Isto é o teatro”, voz embargada e olhos carregados perante a plateia que se forma logo a seguir à hora do jantar, que por estes lugares se faz cedo, cadeiras improvisadas, Sport TV, Liga Italiana, um jogo qualquer que há de ser novela a seguir, isso e jogos de cartas e espumante Alvarinho pela noite dentro. Ritual de todos os dias na associação A Batela, em Alvaredo, freguesia de Melgaço que encosta a Espanha, onde se fala português com sotaque galego, e batelas era o que se chamava aos barcos que se usavam no contrabando quando ainda havia fronteiras – ou para ir à Galiza só, vale bem o risco quando Portugal fica tão longe. E se o longe é sempre relativo num país pequeno, são quase sete horas para se chegar aqui de Lisboa, dois comboios, que acabam em Valença, mais as distâncias pela estrada até os destinos finais, que nesta viagem hão de ser muitos, hão de ser 20.
Isto é o teatro, dizia Raquel André minutos antes do início da estreia de “O Segredo de Simónides”, coleção de colecionadores que andou a colecionar em residência no final do verão aqui no Vale do Minho, que é Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira, e onde desde 2006 operam as Comédias do Minho, que todos os anos apresentam três espetáculos itinerantes pelos pontos mais remotos deste lugar onde Portugal chega ao fim. E isto é mesmo o teatro, repete-o no dia seguinte, entrevista em viagem, porque o tempo é escasso e é passado em viagem, com o teatro às costas, nesta carrinha onde cabemos todos. Nós, ela e os cocriadores de “O Segredo de Simónides”, António Pedro Lopes e Bernardo de Almeida, que aqui também acontece ser motorista, mais o material todo, além do espetáculo, que são os colecionadores que Raquel conseguiu guardar e que leva consigo nas histórias que contam os seus objetos. Nesta viagem de novo para Melgaço, para o centro de Melgaço, onde fica a Casa da Cultura que é onde se apresenta o espetáculo no segundo dia, depois de um workshop da única turma do 11.º ano da única escola secundária do município, a uma hora de viagem de Paredes de Coura, onde se vai dormir e de onde se parte todos os dias. “É chegar às pessoas e contar uma história. É tão simples e é tão complexo. Porque é muito complexo chegar aqui, a nível de produção, de condições de trabalho, é um trabalho muito precário. Estou só no segundo dia, ontem antes de começar o espetáculo já estava super emocionada. Fogo, o que é que eu estou a fazer, quando é que na minha vida eu vou voltar a ter oportunidade de fazer isto, quando é que eu vou ter uma plateia como esta, quando é que… E depois: então, eu estou a fazer teatro, é por isto, e é muito claro isso.”
Palco ou sala é o que tiver que ser, e pode ser uma associação, uma antiga escola primária, um centro de congressos, uma sede de junta de freguesia, um salão paroquial, e o sucesso que tem um espetáculo anunciado pelo padre na missa. O processo é simples, difícil é aplicá-lo todos os dias, ou quase todos, de quinta a domingo, durante cinco semanas, uma para cada município, a começar pelo mais longe de todos que é este, Melgaço: monta, apresenta, desmonta, transporta, volta a montar, a apresentar, a desmontar e a levar par a o lugar seguinte. Não há cá paredes pretas nem blackout, também não há luzes, o som é o que for. “Não tens nada.”
Na Casa da Cultura de Melgaço já tínhamos estado na véspera à uma da manhã, no final do primeiro espetáculo, para montar o seguinte:
– Isto é uma sala específica, prepara-te. Tem um palquinho, não posso sentar-me na plateia. vamos ter que adaptar tudo.
E tirar bandeiras e a mesa das palestras.
– Mas isso é fixe, focas-te no que tens para dizer, não estarmos obcecados com uma precisão qualquer…
– Temos aqui um ecrã, se calhar não precisamos do nosso. Agora, como é que fazemos este espetáculo aqui?
– Vamos fazer todo ali em baixo.
– E a tela fica em cima?
– Mas como te entrevistas a ti própria?
– É verdade.
– Podes usar as escadas.
– Onde vais por a régie, Vasco?
