Esplanar…


Todos temos memórias da adolescência, do café onde íamos, das conversas de amigos. A tendência para tudo isso se perder na virtualidade dos tempos pode ter efeitos muito maus. Estaremos conscientes disso?


– Era sempre no 1500.
– Não valia nada. A Mexicana é que era.
– Treta. Vocês nem sabem, coitadinhos do que estão a falar. A malta acampava sempre era na Flor.
– Tu não entendes, como é que podes, a Flor… se nunca cheiraste o 1500.
– Tadinhos. O que vocês andaram a perder este tempo todo. Tantos anos de enganos.
– Por isso é que vocês ficaram uns totós…
– Olha vem aí o João. João! Qual era a pastelaria onde ias quando andavas no Liceu?
– O Pisca-Pisca… a melhor de Lisboa. A única onde o espírito da coisa se sentia…

Foi assim uma conversa que tive há uns tempos com amigos, tendo andado em liceus diferentes. Cada um com a sua pastelaria de culto, onde se encontravam os amigos e amigas para tomar café, galar as miúdas (ou os miúdos), comentar os namoros, a bola e os stôres.

Ver passar quem passava, discutir se tinha ou sido penálti, concluir que o árbitro, “como sempre”, nos roubava, que Filosofia ou Matemática eram uma seca, debater a existência de Deus e dizer que os pais estavam cada vez mais caretas.

Os cafés e as esplanadas também serviam para combinar os grandes planos para o fim-de-semana, estudar alguma coisita, trocar apontamentos, beber café, comer pastéis de nata quentes, acabados de sair do forno, ou cachorros e pregos (sempre “os melhores de Lisboa”).

Sempre os melhores de qualquer lado. De Lisboa ou de Freixo de Espada à Cinta. Sempre os melhores. Porque eram os nossos, os do nosso território, os dos nossos amigos.

Ainda passamos por lá e, se constatamos que fechou e se transformou num balcão de um banco, dá-nos o amoque. Ou se entramos e já nada daquilo tem a ver connosco ficamos despedaçados (nunca faça isso!).

Mas os cafés e as pastelarias, especialmente os que têm esplanada e ficam perto das escolas, são lugar de culto e encontro e porventura um dos mais agradáveis para a partilha interpares. 

Os empregados são sempre e ainda o Zé, o Manel e o Simão. E conhecem os pontos fracos de todos, e perguntam se ainda andamos a tentar engatar a Mariana. O vértice de tudo isto resume-se em duas palavras: “amizade” e “cumplicidade”.

Vivem-se hoje tempos de isolamento social, mesmo com a capacidade quase ilimitada da telecomunicação. São muitas as pessoas que vivem entre quatro paredes – casa, carro, escola ou emprego, ginásios e afins, casas de espectáculos, etc. –, e comunicam presencialmente com os outros apenas em termos operacionais e profissionais. As conversas “põem-se em dia” através de meios que pouco têm a ver com o espírito do “explanar”: redes sociais, blogues e outros meios, que incluem até as intermináveis conversas ao telemóvel.

Há algo que distingue o ser humano de um andróide ou um robô japonês – a capacidade de gerir o tempo das conversas, as frases, os silêncios e as palavras, o olhar e o demorar a olhar, o contemplar e até a expressão de sentimentos menos poéticos mas mais intensos, como numa discussão acalorada sobre qualquer coisa.

Vemos esse entusiasmo nas redes sociais, mas, por falta de interactividade humana, acaba por extravasar em raiva, ódio, palavras ofensivas e gongóricas, quase como se a moderação na defesa das ideias fosse impossível e tivesse de se transformar o opositor em inimigo a abater. Escrever num teclado sem estar olhos nos olhos com o outro dá esse poder. Afinal, enquanto chamar um nome ou dizer alguma coisa grave a alguém exige ponderação, medir as palavras e ver a reacção – e poder eventualmente receber a desaprovação do outro em directo –, carregar na tecla mais à esquerda ou mais à direita é completamente igual. Podemos desligar ou “deletar”.

O teclado e o ecrã não transmitem emoções a quem escreve, pior ainda quando as palavras não são relidas e carregar no “send” veicula--as automática e imediatamente para o destinatário, sem hipótese de voltar atrás e suscitando mais intensidade e rancor.

É importante desmontar a ideia de que se comunica muito. Mentira. Informa-se muito, mas se entendermos comunicação como “estar com o outro”, a vida urbana actual, por variadíssimas razões, reduz-se perigosamente para virtualidade.

Se é importante termos o nosso reduto, a nossa casa, estarmos connosco próprios e apreciarmos a solidão (que não é isolamento), importa também “esplanar”, estar à conversa sem olhar constantemente para o relógio, andar nas ruas do bairro onde vivemos e falar com este e aquele, mesmo de assuntos fúteis ou episódicos.

O ser humano tem muito para dar em termos relacionais, mas se coarcta o ver o outro, o cheirar e tocar, o sentir e esperar, o ver a consequência humana das palavras, o rir e o chorar, reduzindo-os a “smiles”, então creio que nos sentiremos muito empobrecidos e a condição humana altamente reduzida.

O meu era o 1500, na Av. Álvares Cabral. E o seu, leitor?

