A reforma da justiça: desenvolver um olhar atento e crítico sobre os limites do direito e o futuro do estado de direito


Quando se fala de reformas na Justiça, é sempre importante não enfatizar apenas os erros e derivas das instituições judiciais e judiciárias, sem se fazer, também, um inventário das incongruências legais.


No momento em que estamos a escrever estas palavras não se sabe ainda qual será o resultado das eleições: elas ainda não ocorreram.

Tenho, porém, como assente que, em qualquer caso, a direita anticonstitucional não será formalmente chamada a partilhar responsabilidades, ou mesmo a influenciar, de modo decisivo, a solução política que governará o país.

A esse respeito, bastam-nos, estou seguro, as declarações feitas pelos líderes dos partidos que, desde a restauração da democracia, sempre governaram o país e, em conjunto com os demais partidos democráticos, mesmo que na oposição, deram vida ao regime constitucional e democrático vigente e à sua Constituição.

Seis vezes eleito dirigente do sindicato do MP, duas da MEDEL – uma associação europeia de juízes e procuradores – e, ainda, membro da direção da Civitas, a associação portuguesa defensora dos direitos humanos e filiada na FIDH, tive, forçosamente, de desenvolver um olhar atento e crítico em relação aos limites do Direito e ao futuro do Estado de Direito.

A posterior experiência na Eurojust aprofundou e confirmou tais conhecimentos, mesmo que ampliando as minhas perplexidades e dúvidas.

O Direito tanto pode ser usado por aqueles que o consideram um verdadeiro baluarte do Estado de Direito e dos direitos e liberdades que uma Constituição democrática consagra, como, pelo contrário, servir de férreo instrumento condicionador do progresso social.

Servindo para contrariar o desenvolvimento social, político, cultural e económico de uma dada sociedade, o Direito pode favorecer, assim, os interesses de uns poucos privilegiados.

Tal Direito é visto, porém, pela maioria, como injusto; como um Direito antinatural.

Por isso, se diz de determinada lei que é insuportavelmente injusta.

Nesta circunstância – perante uma evidente e revoltante contradição entre o direito legislado e o sentido do que a sociedade em determinado momento entende ser justo – pode, pois, acontecer um violento repúdio e uma rutura na legitimidade do ordenamento jurídico vigente.

Isto, na medida em que o Direito legislado passe a ser geralmente entendido como contrariando, frontalmente, os direitos humanos, socialmente reconhecidos como tal, num dado momento histórico.

Aí, num plano muito objetivo, o surgimento de um sentimento de injustiça social motivado pelo desajustamento entre o que poderemos chamar um «Direito natural» de conteúdo historicamente variável e o «Direito positivo» que, em dado momento, não acompanha – ou contraria – mesmo aquele.   

Em nome do Direito e da lei, podem, assim, tomar-se decisões que acompanhem e sirvam generosamente a evolução da humanidade e a noção contemporânea de bem comum, ou, pelo contrário, auxiliem apenas a defender, injustamente, antigos e já injustificados privilégios da parte mais pequena, mas mais poderosa da sociedade.

O Direito é, por conseguinte, um instrumento que, quando é legislado, como quando é usado, não é neutro.

Recordamos, a propósito, as palavras de um jurista de um dos antigos países de leste – era, então, assim que se dizia – que, após a queda do muro de Berlim, confessou, amargurado e desiludido, acerca das reformas preconizadas para o seu país: «sonhámos e prometeram-nos um Estado de Justiça e, afinal, deram-nos, tão só, um Estado de legalidade».

Nós, portugueses, pesem embora as muitas deceções sofridas, conseguimos, mesmo assim, elaborar e, sobretudo, manter viva uma Constituição que, no essencial, combina ainda bem a Democracia, o Estado Social e o Estado de Direito; tão bem, que, ao contrário do que os liberais e libertários preconizam, não imaginamos um sem os outros.   

Repescando, a este propósito, as propostas eleitorais genéricas, abstratas e – convenhamos – algo redondas, anunciadas, antes das eleições, pelas forças políticas mais influentes, não conseguimos, ainda, prever que mudanças estão, ou não, para acontecer.

É o caso do que se pretende, realmente, para o novo perfil processual, estatutário e funcional das instituições judiciais e judiciárias.

