Fundada na viragem do século XIX para o XX, a Florida School for Boys (ou Arthur G. Dozier School for Boys) marcou a história de gerações e gerações de jovens rapazes. E pelos piores motivos. Uns conseguiram sair de lá com vida, ainda que com mazelas para o resto da vida, e outros não. As suas mortes, causadas por quem lá trabalhava, foram sempre omitidas ou ignoradas. Mas, aos poucos, a realidade que jovens rapazes viveram no reformatório começou a vir ao de cima, surpreendendo pelos piores motivos a população do estado norte-americano da Florida, mais especificamente Marianna. Encerrado em 2011, os fantasmas do reformatório voltaram.
Na semana passada, um empreiteiro responsável por limpar o terreno que em tempos pertenceu à instituição encontrou por acaso 27 “anomalias” – estava a limpar o terreno de lixo e a usar um radar para analisar o terreno. Confrontado com esse achado inesperado, o empreiteiro começou a pensar no que se poderia tratar e chegou à conclusão que as “anomalias” eram muito semelhantes na sua forma e tamanho a restos mortais. Foi a mais recente descoberta de um sombrio passado. E não foi a primeira vez que corpos foram encontrados naquela zona.
No início deste ano, o estado da Florida chegou à conclusão que 31 corpos de jovens foram enterrados naquela zona e, mais tarde, outros 24 foram descobertos por antropólogos da Universidade do Sul da Florida. No total, eram 55 corpos e, com a descoberta da semana passada, o número aumentou para 82. Todas as crianças estavam sob custódia das autoridades estatais e pouco foi feito para se apurar o paradeiro das que, depois de mortas, acabaram por ser enterradas em valas comuns. Não foram identificadas e retiraram-lhes a humanidade.
Fugas para a morte
Mas o cenário é bem pior. Em 2016, a Universidade do Sul da Florida publicou um relatório em que afirmava que quase 100 pessoas – jovens entre os seis e os 18 anos e dois funcionários – morreram nas instalações. As mortes, diz o relatório, aconteceram entre 1900 e 1960, explicando que as causas foram um grande incêndio em 1914, mas também doenças infecciosas, violência física, afogamento e até tentativas de fuga. “Outra das tendências de mortalidade mostra altas taxas entre os rapazes que morreram depois de tentativas de fugas da escola e um elevado número de rapazes que morreram nos primeiros três meses de permanência na escola”, afirma o documento. As tentativas de fuga eram constantes, com pelo menos 26,5% dos jovens – ou 17 do total da amostra – a terem-no feito pelo menos uma vez. Nos Estados Unidos as instalações de acolhimento de jovens têm má fama e, neste caso, parece fazer todo o sentido.
Quem não era bem sucedido na fuga, regressava para a instituição, onde o esperavam castigos severos: espancamentos pelos funcionários ou horas e dias de isolamento em “celas negras”. Os espancamentos aconteciam no que se tornou conhecido pelos estudantes como “Casa Branca”, com os estudantes negros – vivia-se então sob o regime da segregação racial – a serem os mais castigados pelos funcionários. Além disso, os próprios jovens eram os inimigos uns dos outros, com assaltos, agressões física e psicológicas, violações e bullying a serem o dia-a-dia de quem era mais fraco em estatura ou não se conseguia defender. Era a lei da selva e quem tinha mais força impunha a sua vontade.
Na altura acreditava-se que a solução para jovens ditos “problemáticos” era a violência, a disciplina e um ambiente austero – sabe-se que os estados norte-americanos nunca investiram muito neste género de instituições – e não uma abordagem multidisciplinar, de compreensão. Em consequência, o número de mortes na instituição era bastante elevado, até para os padrões da época, e a solução encontrada por quem trabalhava e geria a instituição era a omissão, enterrando os corpos das jovens vítimas para que não se soubesse o que acontecia nas suas instalações.
“Os registos históricos indicam que 45 indivíduos foram enterrados em terreno da escola entre os anos 1914-1952, 31 corpos foram enviados para outros locais para enterro e 22 casos não têm registados a localização de enterro”, pode ler-se no documento de 168 páginas.
Um xerife mau conselheiro
Entre quem conseguiu sobreviver à sua estadia na instituição não falta quem partilhe as suas histórias para que a verdade não seja esquecida e outras situações do género aconteçam. Os sobreviventes da escola criaram uma associação, a White House Boys Organization, e no seu site podem ser encontrados dezenas de relatos na primeira pessoa.
Don Stewart tinha 12 anos quando foi abandonado pela mãe e, sem alternativa, apenas pôde contar com a ajuda do xerife local, que lhe disse que a escola era um “excelente lugar com imensa diversão”, perguntando-lhe se gostaria de ir para lá. Com essa descrição na cabeça, Stewart disse que sim e entrou pelos portões da escola. Não sabia o inferno que o esperava, mas rapidamente percebeu. Ficou por lá três longos anos.
Rostos que não se esquecem
“Nos primeiros meses, fui espancado e violado regularmente. Foram necessários dois anos até aprender a defender-me”, conta Stewart. No segundo ano, o jovem, então com 14 anos, era “semanalmente levado para a Casa Branca para ser espancado. Acabou por ser destacado para o serviço na cozinha, onde permaneceu até voltar a sair pelos portões do reformatório. Conseguiu defender-se e evitar que mais tragédias lhe acontecessem, mas as mazelas permaneceram para o resto da sua vida. Sempre que via, contou, um rapaz mais velho a implicar com um mais novo, passava-se e protegia o mais indefeso. Fê-lo o resto da sua vida. E ainda hoje se consegue lembrar dos rostos dos rapazes com quem partilhou a camarata, de quem o espancou e abusou, mas não as suas identidades.
Entre as dezenas de relatos, está também o de quem tentou fugir várias vezes e que sempre falhou, sofrendo na pela as consequências. “Fui criado pelo meu avô por a minha mãe ser alcoólica e escolher homens como ela para viver”, contou Bob Baxter logo no início do seu relato. Em 1947, o jovem começou a faltar às aulas e mantinha-se longe de casa para não ter de se deparar com a mãe, que, por sua vez, não gostou e o entregou à Florida School for Boys. Ficou por lá um ano, até uma tia saber o que a mãe tinha feito e o retirar dali, mas a estadia chegou para saber que não sairia de lá vivo se por lá ficasse mais tempo. “Enquanto lá estive fugi duas vezes. A primeira vez estava lá há três semanas. Fiquei no mato e quando finalmente saí para a estrada três dias depois apanharam-me”, contou, explicando que foi “levado para a fábrica de gelados, como era conhecido na altura [o local dos espancamentos] e Hatton [funcionário] espancou-me com uma tábua até sangue sair dos meus pés”.
Ainda que sem conseguir andar normalmente, Baxter aproveitou a viagem de regresso de carro para os dormitórios para fugir mais uma vez para o mato. Conseguiu-o e ficou por lá mais alguns dias e quando finalmente saiu foi novamente apanhado: “Fui levado de volta para a fábrica de gelados e Hatton disse-me: ‘Vou-te ensinar a não fugires’. Lembro-me de quando começou o espancamento, mas acabei por desmaiar e acordei no hospital”. Acabou por ser levado mais uma vez para a fábrica e novamente espancado antes de a tia o resgatar.
“Acorda Florida, acorda Estados Unidos, ainda estamos a sofrer”. É assim que termina o relato de Bill Price, jovem que frequentou o reformatório: é um apelo desesperado de quem não consegue esquecer o que lhe aconteceu quando não podia estar mais indefeso.