Como é que isto se faz? Faz-se. “Lógico que temos de nos adaptar. De repente, da escola primária para a Casa da Cultura de Melgaço, que é outro palco, que parece que é uma sala de teatro mas não é, é um auditório com luzes muito específicas, com umas bandeiras do lugar… Mas sobe escada, desce escada, vai mais para a direita ou mais para a esquerda, não são esse tipo de marcações de teatro que vão definir a qualidade do espetáculo. É mais aquilo que de facto vais dizer, o que vais contar e essa relação direta que se cria. O espetáculo já foi muito pensado sobre isso, é essa a essência, poder adaptar, e acho que ele pode e vai com certeza sobreviver, porque é essa a apetência do projeto, sobreviver a estas viagens, neste percurso das aldeias. Claro que também conseguimos criar uma linguagem encenada, bonita para um palco de teatro, com a magia toda e a máscara do teatro. Sim, há um rider de luz que é pensado para os teatros grandes que vem por cima, uma luz maior com outros efeitos, com outra dimensão, que é muito a linguagem do Rui Monteiro, mas também há esta que é uma coisa instalativa: está ali, monta-se rápido porque são umas luzes e um projetor. É tornar a coisa no essencial.”
E o essencial são as histórias, as coleções do que não se coleciona, colecionar o efémero, encontros, pessoas, histórias, obsessão antiga, Simónides. Poeta grego que Raquel descobriu no seu mestrado sobre colecionismo nas artes performativas, no Rio de Janeiro, onde viveu seis anos, com o seu mito, num livro de Fausto Colombo, “Arquivos Imperfeitos”. Simónides dizia que guardando as coisas em lugares exatos conseguimos memorizá-las melhor. E contavam os gregos que estava Simónides num banquete a decorar os nomes dos convidados a partir do lugar em que estavam sentados quando o chamaram à rua e o edifício ruiu e sobrou Simónides para identificar os corpos desfigurados, porque sabia exatamente o lugar que ocupava cada um. “Foi o único que conseguiu reconhecer os corpos porque sabia onde é que eles estavam sentados. E eu apropriei-me deste mito para defender a mesma coisa: os meus objetos são uma ferramenta para eu conseguir contar a minha história, para conseguir memorizar alguma coisa da minha vida. Como no espetáculo, quando peço às pessoas para me darem um objeto que esteja com elas naquele momento, é uma forma de conseguir lembrar-me delas naquela noite. Eu não me vou esquecer que na Batela houve um senhor que me deu uma navalha, uma senhora que me deu um alfinete feito por ela e que no final do espetáculo soube que ele é o pai dela e que o filho dela veio e deu-me um porta-chaves: ‘Assim ficas com uma trilogia de nós’.”
Objetos que se juntam à coleção daqueles que apresenta em “O Segredo de Simónides”, dos 13 colecionadores que conheceu durante a sua residência com a Bolsa Isabel Alves Costa, das Comédias do Minho, e dos quais conseguiu guardar uma parte. Uma carta, um livro de ilustração, outro de inteligência emocional, uma caderneta de cromos da Copa do Mundo que prometeu completar, um pé de camélia que entretanto há de dar flor. Mas não são os objetos. Os objetos são pretextos para as pessoas, para continuar a colecionar pessoas. Como fazia aos 10 anos na agenda em que colecionava pessoas com descrições sobre como as conheceu e as vezes em que as encontrou. Espécie de facebook analógico, interrompe Bernardo, que poderá ser um projeto para 2017. “Foi a forma que encontrei de colecionar colecionadores.”
No Minho, onde esteve em residência graças à Bolsa Isabel Alves Costa, das Comédias do Minho, que ganhou no início do ano, Raquel André colecionou 13 colecionadores. E em cada cidade em que for apresentado “O Segredo de Simónides”, que chega a Lisboa no outono de 2017, Raquel André junta à sua coleção novos colecionadores com novos objetos, pretextos para novas histórias, e apresenta um documentário sobre os colecionadores da cidade anterior, o que será uma nova coleção de documentários com todos os colecionadores. No sentido literal ou não, não importa. “Todos nós temos um conjunto de objetos que contam a nossa história. Os colecionadores são pessoas que têm a mesma obsessão que eu de guardar alguma coisa, então foi uma forma de colecionar pessoas que fazem o que eu faço, que é guardar coisas, de tentar capturar um momento através de um objeto”, explica para acrescentar que as coleções foram sobretudo pretexto. “Já que não posso levar essas pessoas comigo, levo uma parte delas preciosa para poder contar a sua história.”
