Arriba Franco, más alto que Carrero Blanco!

Arriba Franco, más alto que Carrero Blanco!


A ETA entregou as armas no sábado e um tribunal espanhol condenou a um ano de prisão uma jovem estudante por gozar com a morte de um carrasco franquista. A história tem contas por fazer


Recentemente, um jornal português escreveu a seguinte notícia:

“Em Espanha, utilizar o Twitter para escrever humor negro sobre terrorismo nas redes sociais dá pena de prisão. Um tribunal espanhol condenou uma mulher a uma sentença de um ano por publicar piadas na rede social Twitter sobre o assassinato do político espanhol Luis Carrero Blanco em 1973, altura em que ocupava o cargo de primeiro-ministro, durante a fase final da ditadura.

Na decisão, lida esta quarta-feira, a estudante espanhola Cassandra Vera, 21 anos, foi acusada de ‘glorificação do terrorismo’ por 13 mensagens publicadas na rede social entre 2013 e 2016 a falar da morte de Carrero Blanco, num atentado bombista da ETA. ‘Filme: Três metros sobre o céu/ Produção: Filmes ETA/ Diretor: Argala [membro da organização terrorista ETA]/ Protagonista: Carrero Blanco/ Género: Viagem espacial’ é um dos exemplos, referidos pelo tribunal, numa lista tornada pública por Vera. (…) As autoridades espanholas consideram (…) que as frases, acompanhadas frequentemente por imagens, ‘reforçavam um caráter de descrédito, gozo e escárnio a uma vítima de terrorismo’. Para o tribunal não é lógico oferecer uma pena mais leve pelo facto de o atentado da ETA (…) ter ocorrido há mais de 40 anos. ‘A cicatriz do atentado persiste, mesmo que com menos intensidade, e as vítimas de terrorismo continuam a ser uma realidade inquestionável que merece respeito e consideração, independentemente da altura’, lê-se no comunicado do tribunal sobre a decisão.”

“Arriba Franco, más alto que Carrero Blanco” era a frase que os antifascistas espanhóis faziam soar e pintavam nas paredes depois da execução do almirante Carrero Blanco, primeiro-ministro e chefe dos serviços secretos, por um comando da ETA Militar. Esta sentença descrita numa notícia é uma profissão de fé na ditadura franquista. O homem que mandava torturar e executar antifascistas com um garrote passa a vítima do terrorismo merecedora de respeito. Quem ironiza com os ditadores e os seus carrascos de fila é condenado em tribunal pela mesma justiça que expulsou o juiz Baltazar Garzón por pretender julgar os crimes do franquismo. Não assistimos apenas ao impedir que se conheça e castigue os autores que levaram à morte, apoiados por tropas nazis alemãs e fascistas italianas, de centenas de milhares de pessoas na guerra civil, instaurando uma ditadura que torturava e executava os seus opositores; condenamos aqueles que, com perigo da sua própria vida, executavam os carrascos. O fantástico no relato desta notícia não é só o descrito, mas é sobretudo como se descreve. A jornalista portuguesa, que em nenhum momento tenta perceber quem era o angélico Carrero Blanco, vê-se compelida a explicar com parênteses retos [quando nós, jornalistas, fazemos entrar qualquer coisa num texto como se fosse um comentário ou acrescento de quem escreve] que Argala, membro do comando da ETA Militar, era um “terrorista da ETA”. A soma destes dois factos, o comportamento da justiça de Madrid e a forma como o senso comum jornalístico trata o acontecido a 20 de dezembro de 1973, quando o comando Txikia [nome de um dirigente da ETA assassinado a tiro pela polícia] fez voar o carro blindado do almirante Carrero Blanco, mostra que quem ganhou a guerra e continua a mandar são os herdeiros putativos, travestidos em democratas, do franquismo.

Mesmo a causa basca, com os seus momentos de heroísmo e tragédia e a sua viagem pelos infernos, está hoje submergida na propaganda dos vencedores da guerra civil. O massacre dos bascos pelas tropas franquistas e a destruição da sua liberdade antecedem o nascimento da ETA. E se é verdade que esta organização continua a matar depois da “transição para a democracia”, negociada com os franquistas, é-o ainda mais que nenhuma das questões anteriores à ETA, as suas balas e bombas, foi resolvida. Nem os franquistas foram condenados, nem as instituições que vieram do regime foram dissolvidas, nem mesmo se permite aos bascos decidir livremente o seu futuro. O ano passado assinalaram-se 40 anos do massacre de Vitória. Junto ao sítio onde caíram os corpos em sangue dos operários bascos em greve há um conjunto de cruzes. Apareceram pintadas com símbolos franquistas. Não consta que os tribunais espanhóis se tenham indignado, e a polícia apanhado os autores deste crime. Este sábado, a ETA entregou as armas. O texto antigo que se segue é sobre o que está por detrás das armas.

Era uma vez um fracasso. Falo de uma revista com o nome de “Pott”, que quer dizer, mais uma vez, fracasso, em euskera (basco).

