O corpo é que pede, mesmo quando o corpo é que paga


“Que fazer se eu não gosto da minha própria pele? Que posso eu fazer? Sei que não sou como as cobras, que se desfazem dela todos os anos e adquirem uma novinha em folha”


“Como viver com este corpo, que muda hora a hora, segundo a segundo, este corpo que desconheço ou que pareço desconhecer, este corpo que me atrai e repugna ao mesmo tempo, do qual eu gosto tanto e que, às vezes, rejeitaria e substituiria? Como viver com um ser que desconheço, num ambiente que se modifica hora a hora, que já não é feito à minha medida? Passo a vida a bater com as mãos em tudo, mas juro que ando com o mesmo andar de anteontem, só que as coisas mudaram de lugar ou então foi o espaço que se comprimiu. É por isso que estou sempre a derrubar os objetos e os bibelôs, e a ter de ouvir os meus pais a dizer que eu estou ‘cada vez pior’. Se calhar têm razão: estou cada vez pior, mais disforme, aparecem-me pelos naqueles sítios mais íntimos e as pessoas gozam comigo e perguntam-me se já fiz a barba… mas qual barba?”

“E eu, que era tão igualzinha, agora vejo-me de cintura apertada, mas com as ancas tão largas… onde é que esta extravagância vai parar?”

“Como explorar os limites do meu corpo, dar eu mesmo corpo à vontade irresistível de esticar estes ossos até ao impossível, experimentar os músculos, saltar, pular, correr, inclusivamente até voar? Como fazer ver aos adultos que o meu corpo às vezes não consegue estar um minuto quieto, não consegue sentar-se na cadeira como eles dizem que uma cadeira é feita para se estar sentado, pois se me apetece esticar as pernas, dobrar os joelhos, pendurar os braços ou enroscar-me de cem mil maneiras diferentes? Às vezes, pelo contrário, o que me apetece é estar deitado, quieto, quase como se fosse um lagarto a hibernar. É mais forte do que eu. Ultrapassa a minha vontade e o meu querer… e eles tantas vezes não entendem e escamam-se comigo.

“Como fazer os mais velhos – pais, professores – entenderem que o desporto é para mim uma oportunidade única de descobrir os meus próprios limites e de aprender a viver com eles, mesmo que representem alguma frustração? Como explicar-lhes que preciso de interagir com o ar, com o vento, com a água, com todos os elementos? Depois dizem que eu sou radical, que é uma palavra quase obscena para descrever este tipo de atividade de que tanto gosto? Como explicar-lhes que gosto é da vertigem, de me sentir quase (eu disse quase) no limiar da morte, de sentir a adrenalina subir e saber que estou à beira (só à beira) do precipício.”

“Voltando ao meu corpo, que fazer se eu não gosto da minha própria pele? Que posso eu fazer? Sei que não sou como as cobras, que se desfazem dela todos os anos e adquirem uma novinha em folha. Dizem que posso moldar ou modelar o meu corpo, mas já percebi que é só até certo ponto, que tenho de aprender a gostar do que vejo no espelho, que tenho de me convencer que é aí que está o meu melhor amigo, mas às vezes ele é tão baixinho, tão disforme, tão borbulhento, tão pouco atraente. Ou será só impressão minha? Talvez seja, porque ainda ontem vi como aquela pessoa tão especial para mim me olhou no intervalo das aulas. Apesar do meu corpo ou, se calhar, por causa dele. Como saber? Quem sou eu, afinal, neste corpo que alguém me emprestou? Como saio dele? Como me adapto a ele? Quem sou eu, afinal?”

O crescimento e o desenvolvimento têm destas coisas. Quando se é criança, quase não se dá por eles. “Vai-se” crescendo e só quando um tio que nos vê menos ou um amigo que mora longe nos visitam e dizem “que crescido que tu estás” é que pensamos que é verdade, que as calças que tínhamos no inverno passado já nos ficam curtas ou que os sapatos começam a apertar os dedos. Todavia, a bem dizer, os nossos amigos são quase do mesmo tamanho, o tempo passa e o assunto não causa grande perturbação. Nós somos sempre nós, uns dias melhores, outros piores, mas sempre nós.

De repente dão-se as transformações. Olhamo-nos ao espelho e não reconhecemos o mesmo indivíduo que ainda na véspera lá estava? Fala-se e a voz trai- -nos – ou sai fininha como quem engoliu um pau de giz, ou cava e profunda lembrando uma eructação capaz de fazer corar um carroceiro. E quando o peito começa a crescer e ouvimos o comentário dos vizinhos? Ou quando o coração começa a bater e damos conta que ele existe? E respirar dói? Ou nos deitamos com um enorme receio de não acordar… mais, com a certeza de que iremos partir durante o sono?

Não há fase da vida, exceto talvez a embrionária e fetal, em que se deem transformações tão profundas e tão rápidas no corpo. Não apenas no tamanho mas na forma, no aspeto, tudo isto somado às também enormes transformações psicológicas, intelectuais, relacionais e sociais.

Por outro lado, as transformações associadas à maturação sexual podem causar grandes angústias e sensações várias, algumas das quais francamente desagradáveis, especialmente numa fase em que amar e ser amado, apreciado, alvo das atenções, assume uma importância muito particular, como “antídoto” para a insegurança, as dúvidas, a intranquilidade desses dias, os quais são a um tempo maravilhosos e terríveis.

Finalmente, a necessidade de explorar o desconhecido (como a noite), sempre aliciante em qualquer idade, é estimulante quando diz respeito a um “eu” diferente e novo, ainda por cima sem uma pressão social que limite demasiadamente esse desejo. É nesta perspetiva que se têm de entender as condutas de ensaio e os comportamentos experimentais que, aos adultos, esquecidos da sua própria adolescência, podem parecer simplesmente uma “mania do risco”. O risco existe, claro, mas os adolescentes têm certos comportamentos por razões mais nobres, os quais têm a ver com o corpo e com a vontade de o conhecer, mesmo que em certas alturas pareçam agredi- -lo. Compete aos adultos perceber as mudanças que se dão no corpo (e na mente) dos adolescentes e, por vezes, não serem tão intolerantes e tão dogmáticos: “Que coisa. Estás sempre a partir tudo. Não dás um passo que não seja para esbarrar em alguma coisa. Mas porque é que tu queres fazer este ou aquele desporto? Porque é que tu estás sempre triste? Porque é que estás, afinal, tão preocupado com essas borbulhinhas? Sair à noite? Estás parvo?” E por aí adiante. Pois é. É o corpo que pede, mesmo que, como cantava o António Variações, “o corpo é que paga”.

 

Pediatra

Escreve à terça-feira