Não estará fresca na memória das audiências a última vez em que Julia Roberts fez de um papel no grande ecrã motivo de sobressalto. E se envelhecer não é para maricas, como disse Bette Davis, a via parece ainda mais estreita e espinhosa para quem resiste a essa lei em Hollywood. Acontece que, por vezes, a beleza de uma atriz de primeira linha consegue arrebatar-nos de tal maneira que todas as exaltações vão para a graça natural, ofuscando-se a deliciosa precisão de um raro talento. Então, as rugas podem romper o feitiço e torna-se mais difícil explicar porque o encantamento persiste. Se o imenso sorriso de Julia Roberts não perdeu inteiramente o seu poder, já não ilumina uma sala de cinema ao ponto de as bilheteiras se lhe renderem.
Recentemente, quando foram anunciadas as nomeações para os Emmys, uma das surpresas surgiu de Roberts não ter merecido a indicação como protagonista da série da Amazon Homecoming. Ainda que a estreia de Roberts à frente de uma produção televisiva tenha conquistado os críticos, foi uma aposta discreta da atriz, e num serviço de streaming que ocupa a terceira posição face à Netflix e à HBO. E, no entanto, no rescaldo das nomeações, a reação da atriz ao que só pode ser visto como um lapso dos prémios Emmy provou a sua suprema elegância. Tanto assim foi que a CNN lhe atribuiu o prémio pela melhor resposta ao anúncio das nomeações: “Julia Roberts é tão boa a aceitar prémios que se tornou até perita a reagir com graciosidade quando é ignorada”. Em vez de se lamentar, a eterna pretty woman consolou-se por, ao menos, ter aparecido “em excecional companhia” entre aqueles grandes nomes que não foram considerados para os prémios. George Clooney e Emma Stone seguiam-se a Roberts nas notícias que faziam a lista dos principais nomes desprezados pelos Emmys.
O certo é que Roberts tem todas as razões para se sentir alvo de uma grosseira injustiça. Os dez episódios da série na qual assina também a produção executiva deram-lhe margem para uma das mais minuciosas e exatas interpretações da sua carreira. Uma, não: duas. Porque a série acompanha-a como Heidi Bergman em duas linhas temporais e num argumento que monta com uma subtileza arrepiante um thriller psicológico formidável, Roberts surge-nos como um puzzle em que o passado e o presente trocam peças entre si numa tensão em que, através de cada lacuna, cada momento de suspensão, quem está a ver dá por si a testar cenários, traçar conjeturas. Porque a riqueza desta história adaptada a partir de um podcast de ficção com o mesmo nome (da autoria de Eli Horowitz e Micah Bloomberg) cria uma atmosfera de tal modo tensa que se torna um convite irrecusável para a nossa tentação inquisitiva, como se fosse imperioso descortinarmos o desenlace. Na experiência emersiva desta série, na meia hora de cada episódio há algo como a sensação de se estar a apanhar fragmentos de um código sobre uma ameaça iminente, e as sugestões de uma ominosa conspiração envolvendo uma parceria entre uma imensa corporação que vende toda uma gama de vulgares produtos domésticos e o exército norte-americano começa aos poucos a ganhar ares de “uma distopia sobre esta fase avançada do capitalismo”, como assinalou o crítico da New Yorker Troy Patterson.
Homecoming é realizada por Sam Esmail, o responsável por Mr Robot, essa audaciosa série protagonizada por Rami Malek (galardoado com o Óscar de Melhor Ator depois de ter encarnado Freddie Mercury) que vai já na sua terceira temporada. Esta conquistou uma vasta audiência explorando o maximalismo numa narrativa desenhada como uma montanha-russa, com um intrincado labirinto de conspirações e desvios desconcertantes. Assim, como James Poniewozik, crítico do New York Times, apontou, a série que assina na Amazon Prime é quase uma destilação das suas experiências anteriores. Com um plano de rodagens concentrado em poucas semanas, cada episódio é marcado por um ritmo levemente distinto, como movimentos dentro de uma sinfonia, compassado, que se dirige aos nossos nervos, em que temos sempre a sensação de estar a atravessar um crime – só que estamos ainda na véspera do incidente, não sendo claro exatamente quem é a vítima e quem são os cúmplices.
Sendo adaptada de um podcast, há uma mestria evidente na forma como Esmail doseia os estímulos e se mantém fiel a um efeito de oclusão. Na sua versão original, a história é apresentada de forma telegráfica, através de um conjunto de gravações de áudio que foram encontradas: desde conversas telefónicas a sessões de terapia gravadas, mensagens de voz… E a técnica, aqui, tem a ver com não introduzir ruído, fazer-nos contemplar as cenas como se fossem os contornos daquilo que, de olhos fechados, poderíamos imaginar a partir daquelas vozes. O aspeto principal que se preserva é esse estado de alerta, pois, quando fechamos os olhos, tudo o que ouvimos ganha uma outra reverberação e o próprio silêncio adquire uma tonalidade mais sugestiva.
Não faltou quem apontasse nesta operação uma das mais sensíveis homenagens a Hitchcock, com os longos planos em que, propositadamente, há algo que parece deslocado. Há ângulos de câmara que por si só geram desconforto e constroem um nervosismo que serve maravilhosamente o enredo. Como sublinhou Poniewozik, a opção visual mais marcante é o próprio foco da câmara. As cenas que decorrem em 2018 são apresentadas em típico ecrã panorâmico, mas na segunda linha temporal, que tem lugar quatro anos depois, as margens negras impõem-se, como se a perspetiva tivesse palas, apertando de forma claustrofóbica o enquadramento.
Por esta altura, o leitor já se dará conta de que estamos a evitar ao máximo revelar algum aspeto sobre a trama, e se há boas razões para isso, tal não deixará de ser frustrante. O título da série alude a uma espécie de instituição privada que prepara soldados vindos da guerra com transtorno de stresse pós-traumático para a reintegração na vida civil. Heidi é a terapeuta que, no decurso das sessões, começa a desconfiar de que o tratamento – que além da terapia envolve uma forma de medicação bastante intrusiva em que, às tantas, não se percebe se os soldados são pacientes voluntários ou prisioneiros iludidos –, ao invés de ter em vista a recuperação dos soldados, os usa como ratos de laboratório num ensaio que, dependendo da avaliação, poderá tornar-se extremamente lucrativo. Assim, em Homecoming, a forma como os privados lucram com a guerra é explorada por um ângulo menos óbvio, e sem se tornar uma denúncia dos aspetos mais cínicos na combinação entre os interesses militares e económicos, para lá das provocações que nos lança, como o crítico do Times refere, esta série mostra-se um mordaz estudo sobre danos colaterais. Mas porque os laços afetivos, que mesmo nas situações mais disfuncionais se criam, inspiram formas de virtude moral e heroísmo, esta ficção consegue abrir furos para respirar no tipo de tenebrosas caixas onde nos enfiaram autores como Kafka. A ganância e mesmo o absurdo e a maldade podem até ser regra mas, de algum modo, o bem aparece para lhes estragar os planos e a esperança prevalece.