António Barreto. “Houve alguma ingratidão na maneira como o PSD foi afastado”

António Barreto. “Houve alguma ingratidão na maneira como o PSD foi afastado”


Hoje faria uma reforma agrária diferente. E talvez não tivesse a intenção de dar terra aos pequenos agricultores.


Fizemo-lo perder a “Tosca” de Masada – “uma produção no deserto de Israel – no canal Mezzo, um dos prazeres que descobriu desde que passou a trabalhar na sua casa/escritório, na Estrela, onde recebeu o i. Reformado e sem os compromissos na Fundação Francisco Manuel dos Santos, que, entre 2009 e Fevereiro de 2014, lhe tomavam quase 15 horas do dia, foi cedendo à conversa e as histórias sucederam-se. Numa sala alcatifada, inundada de luz natural e com um tecto de estuque trabalhado, falámos um pouco de tudo: do momento político actual, mas também da sua juventude, da religião, da reforma agrária. Aos 73 anos, António Barreto tem uma máxima: “Quando saio arranco o retrovisor.” Mas tudo serve de aprendizagem, “e os últimos cinco anos vêm enriquecer muito” os livros sobre a sociedade portuguesa que deixou em espera e está agora a retomar. O sociólogo confessa que se tivesse escrito a história de Portugal então, sem passar este último período, ela seria bem diferente: “Acreditava que as transformações eram mais sólidas e afinal é tudo muito frágil”, justifica.

A propósito do actual momento político, parafraseando Orwell, podemos dizer que todos os partidos são iguais mas uns são mais iguais do que outros?

Todos são iguais em direitos e deveres. Não são iguais naquilo em que acreditam, na maneira como servem o país. Esta moção de rejeição e a criação do governo de esquerda geraram um ou dois debates absolutamente ridículos. É de lastimar, parece que em Portugal estamos sempre na idade da pedra lascada.

Que debates?

Uma das discussões é saber se os governos – o que caiu e o que entrará em funções – são legítimos. As pessoas não sabem o que quer dizer “legítimo”. O Presidente da República ter encomendado ao Dr. Passos Coelho, líder do partido mais votado, um governo, é legítimo. O direito e dever de criar esse governo é legítimo. Ir ao parlamento com ele legítimo é. Os partidos da oposição juntarem-se para derrubar esse governo, é legítimo. O Partido Socialista querer fazer governo, é vontade legítima. O presidente estar um bocadinho apertado e talvez até não gostar mas ser obrigado a pedir ao PS que forme governo é também legítimo. Legítimo vem de legis, “o que é reconhecido pela lei”. Mas também o que é genuíno, verdadeiro. Ou o que está conforme a valores reconhecidos, morais, éticos. Tudo o que se passou até agora é legítimo, podemos é não gostar.

Pessoalmente gosta?

Eu não gosto desta aliança, deste acordo com o PC e com o Bloco, porque é um acordo monstruoso e absurdo. Mas têm o direito de o fazer. Penso que o governo não vai prestar, mas isso é outra coisa, não tem nada a ver com legitimidade.

Qual é a segunda discussão ridícula?

O argumento fantástico de que não há partidos de primeira e partidos de segunda, não há deputados de primeira e deputados de segunda. Mas quem disse que há?! Isto são os PC, os bloquistas e os PS a dizer “nós também temos o direito de ir a governo”.

Mas no fundo a esquerda é que diz que a coligação não tem direito de formar governo…

O que a esquerda diz é isso. É que por vontade deles, já que são mais, são eles que fazem a lei, portanto não é preciso seguir as regras. Estamos na idade púbere da democracia.

Há uma inversão de posições?

Hoje em Portugal dizer de alguém que é de direita é um insulto. Dizer que alguém é de esquerda é um título de nobreza. Quantas vezes os senhores e as senhoras do Bloco de Esquerda, para argumentar, dizem “isto é uma política da direita”? E isso basta. Mas não devia bastar, têm de se explicar. É lamentável que ao fim de 40 anos tenhamos coisas tão sérias para discutir, problemas tão novos e tão pesados, e estejamos ainda embrulhados na trica adjectiva, absolutamente nonsense.

