Analfabetismo. As contas e as letras que os livros não ensinam

Analfabetismo. As contas e as letras que os livros não ensinam


Mariana e Josefa nunca aprenderam a ler ou escrever. Arranjaram truques para superar estas dificuldades: decoraram letras, usam a memória fotográfica para reconhecer algumas palavras ou pedem ajuda sempre que qualquer assunto do dia-a-dia se mostra complicado.


Mariana gostava de ter aprendido a ler. Quando era pequena não a deixaram ir à escola e agora está convencida de que que “já não merece a pena” aprender. Quando lhe perguntamos a idade, gosta de arredondar para cima: “Vou fazer 80 anos a 6 de Fevereiro”, responde sem pestanejar. Os bancos de madeira, os recreios, os colegas e as professoras foram substituídos na infância pelo trabalho do campo. Nascida no Redondo, no Alentejo, foi separada da mãe e dos irmãos e criada pela “tia rica” que a pôs a tomar conta dos perus: “A minha mãe tinha muitos filhos e estávamos divididos.” Mariana ficou com a tia, mas naqueles tempos o trabalho era bem mais importante que a escola. Pelo menos para alguns. Da sua família “todos foram à escola”, menos ela. 

Só abandonou as tarefas do campo, onde fez “tudo o que havia para fazer”, quando casou e nasceu a filha Maria Guilhermina. Apesar de não saber ler nem escrever, era Mariana quem lidava com o dinheiro lá de casa: “O meu marido entregava-mo e eu é que lho ia dando” à medida das necessidades. Quando sobrava algum, “também era eu que o contava para o ir guardar ao banco”, conta orgulhosa. E foi assim que ao longo da vida se foi “desenrascando”. Aprendeu a contar e a juntar as letras à medida que os papéis foram aparecendo no seu caminho: “Não sou daquelas pessoas que não sabem nadinha.”

Quando ficou viúva estava em casa, mas agarrou-se rapidamente a um trabalho na “fábrica dos pirolitos do Redondo”, emprego para o qual não precisava de habilitações: “Trabalhava na máquina. Fazíamos um pouco de tudo: tirávamos as garrafas para as caixas, carregávamo-las… Era mesmo trabalho de fábrica”, recorda. Mais tarde conheceu o homem que viria a ser o seu novo companheiro e mudou-se para S. Miguel de Machede, uma freguesia de Évora.

Josefa é outra face da mesma história. Tem 52 anos, nasceu em Évora e também é analfabeta. Toda a sua vida viveu em montes e em comum com Mariana teve a vida dedicada ao gado e ao cultivo: “No campo fiz todo o trabalho.

Também no arroz e na azeitona.” Conseguia esses biscates através da cooperativa e lembra-se de haver sempre muita coisa para fazer. “Depois a câmara precisou de pessoas e a cooperativa mandou-nos para lá”, conta. Foi um ponto de viragem no percurso de Josefa: “Entre outras coisas, o meu trabalho era varrer ruas. Já não me recordo quanto tempo lá estive, mas gostei de fazer tudo.” Hoje, se as pernas permitissem, ainda estaria a trabalhar: “Não estou reformada porque não tenho idade, mas as dores nas pernas é que já não me deixam fazer muita coisa.”

Nunca aprendeu a ler nem a escrever mas a mágoa por não ter andado na escola já ficou lá para trás. “Já fiquei triste mas agora já não fico. Sei resolver muito bem a minha vida sozinha”, assegura. E ainda vai mais longe: “Há pessoas que sabem ler e que não sabem resolver as coisas e eu, graças a Deus, não sei ler mas sei-me resolver.” 

Desafios e alegrias O dia-a-dia nunca apresentou desafios insuperáveis, ainda que uma simples ida ao supermercado possa ser tarefa complicada para quem não sabe ler, escrever ou contar. Não é o caso de Josefa, que arranjou todo o tipo de truques para dar a volta às dificuldades. “A minha filha faz a lista das compras e escreve lá os nomes dos produtos. Eu já conheço aquelas palavras e por isso vou logo ao sítio certo.” A fotografia mental de cada palavra que Josefa guarda na sua memória é a chave dos enigmas: “Há muitas letras que distingo. Faço uma fotografia da palavra e já sei o que lá está escrito”, explica.

E quando vai ao médico também não precisa de ninguém. “O que não sei pergunto, mas já é pouca coisa. Podem pensar que é mentira mas não é: já conheço o hospital tão bem como a minha casa.” A filha acompanha-a às consultas quando pode, mas nos dias em que tal não é possível Josefa não se atrapalha nem um pouco: “Onde é preciso ir eu vou!”, responde com a vivacidade. E também Mariana tem a companhia da filha para ir ao médico. “Depois lá dentro ela não entra. Eu sei falar! Quando não sei pergunto. Desenrasco-me bem”, despacha-se a explicar. Resume bem a sua vida numa única frase: “Acho que fiz tudo no lugar, só não fiz o ir à escola.”

A falha é agora compensada na Escola Comunitária de São Miguel de Machede, a que Mariana e Josefa recorrem para terem acesso a alguns serviços básicos como a saúde, a informação ou a educação não formal. Desde 1997 que nesta escola se põe gente grande a ler e a escrever. O Alentejo pode ser a região do país com mais população que não foi à escola – tem uma taxa de analfabetismo de 9,57%, segundo o censo de 2011 – mas algumas pessoas da vila já conseguiram aprender algumas competências básicas de leitura e escrita no curso de educação de adultos que a escola comunitária mantém a funcionar.

Mariana tem o maior orgulho nos netos por andarem na escola e não desistirem de lutar pelo futuro: “Eu ajudo-os, mesmo com a minha reforma pequenina”, conta. Diz com mágoa que nunca lhe deram a reforma do marido quando este morreu, nem sequer a ajudaram a pagar o funeral: “Mesmo assim ajudo a família. Gosto muito que eles estudem e não quero que sofram o que sofri com o meu trabalho.”

Josefa também nunca se deixou abater: “As minhas alegrias eram trabalhar no campo e portanto consegui fazer aquilo que sempre quis. Agora gosto da lida da casa, mas o que me faz mesmo feliz são as minhas filhas e o meu marido.”

E há coisas que ainda quer fazer, porque a vontade de descobrir nunca desapareceu. “Gostava de andar de avião, mas a minha filha não gosta. Diz para eu não me meter nisso!”, conta entre risos.