Como brincam as crianças portuguesas? A pergunta deu o mote para uma investigação da Escola Superior de Educação de Coimbra. Os resultados são apresentados esta terça-feira na 1ª Conferência Estrelas & Ouriço, que quer pôr o tema na agenda nacional depois de, nos últimos anos, não terem faltado cartas de princípio sobre a importância de devolver ao quotidiano das crianças espaço para simplesmente brincarem, de preferência ao ar livre e no seu próprio ritmo. Inquiridas 1466 famílias, os investigadores concluem que a preocupação está lá, mas há uma sensação de que o tempo não chega para todas as brincadeiras. É na escola que as crianças mais brincam e a rua tornou-se um privilégio de poucos – apenas 2,2% dos pais inquiridos revelaram ser frequente os seus filhos brincarem na via pública.
A amostra abrangeu todas as zonas geográficas de Portugal, com a maioria dos inquiridos concentrados na área metropolitana de Lisboa. Aos pais, que responderam a um questionário online, eram pedidas respostas sobre os hábitos de brincadeira dos seus filhos mais novos. As idades das crianças variaram entre um e dez anos, sendo a média cinco anos de idade.
Rui Mendes, professor da Escola Superior de Educação de Coimbra e porta-voz do relatório “Portugal a brincar”, sublinha que se trata do inquérito de maior dimensão feito até hoje no país, numa área de estudo que tem vindo a dinamizar diferentes grupos de académicos. Em Coimbra, além do mestrado em Jogo e Motricidade de Infância, têm uma pós-graduação em atividade física e brincar na infância, exemplifica.
A preocupação resulta da evidência, internacional, mas também nacional, de que os hábitos de brincadeira das crianças se alteraram nas últimas décadas, num aparente paradoxo, diz o investigador. “As sociedades mais desenvolvidas relegaram para segundo plano a atividade lúdica e o brincar, até no sistema educativo. Não deixa de ser curioso que, ao mesmo tempo, se dê grande enfoque às empresas e polos de inovação que promovem momentos lúdicos para os seus trabalhadores – ginásio, matraquilhos, campos de basquetebol. Consideramos que o desenvolvimento pessoal e profissional das pessoas passam por este tipo de valências, que de certa forma fomos limitando na infância.”
O objetivo é repetir o inquérito a cada dois anos, para haver ponto de comparação, mas por agora fica um retrato do panorama atual. Os inquéritos permitem concluir que, na faixa etária em causa, o mais comum é as crianças brincarem duas a três horas por dia, seguido de brincar cinco ou mais horas. Ainda assim, comparando com as perspetivas dos pais, constata-se que a maioria das famílias entendem que as crianças não brincam tempo suficiente e “gostariam que pudessem brincar mais”, concluem os autores. A maioria dos pais apontam o tempo livre como o principal precursor do tempo de brincadeira, sendo considerado menos relevante a existência de brinquedos ou companhia de pares ou outras crianças.
As escolas são amigas da brincadeira? Para Rui Mendes, a conclusão que deve suscitar maior reflexão é o facto de hoje as escolas serem os locais onde as crianças mais brincam. Mais de metade dos pais respondeu desse forma, sendo que 30,4% referiram as brincadeiras em casa, 6,3% em casa dos avós, 4,5% o centro de atividades de tempos livres e, por fim, a rua (2,2%) – algo que os pais gostavam que fosse mais comum. A dinamização de grupos comunitários que possam devolver a brincadeira à via pública é uma das recomendações do trabalho. Rui Mendes dá o exemplo do projeto Brincar na Rua, em Leiria, que nasceu em 2016 com esse propósito.
Perceber até que ponto as escolas estarão a estimular brincadeiras livres que estimulem a imaginação das crianças e o contacto com a natureza é uma das preocupações dos autores, que recomendam aos pais que procurem fazer essa análise no momento das matrículas. Para Rui Mendes, o facto de o espaço escolar, inclusive dos recreios, ser hoje muito “padronizado” é uma limitação aos momentos lúdicos das crianças, com consequências no seu desenvolvimento mas também na própria atividade física. E dá um exemplo de um estudo feito em Coimbra com crianças de três anos que apontou nesse sentido. “Habitualmente brincam num espaço do jardim de infância. Com as educadoras, levou-se estas crianças para um jardim público. Levavam acelerómetros para monitorizar a atividade. A ideia não é criar atletas, mas perceber se as crianças, indo para um ambiente diferentes, com desafios naturais, rampas, obstáculos, tinham diferenças na sua atividade e foi isso que demonstrámos”, diz. “Muitas das escolas e até dos nossos parques infantis são hoje espaços perfeitamente padronizados. Não há um tronco virado ao contrário. Não queremos que sejam miúdos selvagens, mas têm de ter experiências desafiantes”, recomenda o investigador.