Pediatra
Escreve à terça-feira 

Esplanar…


Todos temos memórias da adolescência, do café onde íamos, das conversas de amigos. A tendência para tudo isso se perder na virtualidade dos tempos pode ter efeitos muito maus. Estaremos conscientes disso?


– Era sempre no 1500.
– Não valia nada. A Mexicana é que era.
– Treta. Vocês nem sabem, coitadinhos do que estão a falar. A malta acampava sempre era na Flor.
– Tu não entendes, como é que podes, a Flor… se nunca cheiraste o 1500.
– Tadinhos. O que vocês andaram a perder este tempo todo. Tantos anos de enganos.
– Por isso é que vocês ficaram uns totós…
– Olha vem aí o João. João! Qual era a pastelaria onde ias quando andavas no Liceu?
– O Pisca-Pisca… a melhor de Lisboa. A única onde o espírito da coisa se sentia…

Foi assim uma conversa que tive há uns tempos com amigos, tendo andado em liceus diferentes. Cada um com a sua pastelaria de culto, onde se encontravam os amigos e amigas para tomar café, galar as miúdas (ou os miúdos), comentar os namoros, a bola e os stôres.

Ver passar quem passava, discutir se tinha ou sido penálti, concluir que o árbitro, “como sempre”, nos roubava, que Filosofia ou Matemática eram uma seca, debater a existência de Deus e dizer que os pais estavam cada vez mais caretas.

Os cafés e as esplanadas também serviam para combinar os grandes planos para o fim-de-semana, estudar alguma coisita, trocar apontamentos, beber café, comer pastéis de nata quentes, acabados de sair do forno, ou cachorros e pregos (sempre “os melhores de Lisboa”).

Sempre os melhores de qualquer lado. De Lisboa ou de Freixo de Espada à Cinta. Sempre os melhores. Porque eram os nossos, os do nosso território, os dos nossos amigos.

Ainda passamos por lá e, se constatamos que fechou e se transformou num balcão de um banco, dá-nos o amoque. Ou se entramos e já nada daquilo tem a ver connosco ficamos despedaçados (nunca faça isso!).

Mas os cafés e as pastelarias, especialmente os que têm esplanada e ficam perto das escolas, são lugar de culto e encontro e porventura um dos mais agradáveis para a partilha interpares. 

Os empregados são sempre e ainda o Zé, o Manel e o Simão. E conhecem os pontos fracos de todos, e perguntam se ainda andamos a tentar engatar a Mariana. O vértice de tudo isto resume-se em duas palavras: “amizade” e “cumplicidade”.

Vivem-se hoje tempos de isolamento social, mesmo com a capacidade quase ilimitada da telecomunicação. São muitas as pessoas que vivem entre quatro paredes – casa, carro, escola ou emprego, ginásios e afins, casas de espectáculos, etc. –, e comunicam presencialmente com os outros apenas em termos operacionais e profissionais. As conversas “põem-se em dia” através de meios que pouco têm a ver com o espírito do “explanar”: redes sociais, blogues e outros meios, que incluem até as intermináveis conversas ao telemóvel.

Há algo que distingue o ser humano de um andróide ou um robô japonês – a capacidade de gerir o tempo das conversas, as frases, os silêncios e as palavras, o olhar e o demorar a olhar, o contemplar e até a expressão de sentimentos menos poéticos mas mais intensos, como numa discussão acalorada sobre qualquer coisa.

Vemos esse entusiasmo nas redes sociais, mas, por falta de interactividade humana, acaba por extravasar em raiva, ódio, palavras ofensivas e gongóricas, quase como se a moderação na defesa das ideias fosse impossível e tivesse de se transformar o opositor em inimigo a abater. Escrever num teclado sem estar olhos nos olhos com o outro dá esse poder. Afinal, enquanto chamar um nome ou dizer alguma coisa grave a alguém exige ponderação, medir as palavras e ver a reacção – e poder eventualmente receber a desaprovação do outro em directo –, carregar na tecla mais à esquerda ou mais à direita é completamente igual. Podemos desligar ou “deletar”.

O teclado e o ecrã não transmitem emoções a quem escreve, pior ainda quando as palavras não são relidas e carregar no “send” veicula--as automática e imediatamente para o destinatário, sem hipótese de voltar atrás e suscitando mais intensidade e rancor.

É importante desmontar a ideia de que se comunica muito. Mentira. Informa-se muito, mas se entendermos comunicação como “estar com o outro”, a vida urbana actual, por variadíssimas razões, reduz-se perigosamente para virtualidade.

Se é importante termos o nosso reduto, a nossa casa, estarmos connosco próprios e apreciarmos a solidão (que não é isolamento), importa também “esplanar”, estar à conversa sem olhar constantemente para o relógio, andar nas ruas do bairro onde vivemos e falar com este e aquele, mesmo de assuntos fúteis ou episódicos.

O ser humano tem muito para dar em termos relacionais, mas se coarcta o ver o outro, o cheirar e tocar, o sentir e esperar, o ver a consequência humana das palavras, o rir e o chorar, reduzindo-os a “smiles”, então creio que nos sentiremos muito empobrecidos e a condição humana altamente reduzida.

O meu era o 1500, na Av. Álvares Cabral. E o seu, leitor?

Pediatra
Escreve à terça-feira