E tal conhecimento é importante, pois, de acordo com a Constituição, tais instituições estão incumbidas de, com independência e autonomia face aos outros órgãos do poder, impulsionar e impor o cumprimento das leis, interpretando-as de molde a que se coadunem, reconheçam e assegurem os direitos humanos e as garantias constitucionais que assistem aos cidadãos.

Porém, sem uma magistratura independente que prossiga e concretize a aplicação da lei, com objetividade e no respeito pela legalidade constitucional e a igualdade dos cidadãos, o Estado de Direito e, com ele, as liberdades e garantias que permitem a existência de uma verdadeira Democracia soçobram.

Claro está que a vida ensinou, também, que, apesar da consagração e consistência das características institucionais das magistraturas, nem sempre a Justiça funciona tão bem como seria espectável e que, em alguns momentos, tal funcionamento corre mesmo muito mal.

A responsabilidade desses momentos de mau funcionamento não cabem, porém, exclusivamente, aos magistrados que espoletam a ação da Justiça e à dos que aplicam a lei em nome do povo.

Eles têm, é certo, em medidas várias, responsabilidades próprias nesse mau funcionamento; todavia, nem sempre têm delas o exclusivo.

Convém, por isso, recordar que, quando se fala de reformas, é sempre importante não enfatizar apenas os erros e derivas da prática judicial e judiciária, sem, também, se fazer um inventário das incongruências legais que o legislador, descuidadamente, desatendeu, ou, tendo delas conhecimento, não cuidou de emendar.

Quando, a propósito do estatuto das magistraturas e correspondentes leis de organização judiciária, se fala de reformas, é conveniente, assim, ter cuidado para não deitar fora o bebé com a água do banho.

A ideia que, na Constituição, deu corpo e vida a uma instituição complexa – no caso a Justiça – que, por natureza e função, atua no fio da navalha dos direitos e interesses de uns e outros, pode e deve, com seriedade e sem objetivos enviesados, ser otimizada; sabemos disso.

Recordemos que os casos que compete à Justiça resolver espelham, em geral, as mesmas contradições que afetam, de uma maneira ou de outra, a vida e a mundividência pessoal de muitos magistrados que deles se ocupam nos tribunais.

Por o terem compreendido bem, nunca os sindicatos ingleses, por exemplo, admitiram que os tribunais e juízes ingleses interviessem no julgamento e resolução dos conflitos entre os sindicalizados e patrões: a origem social dos juízes, acreditam tais sindicatos, não lhes permite fazer uma leitura objetiva dos conflitos laborais.

Por essa e outras razões, é importante um controlo da atividade judicial que, evidenciando possíveis erros e abusos, não comprometa, simultaneamente, a independência da Justiça.

Dependendo do seu equilíbrio e pluralismo, os instrumentos de controlo podem constituir uma faca de dois gumes: por isso são tão úteis, como perigosos.

A Justiça portuguesa – ao contrário do que alguns pensam, outros não sabem e muitos repetem irrefletidamente – não é autogovernada.

Dispõe, isso sim, de órgãos de governo próprio que, conforme os casos, são participados por magistrados, um número significativo de elementos indicados pela Assembleia da República e, no caso do MP, ainda por elementos escolhidos pelo Governo, presidindo o Procurador-Geral da República, que é nomeado pelo Presidente da República. 

Para melhor compreender a realidade do mundo judicial e judiciário, importa, ainda, dizer uma verdade lapalissiana, mas, apesar disso, muito ignorada: não há – nunca houve – magistrados quimicamente puros.

Um bom magistrado é o que, apesar disso, e ciente dos seus limites e condicionamentos, procura ser, sempre, o mais objetivo possível.

De temer são, pois, os que, pretensiosos, se arrogam de tal pureza química.

Quem faz tal tipo de proclamação mente, sabe que mente e, se mente, só o faz por ter um desígnio que esconde, às vezes, na melhor das hipóteses, até de si próprio.

Há, por isso, quando se reformar o quadro de funcionamento, que cuidar bem do reconhecimento popular e da legitimidade e autoridade social da Justiça.

Por tal razão, no que ao governo das magistraturas respeita, a reforma que se intenta fazer deve, em termos políticos, ser o mais abrangente e consensual possível.

Usando a alegórica imagem da Justiça, protagonizada por uma valente senhora que segura numa das mãos uma balança pesada, importa, pois, não a retocar com muitas e incisivas cirurgias plásticas, supostamente embelezadoras da sua face e expressão, de modo a que, no fim, já ninguém, nem ela própria, a consigam reconhecer.   

