Tiago Cadete. Chocar o ovo da nossa vida ouvindo a dos outros

Tiago Cadete. Chocar o ovo da nossa vida ouvindo a dos outros


Estreia esta noite a nova criação Tiago Cadete, em que o coreógrafo português constrói uma ficção auto-biográfica a partir de retalhos da vida de outros emigrantes portugueses no Brasil


Faz já umas décadas que alguém deu conta de que o teatro tinha desenvolvido uma fobia ao risco de incompreensão. A surpresa não podia passar sem surpresa, era preciso o impacto da novidade. E isso talvez viesse na sequência da suspeita de que o público havia chegado àquele ponto em que, mesmo perante o nunca visto, começava a reagir com a mais cordial naturalidade. Foi Nelson Rodrigues quem mediu os sinais de desespero do “novo teatro”, que não podia já passar sem “o tumulto, o alarido, o pé na cara, o grito, o horror”. Como se só restasse a esta arte elevar a parada face aos estímulos constantes de um mundo-em-flash. Se os sentidos que batem o terreno (a visão, a audição) estavam soterrados em informação, só faltava castigar a carne: dar um soco na cara da plateia.

No mais recente espetáculo do coreógrafo português Tiago Cadete, a memória é o palco onde a ação decorre. “Entrevistas” é um espetáculo de baixa frequência, uma espécie de monólogo que recorre a uma sensível sobreposição de testemunhos colhidos junto da comunidade emigrante portuguesa a viver no Rio de Janeiro. Com 35 anos (cinco depois de ter ganho uma bolsa para pós-graduação no Brasil, para uma  que abriu caminho para o doutoramento que o mantém entre Lisboa e o Rio), Cadete compôs uma biografia de enxertos de vidas que são reveladoras da sua. Com algumas caixas e três ovos, este artista cujas criações resultam num híbrido entre teatro, dança e artes visuais, passa o tempo do espetáculo sentado a uma mesa, preparando o voo. Com gestos de quem conta e reconta, continuamente, ele partilha essa fome de dizer que se alimenta ouvindo, pelo de dentro ou de fora, vai chocando um desejo a muitas vozes, “como um voo ou como um ovo”, tirando da desordem um sentido “pleno cheio”.

Os olhos descansam, entram num transe, ocupados docemente como se fechados, vendo como os ovos, colocados em pé sobre a mesa, vão sendo dispostos numa mandala ou em linha, voltam para as caixas, numa escultura-dança minimal, e depois é aos ouvidos que esta performance se dirige. Tiago Cadete vai ficcionando a partir dos relatos que ele mesmo ouviu e gravou, com os portugueses que vivem no Rio há meses ou décadas. Esta teia permite-lhe mergulhar no seu passado e, noutros momentos, projetar-se no futuro. Se num momento reencontra um colega dos tempos do primeiro ciclo em Faro, um arquiteto hoje também a viver na Cidade Maravilhosa, no seguinte fala-nos de experiências de luto com o Atlântico pelo meio, ou da violência saltando à corda entre a paranoia e a realidade.

Se as imagens hoje abafam o mundo, aqui a campainha que marca o corte abrupto entre os testemunhos é uma espécie de rádio que acelera, distorce ou dilui canções que conhecemos demasiado bem.

Em entrevista ao i, Cadete frisa: “O mais desafiante para mim, hoje, e artisticamente, é: o que não fazer? Quando comecei este trabalho, parti com tantas ideias, e o esforço passou pelo apuro: deitar quase tudo fora”. Quanto à pesquisa e à forma como esta influenciou a própria identidade do espetáculo, serviu-se de uma máxima da escultura: “a tua forma já está dentro daquela pedra, daquele bloco. Só tens de retirar para mostrar… É retirando que vais evidenciar alguma coisa, alcançando esta limpeza. Para mim isso significou trabalhar a partir de um lugar de escuta, ouvindo os outros.”

No fim, no teatro ou onde quer que seja, ninguém fica indiferente à vida. Ao invés daquela “transparência burríssima” que Nelson Rodrigues via, ou de um teatro de uma opacidade que azucrina, Tiago Cadete mostra a sua capacidade de criar uma novidade que exige da audiência uma lenta, progressiva acomodação visual e auditiva. O que ele cria em nós é uma disponibilidade. Não nos choca como faz hoje a obscena cultura que trivializou a espectacularidade, choca-nos como o calor paciente faz com um ovo.

 


 

Criação e interpretação: Tiago Cadete

Assessoria de imprensa: Mafalda Simões

Produção: CoPACABANA Produções

M/12

RUA DAS GAIVOTAS 6 – Rua das Gaivotas, 6. 1200-202 Lisboa

17, 18 e 19 de Maio de 2018 | Quinta a Sábado | 21H30

Reservas: 912 191 940 | ruadasgaivotas@teatropraga.com

Preço: 5€

Duração: 45 minutos