A moralidade do governo PS é discutível?

O que é moralidade em política? Eu teria preferido que o Partido Socialista tivesse dito antes das eleições que se não ganhasse faria governo e com quem. Mas não é uma contravenção absoluta. O que há é que PC e Bloco acusaram o PS de ser de direita, um falsário, um traidor, um aldrabão, até 24 horas antes e 24 horas depois estão disponíveis para reconhecer a bondade e a glória do PS. Não é muito sólido, é frágil, mas não se pode dizer que seja imoral. Fui de um governo do PS e defendi uma coligação com o PSD, um governo central – é um velho vício que tenho [risos]. O Dr. Mário Soares, que não queria estar no mesmo governo que o Dr. Sá Carneiro, tirou da cartola um governo com o CDS. Eu, que por razões várias fiquei de fora, não achei que fosse imoral. A política cria muitas vezes situações de necessidade, que pedem seriedade, inteligência e obrigam a explicar.

O PS fez isso, explicou-se?

Isso é o que penso que o PS ainda não fez. O Dr. António Costa e o Partido Socialista ainda não explicaram o que querem fazer. Se o Presidente da República encomendar o governo, se o Dr. António Costa fizer o governo, tem de explicar porque fez isto e o que quer fazer.

Ainda vai a tempo?

O PS é o que é porque foi anticomunista durante 30 anos, nem teria sequer ganho eleições se o não fosse. Seria hoje, talvez, um partido social-democrata franzino caso não tivesse tido como grande processo político fazer frente à revolução, aos militares, à extrema-esquerda e ao PC em especial. O anticomunismo no PS é genético.

António Costa diz que se quebrou um tabu…

O Dr. António Costa não deve perceber muito bem o que diz em relação ao Muro do Berlim, porque a queda do Muro foi a morte do comunismo. O que está a dizer a Jerónimo de Sousa é “isto vai ser a tua morte”. E está convencido que fez uma coisa de carácter histórico, à escala portuguesa. Não fez, de modo nenhum. O que se está a passar lembra políticas de há 30, 40 ou 50 anos. O nosso atraso político é esse.

E que outras explicações terá de dar o PS?

António Costa vai ter de explicar porque aceitou estas 30 ou 40 sugestões do Bloco de Esquerda e do PC. Li os documentos e são muito estranhos, é uma coisa bizarra. O que está a dizer à população é que a TSU, a sobretaxa, as devoluções, são tudo exigências do Bloco e do PC, coisas que afinal não estavam nas intenções do Partido Socialista. Então qual era o programa do PS? Quer dizer que tinha um programa mais ao centro ou à direita e ainda de austeridade. Também vai ter de explicar, mas isso será só daqui a um ano, quando os revolucionários começarem a dizer que o PS está a faltar ao acordo – porque estes acordos são uma espécie de tratados de minas e armadilhas – onde está a ideia mais generosa sobre o salário mínimo, as pensões.

A sociologia tem algum nome para o momento que estamos a atravessar?

[Reflecte.] Lamento ainda não ter visto uma linha sobre a visão do mundo disto tudo. O que quer o PS? Que quer o poder, sabemos. Que quer derrubar a direita, sabemos. Quer gerir. Mas qual é a ideia do PS para Portugal? Nos meus velhos tempos, há 20 ou 30 anos, a modernidade consistia nisso: definir um projecto para o país, ter uma visão do mundo, da Europa. Hoje do Partido Socialista vêm zero ideias.

Uns meses antes das eleições disse que o seu desapontamento com a política era tal que não sabia se ia votar. Votou?

Não. Fui lá mas não votei.

Leia a entrevista na integra na edição de fim-de-semana do i