  

A reforma da justiça: desenvolver um olhar atento e crítico sobre os limites do direito e o futuro do estado de direito


Quando se fala de reformas na Justiça, é sempre importante não enfatizar apenas os erros e derivas das instituições judiciais e judiciárias, sem se fazer, também, um inventário das incongruências legais.


No momento em que estamos a escrever estas palavras não se sabe ainda qual será o resultado das eleições: elas ainda não ocorreram.

Tenho, porém, como assente que, em qualquer caso, a direita anticonstitucional não será formalmente chamada a partilhar responsabilidades, ou mesmo a influenciar, de modo decisivo, a solução política que governará o país.

A esse respeito, bastam-nos, estou seguro, as declarações feitas pelos líderes dos partidos que, desde a restauração da democracia, sempre governaram o país e, em conjunto com os demais partidos democráticos, mesmo que na oposição, deram vida ao regime constitucional e democrático vigente e à sua Constituição.

Seis vezes eleito dirigente do sindicato do MP, duas da MEDEL – uma associação europeia de juízes e procuradores – e, ainda, membro da direção da Civitas, a associação portuguesa defensora dos direitos humanos e filiada na FIDH, tive, forçosamente, de desenvolver um olhar atento e crítico em relação aos limites do Direito e ao futuro do Estado de Direito.

A posterior experiência na Eurojust aprofundou e confirmou tais conhecimentos, mesmo que ampliando as minhas perplexidades e dúvidas.

O Direito tanto pode ser usado por aqueles que o consideram um verdadeiro baluarte do Estado de Direito e dos direitos e liberdades que uma Constituição democrática consagra, como, pelo contrário, servir de férreo instrumento condicionador do progresso social.

Servindo para contrariar o desenvolvimento social, político, cultural e económico de uma dada sociedade, o Direito pode favorecer, assim, os interesses de uns poucos privilegiados.

Tal Direito é visto, porém, pela maioria, como injusto; como um Direito antinatural.

Por isso, se diz de determinada lei que é insuportavelmente injusta.

Nesta circunstância – perante uma evidente e revoltante contradição entre o direito legislado e o sentido do que a sociedade em determinado momento entende ser justo – pode, pois, acontecer um violento repúdio e uma rutura na legitimidade do ordenamento jurídico vigente.

Isto, na medida em que o Direito legislado passe a ser geralmente entendido como contrariando, frontalmente, os direitos humanos, socialmente reconhecidos como tal, num dado momento histórico.

Aí, num plano muito objetivo, o surgimento de um sentimento de injustiça social motivado pelo desajustamento entre o que poderemos chamar um «Direito natural» de conteúdo historicamente variável e o «Direito positivo» que, em dado momento, não acompanha – ou contraria – mesmo aquele.   

Em nome do Direito e da lei, podem, assim, tomar-se decisões que acompanhem e sirvam generosamente a evolução da humanidade e a noção contemporânea de bem comum, ou, pelo contrário, auxiliem apenas a defender, injustamente, antigos e já injustificados privilégios da parte mais pequena, mas mais poderosa da sociedade.

O Direito é, por conseguinte, um instrumento que, quando é legislado, como quando é usado, não é neutro.

Recordamos, a propósito, as palavras de um jurista de um dos antigos países de leste – era, então, assim que se dizia – que, após a queda do muro de Berlim, confessou, amargurado e desiludido, acerca das reformas preconizadas para o seu país: «sonhámos e prometeram-nos um Estado de Justiça e, afinal, deram-nos, tão só, um Estado de legalidade».

Nós, portugueses, pesem embora as muitas deceções sofridas, conseguimos, mesmo assim, elaborar e, sobretudo, manter viva uma Constituição que, no essencial, combina ainda bem a Democracia, o Estado Social e o Estado de Direito; tão bem, que, ao contrário do que os liberais e libertários preconizam, não imaginamos um sem os outros.   

Repescando, a este propósito, as propostas eleitorais genéricas, abstratas e – convenhamos – algo redondas, anunciadas, antes das eleições, pelas forças políticas mais influentes, não conseguimos, ainda, prever que mudanças estão, ou não, para acontecer.

É o caso do que se pretende, realmente, para o novo perfil processual, estatutário e funcional das instituições judiciais e judiciárias.