Neste campo, uma preocupação que tem vindo a soar até a nível internacional é uma componente demasiado desportiva nos recreios. Um artigo publicado nos últimos dias no diário espanhol “El País” alertava para isso mesmo, apresentando o projeto “El pati de l’escola en igualtat”, da autoria de arquitetas catalãs. Em linha com uma investigação feita na Áustria, que concluiu que o futebol ocupa o espaço central dos recreios. Em Espanha, as autores acreditam que 80% dos pátios das escolas são ‘futebolocêntricos’. “Quando observamos um pátio, geralmente vemos que há um grupo dominante (maioritariamente masculino) que ocupa o espaço central com estas modalidades de jogo, expansivas e invasivas. No contexto espanhol, a atividade por excelência é o futebol. O resto das pessoas, as meninas e os meninos que não jogam a este desporto, ficam na periferia a fazer atividades mais estáticas e ocupando uma proporção de espaço muito inferior”, frisou Helena Cardona.
Para Rui Mendes, este será um problema também nas escolas portuguesas, mas há outras tendências que podiam ser repensadas: “Quando asfaltamos uma escola inteira, quando lhe pomos relva sintética e perdemos o contacto com a terra, perdemos algumas valências promotoras da brincadeira.” E se a sujidade pode ser uma preocupação, a maioria dos pais inquiridos disse apreciar que os filhos cheguem sujos a casa, o que consideram um sinal positivo de que a criança brincou no tempo de escola. O tempo de recreio é, na visão do investigador, algo que deve ser debatido a nível nacional – não que haja uma métrica mais aconselhável, mas para se perceber se faz sentido algumas rotinas se incutem desde cedo. “Quando estamos a pedir a uma criança para entrar na escola às 9h, ter um primeiro intervalo às 11h, ter meia hora livre – em que tem de comer, ir à casa de banho e talvez brincar – e voltar a um registo de trabalho até à uma, estamos a pôr a criança a trabalhar como se estivesse numa linha de produção de uma empresa em que não se pode parar. Isto contribui muito para a aprendizagem da criança? Provavelmente não.”
Um mar de brinquedos No que toca aos brinquedos, o inquérito relevou que 30,8% das crianças tinham recebido 15 ou mais brinquedos no último ano, 29,6% entre seis e dez brinquedos, 22,2% entre 10 a 15 brinquedos e 15,3% até cinco brinquedos. A maioria dos pais aponta a “funcionalidade” como critério principal na hora da compra. Dois terços consideram que a escola disponibiliza um número suficiente de brinquedos para uma boa aprendizagem e desenvolvimento.
Se a tecnologia tem vindo a ganhar um peso crescente no quotidiano, os resultados do inquérito não deixam a equipa alarmada. Nesta faixa etária, a maioria das crianças (73,3%) tem mais brinquedos não eletrónicos. Das 65,3% que utilizam smartphones e tablets para brincar, 21,6% já tem os seus próprios dispositivos. Outras vezes as apps são instaladas nos telefones dos pais: 34,9% tem uma a três aplicações instaladas, 19,2% tem entre quatro e seis e 10,8% mais de dez apps. A maioria das crianças (53,9%) faz um uso moderado da tecnologia ao brincar no máximo uma hora por dia, indicaram os pais. A equipa assinala que estas crianças são “nativas digitais”, pelo que proibir tecnologia não será um bom mecanismo. “As novas tecnologias são um aliado extraordinário. O que devemos é criar condições para que a criança, ao mesmo tempo, esteja em contacto com ambientes naturais e com outras crianças da sua idade. As tecnologias são muito interessantes mas não brincam, não empurram, não choram, não caem, o que são atos fundamentais para o desenvolvimento do ser humano em várias vertentes”, assinala o investigador.
Mais surpreendente e positivo, diz Rui Mendes, foi perceber que se mantém o interesse nas brincadeiras e jogos tradicionais – 73,1% dos pais relatou ser comum esse tipo de jogos nos tempos livres. Esta é outra função da brincadeira, assinala o investigador, ser ponte de transmissão de memória e património cultural. “Como costumamos dizer: brincar é um assunto sério”, diz Rui Mendes, sublinhando que crianças que brincam pouco serão, mais tarde, adultos mais dependentes e com menos competências emocionais. “Sabemos que o brincar promove o desenvolvimento a nível motor, cognitivo e a própria interação social, o que são competências importantes que depois vemos serem dinamizadas em sessões de coaching em empresas, para que as pessoas aprendam a trabalhar em equipa. É algo que se começa a aprender com oito ou dez anos, se as crianças brincarem.”