Street racing. Acelerar na auto-estrada em nome do orgulho e da adrenalina


O ponto de encontro dos corredores são as estações de serviço. E as pistas são as estradas do Porto, Lisboa, Setúbal ou Faro. Ninguém foge à polícia. A polícia é que não os procura, dizem os street racers


Os carros seguem alinhados a 70 quilómetros/hora na A16 e três buzinadelas dão o sinal de partida para um "pico" entre um Saxo e um León. As costas colam-se ao banco e os carros mantêm-se numa disputa renhida até o ponteiro do Citroën tocar nos 200 quilómetros/hora. Começam assim as corridas das estradas nacionais em que todos participam, mas que poucos conhecem. É madrugada de segunda-feira, não há muitos carros no horizonte. "Isto assim está bom", atira Gustavo Jorge (nome fictício), sem aliviar o pé do acelerador.

Três dias antes, a pista tinha sido o Eixo-Norte/Sul. Era uma daquelas quintas-feiras em que, a partir das 23h, a área de serviço da Galp de Telheiras (sentido Sul/Norte) é transformada numa montra de carros ruidosos que atingem, em alguns casos, a velocidade de que um Boeing 747 precisa para descolar da pista: 290 quilómetros/hora. A maioria são PSA – o nome que se dá a Peugeots e Citroëns – e Hondas.

Nas traseiras das bombas, divididos em grupos, os corredores gritavam em jeito de despique as últimas alterações aos seus carros e implicavam com os que iam chegando: "Lá vem o homem num caixão com rodas", lançou um deles quando o roncar de um Volkswagen GT se dirigiu ao Burger Ranch. Contavam ainda as derrotas que para eles são vitórias. "Lembras-te de quando ele era apanhado e fugia? A bófia ficava maluca, não o apanhava nunca!", dizem entre risos aqui e ali uns sobre outros.

Nesse dia, os Cups – Citroën Saxo – partiram às 00h40m. À mesma hora a que a corrida da A16 (sentido Mem Martins/Cascais) começa. É sempre assim, quer seja em Lisboa, na A1 e na A2, no Porto, na A41, ou nas auto-estradas de Faro.

Em direcção à meta Quando saem das bombas, os street racers fazem tudo para reforçar a reputação que já conquistaram no alcatrão. Sabem que pegam no volante com as mãos que seguram a vida de todos os que usam a estrada. Mas na cabeça têm apenas um objectivo: chegar em primeiro. "Só quando nos assustamos é que pensamos como é que havemos de fugir ao acidente, até aí não pensas em mais nada", confidenciou ao i uma das poucas mulheres que durante anos deu cartas neste mundo dominado pelos homens e que esconde a sua identidade atrás do nome Maria Gonçalves.

Querem chegar em primeiro também para prestigiar a oficina que defendem. E José Esteves explica porque é que street racers e mecânicos são duas peças chave para o sucesso das corridas: "Para cada marca há várias oficinas especializadas. E os carros exibem o nome da sua no vidro da frente ou por cima dos faróis". É ele quem cuida agora da garagem onde, outrora, o filho se entretinha a alterar as máquinas. Zé, como é conhecido no meio, acabou por se render ao mundo da alta velocidade quando em 2012 as corridas lhe roubaram Telmo, o filho mais velho: "Isto era aquilo de que ele mais gostava."

Mas estas alterações nem sempre são feitas pelo próprio, como acontecia com Telmo. Existem grandes oficinas de transformação que estão dispersas por todo o país e que escondem grande parte das ilegalidades deste submundo e onde as rivalidades entre os proprietários são levadas ao limite. É comum dizer-se que existem acidentes que não são acidentes. "Provocar um é a melhor forma de matar sem ir para a prisão", assegura Rafael Jordão (nome fictício), street racer há anos.

mau perder Na A16, já com o Saxo a 220 km/h, Gustavo confirma. Estica o corpo para forçar ao máximo o acelerador enquanto explica que na faixa do lado é costume haver "muito mau perder". Ao ponto de se empurrar o adversário contra as laterais, mas sem lhe tocar: "A tranca de rodas é uma das técnicas mais usadas para arrumar um adversário."

