Sempre disse à boca cheia (com pão, porque às vezes dão-me ataques de má educação, e porque na minha juventude tinha muitas certezas) que não era cá mulher para rotinas: “Deus me guarde de um trabalho das nove às cinco”; “Ui, ui, canso-me dos dias iguais aos outros como se fossem repetições”; “Preciso de emoções fortes e aceleradas, diariamente.” Dizia, com convicção, que a rotina atrasava e asfixiava, como se andar em chão direito nunca fosse suficiente. Achava que o normal era sempre pouco, que os dias tinham de ser sempre loucos, que o comum era sinal de pouca sorte.
Mas a miúda levou na cara: a miúda viveu dias em montanhas-russas emocionais em que o que mais desejou foi acordar e não ter acontecido nada. A miúda ouviu notícias desastrosas, depois sentiu esperança, depois dor outra vez, e pediu desculpa por querer que o chão girasse rapidamente. A miúda viu os seus dias anormais a serem diferentes demais, sem rotina, sem comum, sem o simples regular de uma respiração normal. A miúda percebeu que estar tudo na mesma pode significar que a tua família está em paz e que estar tudo bem é o presente maior da vida. A miúda percebeu que quando os pássaros voam na mesma direção é porque vão, com vontade, para onde têm de ir, e quando voam confusos, para o lado contrário, é porque alguma tragédia está para chegar. A miúda percebeu que o lado comum pode ser a seta que aponta para o paraíso.
E agora, a miúda que dizia mal da rotina é a mesma que chegando a um lugar novo (mudei de casa novamente em outubro de 2017) tem como primeira preocupação encontrar o seu spot que lhe indicará onde tomar o seu café, religiosamente, com profunda devoção por aquela mesa, aquela cadeira, aquele sítio, e que fica nervosa quando esse lugar está fechado porque “agora para onde é que vou?”; a miúda que dizia mal da rotina é aquela que quando a rotina lhe falta (muitas vezes porque o trabalho assim o exige) crava as unhas no chão da sala enquanto é arrastada para fora do seu apartamento, porque não quer despedir-se dos seus lençóis de flanela e tem tanta preguiça de ver gente.
A miúda que dizia mal da rotina é aquela que não trocava os constantes e diários passeios na praia por nada, que ri da mesma forma infantil a cada repetido jogo de sueca, que ouve as mesmas histórias mil vezes do pai e acha sempre graça.
A rotina tem dois lados, como tudo na vida: como o chocolate que cura a tristeza mas também adoece, como o vinho que faz bem ao coração mas também o mata, como o pão que tem fibra mas também engorda. E a rotina, como tudo na vida, tem dois lados – equilibra, aconchega, mas também cansa e amolece, e é preciso saber ser rotina com o mesmo esmero que é preciso saber ser novidade. A rotina ajuda-nos a dizer quem somos, a rotina faz-nos sentir em casa, a rotina aumenta a beleza porque, se continuas a rir e a ser feliz na tua rotina com o teu amor, é caso para acreditar que a rotina também une e dá espaço para cresceres.
A miúda que dizia mal da rotina hoje tem a certeza que enquanto olhar para os mesmos lugares e vir as mesmas pessoas, como a casa dos pais, a casa da mana, a casa dos sogros, a casa da avó emprestada, tem sorte, muita sorte, tanta sorte por ainda estar tudo igual, estar tudo bem, estarem as casas cheias.
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Escreve à quinta-feira