Mais de uma década depois de se ter estreado com o livro de contos “Os Chouriços São Todos para Assar” (2003) – um conjunto de retratos urbanos, suburbanos e rústicos –, Ricardo Adolfo escreve agora, e pela primeira vez, sobre o local onde vive e trabalha, Tóquio. Um olhar de perto e por dentro a essa ilha tão distante geográfica e culturalmente, que quase se assemelha a outro planeta, em contraponto com a distância física que outras vezes lhe serviu para falar sobre o local onde cresceu. O autor, publicitário premiado com um Leão de Ouro em Cannes, nasceu em Luanda em 1974, viveu na Linha de Sintra e ainda no final dos anos 90 partiu para Amesterdão. Passou também por Londres e Macau. “Tenho vivido em cidades onde desconheço a língua. Uma experiência de vida em que quase nunca percebo o que se passa à minha volta”, diz nesta entrevista. Curiosamente, no novo livro o narrador é um tradutor, que continua a tentar descodificar o seu lugar numa sociedade que o vê como um alien. É entre a sensação de estranheza e o fascínio pelo que é diferente que este livro deambula, sempre com generosas doses de humor e com reflexões subtis sobre o confronto entre o lugar de partida e o cenário de acolhimento. “O nublado constante em que se vive devido à impossibilidade de descodificação” é de resto uma das coisas que atraem Ricardo Adolfo, que continua a acompanhar à distância o que se passa na terra. Como, de resto, tem feito através da escrita.
Este é o primeiro livro que escreve sobre o sítio onde vive e trabalha. Porquê?
A distância ajuda a perverter memórias, sentimentos, situações. Constrói uma confusão que enriquece a escrita. Este livro começou com um convite da revista “Sábado” para escrever uma coluna semanal sobre a minha vida em Tóquio. Como a minha vida não tem nada de extraordinário, criei uma personagem que pudesse responder ao desafio e me permitisse continuar a trabalhar no campo ficcional.
Ao narrador acontecem coisas como ser amigo de aluguer, ser barrado na praia porque o mar está fechado, viver uma realidade laboral diferente ou participar em eventos sociais que nos parecem forçados. Aconteceu-lhe a si? Até que ponto este livro é autobiográfico?
Tudo o que escrevo é ficção. Se as coisas foram vividas por mim ou por outro alguém parece-me irrelevante no contexto de escrita em que trabalho. Por outro lado, acho positivo que esta confusão exista. Mistifica o texto e o autor.
Com tanta coisa para contar neste livro, sobre o país e a relação com ele, como encontrou o seu ponto de partida?
Foi um começo pouco romântico forçado por um prazo de entrega. Tentei apresentar a personagem na sua condição mais básica e de seguida deixá-la ir pela cidade.
Porque utiliza os termos “ilha” e “terra”, em vez dos nomes dos países e das regiões?
O Japão é uma ilha que aos olhos do resto do mundo não parece deste planeta. Os termos escolhidos ajudaram-me a estabelecer uma distância imediata e a fazer dos locais mencionados personagens relevantes. Dois palcos que funcionam também como actores.
Na apresentação do livro há uma frase que diz: “Cada dia mais perdido, deixei-me ficar feliz.” A que lhe parece mais difícil um ocidental habituar-se no Japão?
O “sim” que não quer dizer sim, mas apenas que o nosso interlocutor nos está a dizer que confirma que está a ouvir o que estamos a dizer. Não quer dizer que concorde connosco ou que fará o que estamos a discutir, e ele ou ela parecem concordar. É um “sim” que muitas vezes resulta num “não”.
A si em particular o que lhe causou mais estranheza, aquilo que é totalmente diferente ou a aculturação de aspectos da civilização ocidental?
Não sinto estranheza por viver e trabalhar num local tão distante da minha referência cultural ou social. Atrai-me a diferença, a incompreensão, o nublado constante em que se vive devido à impossibilidade de descodificação.
Escreveram a propósito do livro “Depois de Morrer Aconteceram-me Muitas Coisas” que é “um português que escreve livros como o Almodóvar faz filmes”. Revê-se neste comentário?
Gosto muito do trabalho do Pedro Almodóvar e do livro que ele escreveu também – “Patty Diphusa”. Nunca tentei contar uma história como ele conta as dele, sei que seria um rotundo falhanço. Calculo que o amor a grandes personagens femininas e situação banais bizarras nos una.
Disse que às vezes escreve contos a meio de um romance para querer voltar ao romance. Este “Tóquio Vive longe da Terra” tem um registo semelhante ao do diário, na forma como está dividido. Porque o quis estruturar dessa maneira?
A estrutura nasceu da necessidade de contar a vida de uma personagem em folhetos semanais, mas por outro lado dá-lhe intimidade e permite que o narrador deambule com mais liberdade.
Nasceu em Luanda em 1974. Viveu nos arredores de Lisboa, em Macau, em Londres, em Amesterdão e agora em Tóquio. Até que ponto isso influencia a sua escrita?
Calculo que a minha necessidade de escrever sobre Portugal e personagens portuguesas advenha de sentir falta do local em que cresci e onde vivi os anos formadores. Grande parte da pesquisa que tenho utilizado nos meus livros foi feita em Portugal sem saber que a estava a fazer. É de referir também que tenho vivido em cidades onde desconheço a língua. Uma experiência de vida em que quase nunca percebo o que se passa à minha volta. É provável que isso influencie esta necessidade de descodificar o sítio de onde venho através da escrita.
O que sente quando escritores como António Lobo Antunes o elogiam e dizem que a sua escrita é “uma maneira de falar completamente nova na literatura portuguesa?”
O melhor reconhecimento que podemos receber da nossa escrita é o elogio de escritores e leitores que admiramos. O António Lobo Antunes é o escritor da língua portuguesa. Ninguém poderia ter feito um elogio mais importante ao meu trabalho.
O humor é uma ferramenta que não dispensa na sua escrita?
Nunca me sentei a escrever um texto humorístico. Não faço ideia de como isso se pode fazer. Ando a tentar ser um escritor sério, sorumbático e aborrecido há muito tempo. Calculo que não esteja a funcionar.
Ainda se lembra do primeiro livro que o marcou?
Foi “Deus Lhe Pague”, de Joracy Camargo. Mostrou-me que os diálogos podem ser tudo.
Quando começou a escrever?
Comecei a escrever quando perdi o medo às palavras e quando percebi que elas me explicavam. Pouco antes dos 30, ainda à mão, embriagado com tudo o que não sabia.
Vai acompanhando o que se tem passado na sociedade portuguesa? Como olha para isso a partir da “ilha”?
Portugal tem mudado muito desde que emigrei, já há uns 15 anos, em 1999. Um amigo dizia-me há pouco tempo que “agora quem governa o país são gajos como nós”. Não me parece uma estratégia vencedora.