Além dos acidentes provocados em estrada, há "problemas" que começam a ser conspirados logo na oficina. Basta para isso que o cliente não seja habitual ou já tenha defendido outras "casas". Por conhecer de perto todos estes esquemas, Maria Gonçalves decidiu afastar- -se daquilo que lhe dá mais gozo – o "mundo dos picos": "Se chegar algum desconhecido a uma oficina destas com muito dinheiro para investir num carro e que queira andar à frente, como nós dizemos, pode ser um alvo a abater. Percebes onde quero chegar?"

Negócios Zé não tem medo de expor o seu exemplo. Apesar de conservar a garagem onde antes o filho se dedicava aos carros, diz estar à vontade para falar porque nada tem a esconder: "A polícia até já lá foi e, além de não estarmos abertos ao público, nunca foram encontradas peças roubadas nem nada que despertasse a atenção". Não se desfez do espaço para se sentir mais perto do filho.

No barracão de pé direito elevado estão apenas três carros. Os três que o Telmo da fotografia pendurada na parede mais gostava: um Citroën Saxo, um Peugeot 106 e um Honda Type R. As ferramentas desarrumadas e os capots abertos fazem deste espaço o ambiente mais próximo de uma oficina que o i visitou.

No entanto, são os espaços onde se modificam estes carros que movimentam muitos milhares de euros por ano. Dinheiro que escapa ao fisco. Quando Maria fintava os rivais no alcatrão, alimentava também esta economia paralela que lhe levava por mês mais de um ordenado mínimo. "Nunca gastava menos que isso, é assim com toda a gente", admite, ressalvando que essa não é a única fonte de rendimento das oficinas. "Em quatro horas, as oficinas podem fazer até três mil euros. E depois tens sempre os outros negócios que existem bué no mundo dos picos, que é o pessoal roubar carros e vendê-los às peças…"

Há esquemas para tudo. Na bomba do Eixo Norte/Sul, as conversas de um dos grupos mostram como tudo parece simples. "Porque não vais buscar um BMW novo? Só precisas de fiador…", desafia um dos presentes. Máquinas destas custam fortunas, mas há outras alternativas que não implicam ter uma boa conta bancária. "Vais buscá-lo e a companhia paga. Fazes um seguro contra todos e, três meses depois, montamos o carro com peças amachucadas e dizes que te despistaste."

E a ideia nem seria original: "Porque é que achas que há mecânicos que têm Audis novos e BMWs?", questiona Maria: "Os negócios dele são comprar, roubar ou ir buscar carros ao estrangeiro e trocar matrículas a carros apreendidos para poderem circular."

Ninguém foge à polícia. A polícia é que não os procura, justificam os street racers. "Em 7 anos de bomba [a da A1], o espaço foi fechado quatro vezes pela GNR. E aquilo está todos os dias cheio", diz Maria Gonçalves. No dia da corrida no Eixo-Norte/Sul, porém, não foi assim.

Estas estratégias foram combinadas a alguns metros do monovolume de piscas ligados que a PSP destacou para o local nessa quinta-feira deste mês – já depois de os carros terem acabado de correr. E já havia acontecido o mesmo, em Dezembro, enquanto um carro de patrulha abastecia na bomba 9 daquela área de serviço.

Adolescentes a 250 km/h. Na corrida da A16, ao volante dos 240 cavalos do Seat León e dos 160 do Citroën – sem seguro nem inspecção – estão dois street racers com mais de 18 anos e carta de condução. Nem sempre isso acontece. Era 1h15m, e na corrida do Eixo, os Cups saíram de cena para dar lugar aos Hondas. O condutor de um deles era menor. Os espectadores que tinham carro foram para as bermas, os que não tinham, conformaram-se em ver de cima de uma ponte que cruza o Eixo. "Ele vem a 250, na boa", diz um deles apontando para o carro do rapaz. Outro responde: "Acho que vinha a mais!"

