Há silêncio, frio, o metro ainda está fechado e no relógio batem as quatro e meia da manhã. Vão chegando mulheres às paragens de autocarro da estação da Pontinha – num descampado que não abriga da chuva. Não se vê um único homem, à exceção dos motoristas dos autocarros da Carris que começam também a trabalhar e levam as mulheres que limpam enquanto os outros dormem. Vêm de vários sítios da periferia de Lisboa – Casal da Mira, Amadora, Reboleira ou Cacém.
De longe parece que não se conhecem, mas na verdade as caras não são estranhas e acabam por se cumprimentar, mesmo não sabendo quem são. E as conversas cruzam-se, afinal “todas gostam de falar umas com as outras de manhã, dá para passar o tempo”, diz Isaura Soares, que acaba de sair dos escritórios da Carris, mesmo à frente da paragem onde apanha o autocarro para a Avenida da República.
Durante a madrugada há mais gente nas paragens de autocarro do que às onze da manhã. Dentro do 726 com destino ao Marquês de Pombal – depois de arrancar da terceira paragem – o autocarro vai praticamente cheio. Há mulheres, um homem – segurança – que lê “A Batalha do Ultramar” e uma criança nos bancos do fundo. Chama-se Diogo, tem apenas sete anos e acompanha a mãe que trabalha como empregada de limpezas. Para esta criança, o relógio parece ter mais horas. “Acorda todos os dias às quatro da manhã e sempre bem disposto, não se vê?”, pergunta Ana, a mãe de Diogo. É assim todos os dias e todos os dias acorda com a mesma energia. No autocarro já conhece toda a gente e é a estrela da madrugada de quem ainda está meio a dormir, afinal é o mais novo das cerca de trinta pessoas que ali viajam.
As muletas de Diogo ouvem-se na calçada, mas o som das gargalhadas de quem o acompanha consegue sobrepor-se. Ouve-se o riso no meio silêncio. Antes da escola, acompanha a mãe nas limpezas de um banco no Rato, perto da estação de metro. Não interfere no trabalho e nunca houve oposição da empresa onde a mãe está há cerca de vinte anos. Depois de Ana sair do Rato, às oito da manhã, leva Diogo à escola e à tarde, lá está, novamente na escola para o levar para casa. À noite, os trabalhos de casa são feitos, garante a mãe. “Vem da escola, eu digo-lhe ‘faz os tpcs, lê esse livro’ e ele faz sempre tudo e ainda tinha tempo para fazer outro tpc.”, diz Ana a rir.
Muitas mulheres que trabalham nas limpezas já não têm de cuidar dos filhos, mas há ainda quem tenha de arranjar uma solução que se adapte ao horário de trabalho. Há crianças que vão com as mães, outras que ficam com as amas e há ainda quem recorra à família.
“É preta e faz limpezas? Há muita gente racista” A rotunda do Marquês de Pombal está deserta. Entre as 4h30 e as sete da manhã o trânsito não existe e a agitação não dura mais de cinco minutos – tempo em que as mulheres saem do autocarro e vão a pé para as empresas onde começam a trabalhar. Ouvem-se palavras de despedida e cada uma segue o seu ’caminho. No meio, há uma rapariga jovem que aparenta ter menos idade, chama-se Elissangela Delgado. Tem 33 anos e trabalha 12 horas e meia por dia, de segunda a sexta-feira.
Sai de casa, volta para casa, faz o jantar, cuida do filho e vai dormir. Os dias são todos iguais, mas não se importa, porque, pelo menos, aos fins de semana não trabalha. No coração de Lisboa, passa um sinal vermelho mesmo no meio da rotunda. Não há carros e está habituada. O passo é apressado, porque ainda quer beber café antes de entrar no primeiro trabalho – tem dois, todos a fazer limpezas. E antes de estar ali, em plena rua Braamcamp, já deixou o filho de sete anos na ama. “Acordo sempre a um quarto para as quatro, sempre assim, e só me deito por volta das dez e meia, onze horas”, diz a jovem que vem de comboio do Cacém até Lisboa.
Elissangela acorda de madrugada desde os 16 anos, altura em que a mãe deixou de ter condições económicas. “Fui trabalhar e nunca mais parei. Fiz o 12.º ano e continuei a trabalhar. Foi o que apareceu e era mais fácil na altura”, diz Elissangela.
Dentro da empresa, Elissangela já sentiu na pele os efeitos da cor negra. “Existe racismo, há pessoas que pensam que as empregadas de limpeza não têm estudos e não são nada”, diz. Os episódios são tantos que não consegue escolher só um para exemplificar. Enquanto bebe café, Elissangela diz que “se é para ir dar a cara e se for o chefe a escolher, não manda uma negra, tem de ser uma branca”.
