O tema da presunção de inocência, com origem remota no direito romano, com as regras probatórias que constam do Digesto, na Bíblia – Livro de Deuteronómio – e no direito comum medieval, continua ainda hoje a ser um tema tanto fulcral como controverso no seu conteúdo e contornos. A sua consagração explícita num texto legal apenas foi conseguida com a Revolução Francesa de 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, profundamente influenciada pela obra de Beccaria (“Dos Delitos e das Penas”, que Voltaire apelidou de “Código da Humanidade”), não só no pensamento jurídico europeu, mas também no pensamento jurídico norte-americano, transferindo-se esta perspetiva para alguns textos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.o 11.o n.o 1), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art.o 14.o n.o 2), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.o 6.o) e a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (art.o 48.o n.o 1).
O afloramento deste princípio não é despiciendo no recente caso Skripal. Desde logo porque alguns argumentos pró-Rússia se fundam na validade deste princípio e na exagerada ação conjunta dos Estados consubstanciada na suspensão das relações diplomáticas. Mas também porque há quem defenda que os princípios garantísticos do processo penal, como já vimos de consagração universal, não podem ser aplicados nas relações entre Estados ou, no limite, para produzirem efeito teriam de se ver suportados por indício inequívoco e consequente decurso processual. Estou em crer que não é exatamente assim. Os Estados, os mais antigos sujeitos do direito internacional, desempenham uma certa função de antonomásia, ou seja, são ao mesmo tempo produtores e destinatários de normas convencionais: produtores porque participam na conclusão dos tratados, contribuindo para a sua vinculação; e destinatários porque se obrigam à submissão das estipulações por eles produzidas.
Em Portugal, o princípio da presunção de inocência encontra-se na base do processo penal tal como o conhecemos, coexistindo numa abordagem puramente processual e noutra profundamente ligada à dignidade da pessoa humana perante o poder punitivo do Estado. Já perante o sistema jurídico anglo-saxónico, a matéria do princípio da presunção de inocência encontra-se interligada com o princípio do processo equitativo e do direito a um julgamento justo ligado à prova e ao seu respetivo ónus, possuindo por excelência aplicação apenas em sede de julgamento – podendo dizer-se que revela um certo alheamento em relação à forma como o suspeito é tratado em momento prévio ao julgamento e à própria obtenção da prova, reportando-se tão-só à apreciação dos indícios reunidos em julgamento e garantindo-o de forma justa e equiponderante ao poder do Estado. E estas duas realidades coexistem igualmente nos textos internacionais.
Acontece que as mais recentes manifestações de criminalidade transnacional organizada, envoltas num processo complexo, mutável e dinâmico, aduzem ao processo penal novas configurações indiciárias de prova. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova direta, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra do senso comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto--consequência em virtude de uma ligação racional e lógica. Ainda assim, não pode resultar numa prova diabólica a cargo da acusação. Opera, pois, num delicado equilíbrio entre a prova apresentada, a objetividade da sua análise, a segurança da comunidade e a presunção de inocência. Ora, o crime de espionagem em território estrangeiro pode configurar uma dessas situações, a não ser que se trate de espionagem entre Estados beligerantes, mas aí dificilmente poderá configurar um facto típico qualificado como crime.
No ataque a Skripal foi usado um agente nervoso desenvolvido pela Rússia, identificado como A-234 e conhecido como novichok. Como indiciariamente explicou Theresa May, era “highly likely” que a Federação Russa fosse responsável pelo envenenamento.