Kamala. “Esta sala requer espetáculo e eu não venho pôr música”

Kamala. “Esta sala requer espetáculo e eu não venho pôr música”


Como pode um DJ chegar ao Coliseu e preenchê-lo? Kamala, especialista há anos na arte de roubar sono, explica como 


Um dos primeiros DJ a fazer festas de hip-hop e r&b em Portugal, Kamala faz esta noite do Coliseu uma nobre pista  de dança com um espetáculo nunca antes visto em Portugal. Promete.

Como começaste a passar música?

Comecei há vinte anos na cave de um clube em Cascais chamado Deep Club, que era de um amigo do meu irmão mais velho. Sentia um chamamento da música e dos discos de vinil, que era uma paixão muito grande, e gostava “quando fosse grande” de ser DJ. Houve um verão em que, enquanto os amigos iam para a praia fazer o que os adolescentes fazem, eu ia para esse clube aprender a pôr música. Passava a tarde inteira a praticar. Foi aí que comecei a transpor a vontade para a realidade de tocar e mostrar às pessoas a música de que gostava.

E depois?

Vim para Lisboa. Havia dois clubes – um da minha eleição, o Fluid – e o Mexe Café, onde era residente. Entretanto, fui convidado para uma residência no Coconuts em Cascais. A seguir, voltei para Lisboa para reinaugurar o Alcântara quando deixou de ser Alcântara-Mar. Depois, sou convidado para assumir a programação do Estado Líquido, onde estive sete anos. Tive dois programas de autor na rádio Oxigénio. Um pelo Estado Líquido e outro através de uma colaboração com o Casino Lisboa. Entretanto, começo com as minhas festas no Sweet, direcionadas para a cultura urbana e o hip-hop. Com isto tudo, chego à conclusão que falta em Lisboa um clube com que me identifique e abro o Rádio-Hotel. Dois ou três anos depois, abro o meu segundo clube em Lisboa, o Bosq. E entretanto, faço curadorias no NOS Alive e no Rock In Rio; festas e festivais de norte a sul. Foi um crescimento sustentado e não fugaz graças a um trabalho de formiguinha de mostrar que há públicos. E depois a indústria fez o resto. Houve um boom muito grande internacional e local do hip-hop.   Abriu-me portas.

O teu irmão [Miguel Fernandes] foi durante muitos anos porteiro do Lux. Que influência teve nessa vida?

Foi uma influência natural. Ele estava ligado à noite e transmitiu-me algum gosto pela música e pelas cabines. Trazia discos de DJ conceituados mas, mais do que isso, a possibilidade de comunicar com o público através da música mexia muito comigo. Só que na altura não sabia falar. O aprender a usar as ferramentas certas para comunicar foi necessário para educar as pessoas no espetro que me movo mas também para o lado lúdico. As pessoas têm de estar divertidas. Não sou apologista do DJ de nariz empinado do tipo “eu é que percebo de música e se não percebem é porque estão errados”. Não, muito antes pelo contrário. Se estamos a comunicar com uma pista, é fundamental que a pista esteja em festa. E lá está, isso cria um diálogo nos dois sentidos. Nem que seja pela comunicação corporal, as pessoas dizem-te se estão a gostar ou não.

És reconhecido como um DJ de hip-hop e r&b. Essa identidade foi surgindo? 

Eu sou um DJ. Gosto de hip-hop e r&b. É sem dúvida a minha praia. Gosto de tudo o que é soulful  e urbano mas principalmente gosto de não ter fronteiras. No meu set, gosto de tocar pop, house, reggae ou drum & bass – o que fizer sentido. Aliás, uma das coisas que mais gozo me deu foi transportar para as grandes pistas de dança sonoridades que não eram ouvidas nem tocadas. Tocar hip-hop às quatro da manhã numa pista de dança ou grande sala era impensável. Não sou fundamentalista porque gosto de música e de poder tocar um pouco de tudo. Quando aprendi a pôr música, foi com discos de house e techno. Deu-me uma bagagem muito grande porque hoje há tecnologia capaz de fazer misturas de forma quase automática mas, na altura, tive que aprender a misturar, a saber lançar as canções no tempo certo, a respeitar compassos, coisas que hoje a maior parte dos DJ não sabe por não ter necessidade. Perdeu-se um pouco a essência. Mesmo quando tocava house, era o mais soulful.

Como é que se preenche um palco tão grande? 

Vou juntar em palco muitos amigos que me acompanharam ao longo destes vinte anos. É muito tempo a trabalhar com pessoas que, para mim, são das mais talentosas em Portugal. Gente que fazia parte de um circuito secundário e que hoje em dia são cabeças de cartaz em todo o lado por onde passam. Basta ver quem esteve comigo na curadoria do Alive ou na curadoria do Rock In Rio, e mesmo nas produções em Lisboa, Porto ou Algarve. Nomes que eram alternativos e explodiram porque felizmente e finalmente o mercado prestou atenção e deu valor ao que se faz cá. Vou ter a responsabilidade e o prazer de ligar a amigos a convidá-los.

Esta sala assusta?

Se assusta! A primeira vez que vim ao Coliseu depois de ter anunciado o espetáculo foi para uma reunião da gala do Benfica, em que apresentei um trabalho com o Nuno Feist – penso que foi a primeira ou uma das primeiras vezes em que um DJ se apresentou em conjunto com uma orquestra – cheguei aqui, olhei à volta e pensei: não vai ser fácil. Os ingleses têm uma expressão gira que é overwhelmed. Senti-me engolido por este espaço. Tem tudo para ser mágico mas se não for feito bem e com responsabilidade, tem tudo para correr menos bem. Felizmente, está esgotado e a partir daí, deixa de ser assustador para passar a ser um sonho concretizado. 

Há uma produção pensada para o espetáculo?

Não vou desvendar mas há. Esta sala requer espetáculo e eu não venho aqui pôr música. A ideia do 2.0 é apresentar algo de novo e atualizar tudo o que já foi feito nos DJ em Portugal. O conceito é transpor para uma sala com esta classe um imaginário de cultura urbana.