente e sufocaram a vida na terra, no ar e no mar”, diz a jornalista, resumindo a lógica que está por trás das maquinações dos génios do mal que, no fundo, só querem repor o balanço natural. Um exemplo claro é a saga Avengers, cujo último capítulo se tornou o filme mais visto de sempre nas salas de cinema. Outros casos em que a crise ambiental serve de gatilho à tragédia são o último Godzilla, Aquaman, Snowpiercer, Blade Runner 2049, Interstellar ou Mad Max: Fury Road. Tudo fitas em que o futuro se desenha num cenário pós-apocalíptico ou distópico provocado por um bando de ecologistas que, tentando prevenir o colapso, congeminam algum quadro dantesco para sacudir a Terra deste infrene parasita.

Michael Svoboda, um professor de Escrita da Universidade George Washington e autor do portal multimédia Yale Climate Connections, disse ao Times que estes filmes falham ao enquadrar o problema, acomodando-o a uma intriga emocional bastante familiar, mas, pior, nem se esforçam por oferecer uma perspetiva diferente, equacionando uma transformação da sociedade bem-sucedida. No fim, o vilão leva uma trepa, os seus exércitos batem em retirada e a audiência deixa a sala tranquilizada, até porque nada se espera dela. As pessoas até podem estar a causar sérios danos ao planeta e aos ecossistemas, mas o melhor é que não se ponham com ideias, pois as alternativas seriam criminosas. Para Svoboda, os blockbusters de Hollywood estão alinhados com a propaganda conservadora que pinta os ambientalistas como agentes que falam em reduzir a poluição e impor restrições ao nosso estilo de vida mas, no fundo, são maníacos capazes de levar a cabo campanhas genocidas. “Nestes filmes, aqueles que estão empenhados no combate às alterações climáticas são os sanguinários”, vinca.

É fácil pegar em qualquer discurso exigente e fazer desse que lê os mais perturbadores sinais dos nossos tempos o vilão, esse que nos avisa e sacode com as palavras mais indigestas e que nos cai em cima com a fúria enfim justificada de um pregador à antiga. Pense-se no poema “Tentações do Apocalipse”, de Jorge de Sena, que nos diz: “[…] O mundo precisa de morte. Não da morte/ com que assassina diariamente quantos teimam/ em dizer-lhe da grandeza de estar vivo./ Nem da morte que o mata pouco a pouco,/ e de que todos se livram no enterro dos outros./ Mas sim da morte que o mate como um percevejo,/ uma pulga, um piolho, uma barata, um rato./ Ou que a bomba venha para estas culpas,/ se foi para isto que fizemos filhos./ Há que fazer voltar à massa primitiva/ esta imundície. […]”

De resto, os vícios de uma cultura embevecida pelas celebridades, que leva a que tantas, à margem das suas carreiras de sucesso, sirvam como porta-vozes dos grandes desafios e injustiças do nosso tempo, não deixa de cobrar o seu preço. Exemplo disso mesmo foi a forma como tantas estrelas se puseram a jeito recentemente, tornando-se alvo de justificadas críticas. No início do mês foi noticiado que muitas não viram a menor contradição em gozar os maiores luxos ao acorrerem a uma exclusivista conferência da Google sobre alterações climáticas num resort na Sicília. Foram vistos a aterrar na ilha italiana 114 jatos privados e, durante três dias, enormes iates e limusinas ajudaram a compor o idílio.

Leonardo DiCaprio, Katy Perry, Orlando Bloom, Harry Styles, Nick Jonas, Priyanka Chopra e Naomi Campbell terão sido algumas das celebridades que se juntaram aos multimilionários que entraram na lista desta conferência, organizada pelos fundadores do motor de pesquisa, Larry Page e Sergey Brin. Segundo a imprensa italiana, o evento terá custado 20 milhões de dólares. “Seria possível imaginar alguma coisa mais hipócrita do que um bando de milionários a meterem-se nos seus jatos privados e viajarem à volta do mundo para se juntarem em iates a discutir o futuro do nosso planeta?”, lia-se numa das reações no Twitter.

Segundo os cálculos do New York Post, a frota dos famosos largou 784 mil quilogramas de CO2 no ar num evento em que terão sido discutidos planos para baixar a nossa pegada ecológica. E se todos os relatos sobre a conferência se resumem a rumores, isso deve-se ao facto de a organização ter pedido aos convidados que assinassem acordos de confidencialidade.

No meio desta absurda e parodiável bagunçada entre o alarme e a hipocrisia, no que toca a refocar a questão, o dia de ontem ficou marcado pelo discurso de Javier Bardem na sede das Nações Unidas, em Times Square, apelando aos líderes mundiais que firmem um tratado global para proteger as vastas extensões de água do planeta. “Os nossos oceanos estão à beira do colapso e todos somos, em parte, responsáveis por isso. Agora temos de fazer alguma coisa para deter esta ameaça”. O ator espanhol, que está ligado ao Greenpeace, propôs aos delegados da ONU que apoiem a criação de uma rede mundial de santuários marinhos de forma a proteger a vida nos oceanos.

Mostrando-se consternado pelo facto de ter falado perante uma sala onde muitas das cadeiras estavam vazias, Bardem enumerou alguns dos principais desafios à vida marítima: a contaminação dos plásticos, a acidificação da água, a sobrepesca, as prospeções em busca de petróleo e outros recursos energéticos… “O mundo está de olhos postos em vós no momento em que negoceiam este tratado. Não podemos dar-nos ao luxo de cometer mais erros”, disse na terceira sessão da conferência intergovernamental lançada em setembro do ano passado. Até ao final do mês, o objetivo é conseguir traçar as linhas gerais de um tratado sobre as águas internacionais e o mar, que cobrem cerca de 46% da superfície terrestre.