Vivia-se o início da segunda metade da década de 70. Na Europa ocidental e civilizada eram os “anos de chumbo” (uma espécie de ressaca dos “68” de todas as promessas); no Estado espanhol, a transição do franquismo ainda não se dera. Ainda soava nos ares a voz do cantor catalão Lluis Llach, que assinalava a sangrenta repressão junto à igreja de São Francisco de Assis, em Gazteiz (Vitória), a 3 de março de 1976:

“Campanades a morts

fan un crit per la guerra

dels tres fills que han perdut

les tres campanes negres”

No chão, junto à igreja do bairro operário, ficaram tombados cinco mortos (os três da canção e mais dois baleados) e mais de 150 feridos. Os cinco mil operários, reunidos na igreja, tinham sido expulsos do templo a tiros de gás lacrimogéneo. À saída, a polícia franquista tinha-os fuzilado à queima-roupa. Nas ruas cinzentas de Bilbau, alguns jovens tateavam um novo caminho. Tomar os céus de assalto tinha, por enquanto, falhado. Seria possível, pelo menos, mudar a “terra dos que falam basco” (Eukal Herria), salvar a língua e construir uma comunidade imaginada. Três deles simbolizam, muitas décadas depois, os diferentes caminhos da revista “Pott” (como fracasso). Fixemos os nomes: Jon Juaristi, José Irazu Garmendia (Bernardo Atxaga) e Joseba Sarrionandia. Na altura da fundação da revista apenas ultrapassavam os 20 anos e, como se sabe, nessa idade tudo é possível . Na senda do poeta e comunista Gabriel Aresti, falecido prematuramente aos 42 anos, queriam, nas palavras de Atxaga, “escrever numa língua estranha que nunca pisou os jardins da corte”.

Como gritava nas letras Gabriel Aresti, num dos mais célebres poemas bascos da época:

“Tirar-me-ão as armas, e, com as minhas mãos,

eu defenderei a casa do meu pai;

Cortar-me-ão as mãos e, com os meus braços,

eu defenderei a casa do meu pai;

Deixar-me-ão sem braços, sem peito e, com a minha alma,

eu defenderei a casa do meu pai;

Eu morrerei

a minha alma perder-se-á

a minha linhagem perder-se-á,

mas a casa do meu pai

continuará

de pé”

Décadas depois, a “Pott” é uma memória, mas o fracasso perdura. Vejamos os caminhos que levam cada um dos três bascos aos territórios que ocupam. Jon Juaristi converteu-se no intelectual de serviço na denúncia do nacionalismo como identidade assassina. Viveu anos sob a ameaça da ETA Militar, dá entrevistas em sítios secretos e seguros.

Nos seus livros, como “El bucle melancólico”, denuncia histórias escutadas e repetidas na sua juventude: “Muitos bascos da minha geração estiveram expostos aos significantes deletérios deste tipo de histórias – narrações sacrificiais de amor e imolação, de heroísmo e de culpa, de traições e de derrotas” e, acrescenta Juaristi, “porque o nacionalismo basco só sabe uma coisa (…) mas sabe-o muito bem: é necessário perder para ganhar, manter vivos os agravos para que o sacrifício das várias gerações se mantenha politicamente rentável.” Por sua vez, Bernardo Atxaga transformou-se no mais conhecido escritor basco, “Obabakoak”, “El hombre solo” e “Lista de locos” são alguns dos seus livros. Politicamente apoiou, em tempos, a Esquerda Unida (comunistas).

Num pequeno texto do livro “Nueva Etiopía”, Atxaga relata um diálogo com um amigo historiador mantido enquanto estavam parados nos engarrafamentos de Bilbau. O escritor diz ao companheiro de viagem que encontrou um armazém de livros invendáveis, uma espécie de “cemitério de ilusões”. Aqui se encontrariam obras de Mao, Marx, Lenine e Trotski e memórias de mulheres libertadas e revolucionárias.

“Os mesmos livros que há 15 ou 20 anos circulavam entre a juventude inquieta com desejos de mudar a realidade; os mil textos, tantas vezes citados e comentados, que tanto haviam influenciado a vida (…). Não tinha sido preso um companheiro de turma por ter as obras de Mao? Não tinha ido para o campo um grupo de estudantes da nossa faculdade, para trabalhar com os assalariados rurais, porque tinham lido Kropotkin? Por outras palavras, os livros que víamos mortos naquele armazém haviam sido mais do que um monte de páginas: representavam os desejos de muita gente, a sua rebeldia e a sua luta. E agora estavam abandonados naquele armazém perdido da periferia.”

O amigo responde-lhe que “seria reacionário recusar a possibilidade de transformar uma realidade que, a todas as luzes, continua a ser indesejável. Porém, recusar um erro, uma simplificação, um ponto de partida falso não pode ter nada de reacionário”. Há livros enterrados que esperam ser redescobertos.

O vértice desta bifurcação em que participam Juaristi e Atxaga é Sarri (aliás, Joseba Sarrionandia), que é preso em 1980, acusado de ser membro da ETA Militar, e condenado a 28 anos de prisão. A 7 de julho de 1985 escapa da cadeia de Matutene, escondido numa aparelhagem sonora que tinha sido utilizada para dar um concerto no estabelecimento prisional. Desde então, este homem, que traduziu Pessoa e Jorge de Sena para euskera, continua fugido. Como por encantamento, todos os anos aparecem livros seus. O lugar onde se encontra permanece secreto; pistas, talvez, só a letra, em português, do fado que mandou ao cantor Mikel Laboa:

“Não és tu faculdade de sentir um espaço/ Terminado por linhas ou superfícies/ E não obstante chove sobre ti na cidade”

Há um poema seu que ilustra bem – provavelmente sem ser essa a intenção do seu autor – a situação de fracasso daqueles que resistem nas suas convicções sem conseguirem fugir a uma lógica perversa, admiravelmente enredados, para além de toda a coerência. Talvez esta seja a conclusão possível desta primeira história.

“El viajero se aventura a través del labirinto aunque apenas sí recuerda cuándo ni por dónde entró.

Supone que el camino ha de ser un laberinto Pues advina en lo nuevo reflejos del ayer. Mas no son reflejos amables, son vástagos del miedo Pues le revelam que cae, que se derrumba hacia el centro.

Pero hay un centro acaso?

No cae hacia los bordes?”