Não partilhei a imagem da criança de três anos que morreu afogada e apareceu na costa de uma praia na Turquia porque não fui capaz de o fazer. A partilha nas redes sociais, no Facebook ou no Twitter, por muito impulsiva que possa ser, é uma decisão. Porém, não dispensa a energia de carregar num botão. Não a tive, admito. Não critico quem o fez e penso que os jornais tinham o dever de a publicar. É uma fotografia muito importante, que pode – e está a – mudar o curso dos acontecimentos.
Impressionou-me a posição em que estava o corpo da criança, mas o que me chamou a atenção foram os sapatos. Aquilo que estamos habituados a ver como a graça maior do que é ser pequenino aparecia, não no contexto mais comum de brincadeira e risos, mas num pesadelo de morte violenta.
A capa do jornal britânico “The Independent” acrescentava a seguinte legenda à fotografia: “Somebody’s child”. Este “filho de alguém” apela ao essencial, mas não passa necessariamente pelo reconhecimento de uma possibilidade terrível sobre os filhos de cada um.
Fala de “identificação” quem precisa de se “colocar no lugar do outro” para ser capaz de se comover com o que acontece aos outros. Fala de “identificação” quem não tem capacidade de imaginar o sofrimento alheio: de um pai de cujas mãos a família escapa num segundo; de um bebé cuja vida é interrompida numa viagem que nunca deveria ter sido levado a fazer. Se é para nos identificarmos, porque nos colocamos no lugar do pai e não no de Aylan Kurdi? Podia ter sido eu com três anos naquela praia, se tivesse tido o azar de nascer na Síria. Aylan era “filho de alguém”, como somos todos de certa forma – frágeis perante a catástrofe, vítimas em potência do que não controlamos.
Pretendo apenas defender que partilhamos uma condição que transcende a humanidade e que nos dispensa de muletas como a “identificação” que, à sua maneira subtil, acabam por minimizar a importância daquele momento. Aquela morte não é terrível por ser terrível “para mim” – porque sou pai, porque fui um bebé, porque tenho filhos –, mas porque é absolutamente horrível “em si”, independentemente das minhas circunstâncias. Não é pelo menos essa a primeira reacção, mais instintiva, à fotografia.
A publicação da imagem em vários jornais e a sua reprodução e partilha nas redes sociais produziram efeitos, sendo o principal ter recentrado a discussão sobre o drama dos refugiados. Lembremos que a guerra na Síria resultou nos últimos quatro anos e meio em 240 mil mortos, entre os quais 12 mil eram crianças. Cerca de metade da população síria está deslocada das suas casas ou fugiu do país. Mais de quatro milhões são refugiados, estando dois milhões registados na Turquia. A dimensão da crise humana é inversamente proporcional à atenção dada pela União Europeia.
Enquanto as instituições não decidem e alguma da comunicação social internacional discute se devia ou não publicar a imagem, a sociedade civil organiza-se e age. Em Portugal, quem quer ajudar pode visitar a Plataforma de Apoio aos Refugiados: http://www.refugiados.pt. Há muito a fazer.
Escreve à segunda-feira