Quase em simultâneo, o Honda em que seguia o adolescente abranda bruscamente. "Será que se passou alguma coisa?", murmuram, desapontados. Mas era só um carro da PSP que passava no local. Acendeu os quatro piscas e assim desapareceu na estrada. O Honda regressou às bombas, onde à saída já estava a monovolume com vários agentes da PSP. Haviam chegado no final de duas horas de corridas.

Quase duas da manhã. Corredores e polícia estavam lado a lado. Os primeiros em grupos, como antes da corrida. Os segundos dentro do carro.

"Só vieram para flashar, mas não apanharam ninguém, agora saímos todos a 50 e está tudo bem", explica Leandro Costa (nome fictício), enquanto avisa os companheiros de estrada que vai para casa.

Pouca preparação Na A16, por esta hora, o resultado é: o Saxo perdeu o primeiro pico, mas portou-se bem no arranque, sobretudo se se pensar que "já estava parado há meses". Aqui há ainda tempo para um desempate, porque polícia nem vê-la. A "bófia até podia fazer mais", diz Gustavo. O problema é a falta de especialistas, dizem os corredores. "Não têm profissionais que conheçam bem a lei e a mecânica. Que percebam o que pode ou não ser alterado e de que forma. É que não basta olhar para um carro por fora e dizer: está rebaixado."

Antes que começasse a chuva que já há muito ameaçava, regressámos atentos ao León. Na recta em frente ao Cascais Shopping, já de regresso a Mem Martins, atingiu os 260 quilómetros hora. Minutos antes das 2 da madrugada, o Citroën ficou para trás e ligou os quatro piscas: precisava de ajuda.

Há muito que a A16 está sem regras ou limites de velocidade e fazer marcha atrás uns metros é mais uma infracção. "Deve-se ter soltado a correia de distribuição", grita Gustavo de dentro do Cup.

Cenas de telenovelas Nos segundos em que se discute o que fazer com o carro avariado, duas das quatro faixas ficam bloqueadas. O cenário é o de um filme ou, no caso português, de uma telenovela das nove da noite. Isto porque não seria inédito pedir estes carros alterados para participarem em produções televisivas. Em 2009, por exemplo, vários automóveis que correm ilegalmente nas auto-estradas foram solicitados pela produção da telenovela da SIC, "Perfeito Coração", para simular cenas de street racing.

O guião simulou o ambiente e as relações entre os vencedores e os perdedores durante uma corrida, bem como o comportamento dos espectadores. Em alguns casos, festejando vitórias como se de um jogo de futebol se tratasse.

Na comunidade, são muitos os que criticam a forma como a realidade foi adulterada. Queixam-se sobretudo de que as velocidades não são as mesmas e asseguram que as cenas mais parecem ser inspiradas em corridas de rua dos Estados Unidos da América do que no street racing que existe nas estradas portuguesas. Nas conversas do fórum PSA Maniacs, onde o i entrou, os supostos donos dos carros fizeram questão de mostrar o seu orgulho – à comunidade de quase cinco mil utilizadores – de terem contribuído para a produção da telenovela.

Este é um dos sítios da internet onde se combinam picos e se divulgam novidades, operações policiais e modificações em carros. E foi lá que se publicaram críticas à novela e se esmiuçaram todas as cenas em que a actriz Luciana Abreu surge dentro dos seus carros. Acham que são uns sortudos porque os seus carros foram seleccionados e explicam que as matrículas usadas nas cenas da telenovela não são as suas. Terão sido substituídas por outras para não identificar os proprietários. A ficção volta a cruzar-se com a realidade.

A avaria na A16 pôs fim à corrida. Só havia uma questão: como tirar o Citroën sem seguro da saída de uma auto-estrada? Resposta: com uma matrícula de um carro igual, segurado e com inspecção. Tal como na novela, foi o que aconteceu e, perto das três da manhã, já o reboque se afastava arrastando consigo o perdedor da noite. "Agora não publique o nosso truque, se não estraga-nos o esquema", atirou em tom de brincadeira Gustavo, um dos poucos participantes que sabia estar a falar com um jornalista.