E tal conhecimento é importante, pois, de acordo com a Constituição, tais instituições estão incumbidas de, com independência e autonomia face aos outros órgãos do poder, impulsionar e impor o cumprimento das leis, interpretando-as de molde a que se coadunem, reconheçam e assegurem os direitos humanos e as garantias constitucionais que assistem aos cidadãos.

Porém, sem uma magistratura independente que prossiga e concretize a aplicação da lei, com objetividade e no respeito pela legalidade constitucional e a igualdade dos cidadãos, o Estado de Direito e, com ele, as liberdades e garantias que permitem a existência de uma verdadeira Democracia soçobram.

Claro está que a vida ensinou, também, que, apesar da consagração e consistência das características institucionais das magistraturas, nem sempre a Justiça funciona tão bem como seria espectável e que, em alguns momentos, tal funcionamento corre mesmo muito mal.

A responsabilidade desses momentos de mau funcionamento não cabem, porém, exclusivamente, aos magistrados que espoletam a ação da Justiça e à dos que aplicam a lei em nome do povo.

Eles têm, é certo, em medidas várias, responsabilidades próprias nesse mau funcionamento; todavia, nem sempre têm delas o exclusivo.

Convém, por isso, recordar que, quando se fala de reformas, é sempre importante não enfatizar apenas os erros e derivas da prática judicial e judiciária, sem, também, se fazer um inventário das incongruências legais que o legislador, descuidadamente, desatendeu, ou, tendo delas conhecimento, não cuidou de emendar.

Quando, a propósito do estatuto das magistraturas e correspondentes leis de organização judiciária, se fala de reformas, é conveniente, assim, ter cuidado para não deitar fora o bebé com a água do banho.

A ideia que, na Constituição, deu corpo e vida a uma instituição complexa – no caso a Justiça – que, por natureza e função, atua no fio da navalha dos direitos e interesses de uns e outros, pode e deve, com seriedade e sem objetivos enviesados, ser otimizada; sabemos disso.

Recordemos que os casos que compete à Justiça resolver espelham, em geral, as mesmas contradições que afetam, de uma maneira ou de outra, a vida e a mundividência pessoal de muitos magistrados que deles se ocupam nos tribunais.

Por o terem compreendido bem, nunca os sindicatos ingleses, por exemplo, admitiram que os tribunais e juízes ingleses interviessem no julgamento e resolução dos conflitos entre os sindicalizados e patrões: a origem social dos juízes, acreditam tais sindicatos, não lhes permite fazer uma leitura objetiva dos conflitos laborais.

Por essa e outras razões, é importante um controlo da atividade judicial que, evidenciando possíveis erros e abusos, não comprometa, simultaneamente, a independência da Justiça.

Dependendo do seu equilíbrio e pluralismo, os instrumentos de controlo podem constituir uma faca de dois gumes: por isso são tão úteis, como perigosos.

A Justiça portuguesa – ao contrário do que alguns pensam, outros não sabem e muitos repetem irrefletidamente – não é autogovernada.

Dispõe, isso sim, de órgãos de governo próprio que, conforme os casos, são participados por magistrados, um número significativo de elementos indicados pela Assembleia da República e, no caso do MP, ainda por elementos escolhidos pelo Governo, presidindo o Procurador-Geral da República, que é nomeado pelo Presidente da República. 

Para melhor compreender a realidade do mundo judicial e judiciário, importa, ainda, dizer uma verdade lapalissiana, mas, apesar disso, muito ignorada: não há – nunca houve – magistrados quimicamente puros.

Um bom magistrado é o que, apesar disso, e ciente dos seus limites e condicionamentos, procura ser, sempre, o mais objetivo possível.

De temer são, pois, os que, pretensiosos, se arrogam de tal pureza química.

Quem faz tal tipo de proclamação mente, sabe que mente e, se mente, só o faz por ter um desígnio que esconde, às vezes, na melhor das hipóteses, até de si próprio.

Há, por isso, quando se reformar o quadro de funcionamento, que cuidar bem do reconhecimento popular e da legitimidade e autoridade social da Justiça.

Por tal razão, no que ao governo das magistraturas respeita, a reforma que se intenta fazer deve, em termos políticos, ser o mais abrangente e consensual possível.

Usando a alegórica imagem da Justiça, protagonizada por uma valente senhora que segura numa das mãos uma balança pesada, importa, pois, não a retocar com muitas e incisivas cirurgias plásticas, supostamente embelezadoras da sua face e expressão, de modo a que, no fim, já ninguém, nem ela própria, a consigam reconhecer.