“Eu não pedi para ser negra, nasci negra”, diz para exemplificar o que sente nos dois trabalhos que tem para conseguir ganhar oitocentos euros para pagar as contas, já que vive sozinha com o filho. Como explica Elisa, há pessoas que não são racistas, “mas há outras que são, e muito, e isso vê-se até nas pequenas coisas”.
Olha para o relógio, vê que está na hora e sai, com o mesmo sorriso com que entrou e cumprimentou quase toda a gente que estava na pastelaria Braamcafé.
Sair à noite e voltar de manhã “Ninguém gosta de acordar cedo nem de limpar o que os outros sujam, mas é um trabalho como os outros”, diz uma das vinte mulheres que espera pelo autocarro que está atrasado e fez com que muitas tivessem de fazer um percurso diferente do habitual. “É sempre a mesma coisa, nunca passam quando devem”, ouve-se do outro lado da paragem. Entre as reclamações, está Isaura Soares. “Quando se junta muita mulher, é assim”, diz. Com 53 anos já está farta de fazer limpezas, mas garante que quando sair “é para ir para a terra”, para Vieira do Minho, Braga.
O horário de Isaura Soares é fácil de decorar: sai de casa às seis e meia da tarde e chega às dez e tal da manhã. É isso mesmo, trabalha durante toda a noite. Primeiro nos escritórios da Carris, na Pontinha, e depois na Avenida da República, no Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. Durante o percurso – de autocarro e a pé – conta que já fez parte de várias empresas, dependendo sempre de quem ganha os concursos públicos. Independentemente da empresa, Isaura já trabalha nestes dois sítios há 17 anos, desde que se separou e perdeu o negócio que tinha com o marido. Agora, vive sozinha e o facto de trabalhar durante a noite e de dormir apenas quatro ou cinco horas por dia já não lhe faz confusão. “Olhe, por exemplo, durante o dia se for preciso não falto, nunca faltei ao trabalho e desde os trinta e poucos que trabalho à noite”, explica Isaura Soares.
“Hoje tenho de ir tratar de umas coisas a Benfica, sigo para casa lá para as onze, depois dou um jeitinho às coisas, como qualquer coisa e vou dormir um bocadinho antes de ir para o trabalho outra vez, e é assim sempre”, diz. Desde São Sebastião, onde sai do autocarro às cinco e meia da manhã, até à Avenida da República, costuma ir a pé, dependendo dos transportes que passam. Mas gosta de andar a pé: “sabe-me bem, dá para ir com calma e vou a pensar um bocadinho”. Isaura admite que é um trabalho solitário, não fala com muita gente e confessa ainda que “mulheres que trabalham com mulheres às vezes dá chatice” e, por isso, não se mete.
Da tropa para as limpezas Durante a madrugada a noção do tempo é diferente e o relógio parece andar mais devagar. Batem as seis da manhã, o sol ainda nem espreita, mas em plena rotunda do Marquês de Pombal, numa empresa forrada a vidros, há uma pessoa que se destaca do lado de dentro. É Ismário Freitas que está a limpar os vidros. E é o segundo dia de trabalho naquela empresa. Antes estava do outro lado da rotunda, uma mudança de poucos metros que não alterou as suas rotinas. Vem do Oriente e a viagem até ali é curta, já que só precisa de apanhar um autocarro. E limpa vidros há 35 anos, desde a altura em que saiu da tropa. Se já pensou em mudar? “Calro, mas uma pessoa pensa em mudar, depois arrepende-se e o tempo vai passando e já tenho 53 anos”, diz Ismário.
Só há uma coisa que nunca muda – a vontade de ir trabalhar. “Gosto do trabalho que faço, se não gostasse não estava aqui”, ri-se. Ismário diz que vai sempre bem disposto para o trabalho, ainda que tenha nas mãos o trabalho de limpar todos os vidros do edifício. Não é o mesmo que estar sentado numa secretária, mas o único homem de balde na mão que se vê àquela hora diz que as mulheres sofrem mais no mundo das limpezas. “É tradição, eu como homem nunca me senti discriminado e acho que isso fica mais para as mulheres”, diz Ismário Freitas. “Quando se fala em limpeza, associa-se sempre a mulheres, mas também há homens, eu estou aqui”, continua.
“Trabalho das seis às 8h30 aqui e depois das 9h30 às três da tarde noutra empresa”, diz Ismário, que leva a rotina e os horários muito a sério. Tal como a maior parte das pessoas que trabalha na área, vai mudando de empresa, de acordo com os concursos públicos. Depois do Marquês de Pombal vai para a Avenida 24 de Julho e o dia está feito. Fala muito do quanto gosta de trabalhar ali, apesar de se deitar todos os dias quando grande parte das pessoas ainda nem jantou – às dez da noite.
O respeito pelo relógio sobrepõe-se à vontade de falar. Os minutos passam e Ismário volta ao trabalho. Como diz: “nas limpezas há sempre alguém que suja de dia e alguém que tem de limpar à noite”.