E as pessoas, estas, São Paulo, colecionador de vinis, Gabriela, colecionadora de livros de inteligência emocional, Júlio, colecionador de moedas, Rodrigo, de cadernetas de cromos, Rosa Maria, que coleciona as bonecas que a própria faz, iguais à que deixou em Moçambique quando fugiu da guerra, Cândido, com as cartas que a mãe lhe escreveu quando estava na Guerra Colonial, Tino, que colecionador de objetos relacionados com Vila Nova de Cerveira, onde vive, Alfredina e José, colecionadores de camélias (são mais de 200 os pés que têm plantados no jardim iguais a este que Raquel leva de espetáculo em espetáculo), e uma família: Carlota, colecionadora de bonecas de porcelana, Patrício, de livros de ilustração, Mateus, colecionador de tudo o que tiver a ver com Star Wars, e Catarina, colecionadora de perfumes em miniatura.
“Para mim isso é muito forte. não só pelo reconhecimento, porque estás a trabalhar e entras num diálogo direto com os espectadores, mas porque vês que o teatro ainda tem este poder”, porque o teatro não tem que ser distante, “é mentira que as pessoas não vão ao teatro e que não querem ir ao teatro. É mentira. Há essa possibilidade, há a possibilidade de um diálogo. Não quer dizer que isto seja só com o meu trabalho, mas acho que quando a coisa é bem estruturada, quando o público vai e tu entras em contacto direto e tentas comunicar de facto, recebes o feedback e é real. Estares em palco e teres uma pessoa que te dá o seu caderno pessoal do último ano é um ato de uma confiança… ‘Olha, está aqui a minha vida escrita, a minha intimidade. Faz o que tu quiseres com isto.’ Ou ‘está aqui a fotografia da minha filha que não fala comigo há seis anos’.”
Foi no Rivoli, no Porto, onde “O Segredo de Simónides” foi apresentado pela primeira vez. Na mesma noite em que o viúvo de Isabel Alves Costa, que dirigiu as Comédias do Minho e Raquel André nunca conheceu, subiu ao palco para lhe entregar uma bolsa: “Se a Isabel fosse viva, ia adorar este espetáculo, ia adorar conhecer-te. Isto é uma carteira da Isabel Alves Costa.” A mesma que agora Raquel André apresenta em todos os espetáculos, conjunto de objetos a que se vão somando novos. A fotografia da filha que a mãe não vê há anos, o caderno de anotações pessoais, aquela bolsa.
“A estreia no Rivoli foi assim um momento muito forte na minha vida mesmo, porque fazes os espetáculos com uma perspetiva e uma sensibilidade, mas depois quando apresentas a coisa escapa-te das mãos, as pessoas podem ter reações completamente diferentes. As pessoas dão-me os objetos e contam-me a história aqui, numa intimidade em palco em que a pessoa fala só comigo. E depois eu enumerei o que as pessoas me deram e nesse momento em que tornei aquilo público, aquilo atravessou-me. Para mim o espetáculo podia acabar ali. As pessoas confiam em ti um objeto, ‘toma, agora é teu, tens uma responsabilidade de o guardar, de fazer alguma coisa com isto. É um ato de confiança que de facto me escapa das mãos.”
Como apresentar um espetáculo de 20 datas em 20 lugares remotos, numa carrinha com o teatro às costas. “No final da temporada, quando forem 20 espetáculos, acho que além de ter uma relação muito diferente com o próprio espetáculo, que vai ter uma vida e uma propriedade muito específica, vou ter uma relação com a experiência do que é o teatro muito diferente. São muitas horas de viagem como estás a ver, portanto acho que há muita coisa que vai acontecer.” E o cansaço? “O cansaço, o cansaço traz coisas muito boas também à viagem.” Traz? “Traz. Traz-te fragilidade. E a fragilidade é um estado sensível que é muito potente. Quando estás a trabalhar no limite de alguma coisa, o cansaço físico, o cansaço emocional, alguma tensão, traz-te uma sensibilidade do caraças, se fores inteligente para saber usá-la. Agora, tens que estar com o coração aberto e ter muita paciência. Eles têm muita paciência comigo. E eu com eles.” J
Cláudia Sobral
claudia.sobral@sol.pt