A Constituição e os direitos fundamentais: os direitos dos trabalhadores e o direito ao trabalho (II)


É o mínimo que se exige, hoje, de um país normal: levar os direitos fundamentais, todos os direitos fundamentais, a sério.


1. Neste ano da comemoração dos cinquenta anos da Revolução de Abril, uma reflexão coletiva sobre os direitos fundamentais parece necessária.

A título de exemplo, apontámos já, a importância estruturante que têm os direitos dos trabalhadores e o direito ao trabalho na Constituição.

Por razões algo parecidas às que ora nos movem, a discussão dos mesmos temas teve, não há muito tempo, lugar em Itália e em França.

Tal reflexão foi concitada, curiosamente, não por juslaboristas, mas por juristas de áreas alheias a esse ramo do Direito, mas o seu alcance x quedou-se, no essencial, no plano académico, não tendo, assim, conseguido realizar o projeto dos seus animadores.

O caminho que propomos agora é, porém, um outro, menos erudito é certo, mas mais popular: chamar todos os cidadãos e, em especial, os jovens a conhecer e discutir o texto constitucional, os direitos fundamentais.

Inspiremo-nos, contudo, na reflexão italiana.

2. Longe vão, com efeito, os tempos em que a, então, recém-aprovada Constituição da República Italiana (CRI) do Pós-Guerra afirmou, com otimismo, logo no seu artigo primeiro que «A Itália é uma República democrática fundada no trabalho".

Sobre tal formulação profundamente humanista e congregando, à data da sua aprovação, o consenso de correntes de pensamentos político-filosóficos distintas (democrata-cristãos, socialistas e comunistas), afirmou, mais recentemente, Gustavo Zagrebelsky (Professor Emérito de Direito Constitucional da Universidade de Turim, juiz e, depois, Presidente do Tribunal Constitucional italiano):

«Fora do imaginário literário [que suscita], a questão pode ser formulada nos termos simples que se seguem. A Constituição coloca o trabalho como fundamento, como princípio de que dependem: do trabalho, as políticas económicas; das políticas económicas, a economia.»

 E, adiante, clarificou o que pensava, da realidade atual:

«Hoje, assistimos, porém, a um mundo que, em relação a esta sequência, está invertido: da economia dependem as políticas económicas; destas, os direitos e deveres do trabalho […] O trabalho é [hoje] o resultado passivo de diferentes fatores, com os quais deve ser compatível. Não são esses outros fatores que têm de provar a sua compatibilidade com o trabalho. O trabalho, de "principal", passou [por isso] a ser consequencial.» *tradução nossa; (FONDATA SUL LAVORO – Ed. Einaudi, Turim, 2013)

Importante é, em todo o caso, fixar, hoje, o encadeamento das precedências tal como elas foram enunciadas por Zagrebelsky: «…do trabalho, as políticas económicas; das políticas económicas, a economia»

Ou seja, a economia como resultado de uma política democraticamente definida e fundada no trabalho e, também por isso, da prossecução de políticas económicas que o privilegiam.

Por outras palavras, o trabalho como inspirador das opções e dos rumos da economia, e esta pensada politicamente como propiciadora daquele.

Ou, ainda, a economia como concretização da política democraticamente definida pelos órgãos próprios da República e não a política como subordinada à dinâmica da economia – dos mercados – e aos interesses dos que, à margem dos órgãos de soberania, a tutelam efetivamente. 

3. Piero Calamandrei – insigne jurista e, ele próprio, constituinte italiano em 1946, então em representação do Partido de Ação (socialista liberal) – dissera já, a este propósito, sobre a Constituição que ajudou a escrever:

«É tarefa [da República] eliminar os obstáculos que impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana: portanto, dar trabalho a todos, dar um salário justo a todos, dar uma escola a todos, dar a todos os homens a dignidade do homem.

 Somente quando isso for alcançado será possível afirmar, verdadeiramente, que a fórmula contida no artigo primeiro – «A Itália é uma República democrática fundada no trabalho – corresponderá à realidade.

 Porque, até que haja esta possibilidade de cada homem trabalhar e estudar e de retirar com segurança do seu trabalho os meios para viver como homem, não só a nossa República não poderá ser chamada de fundada no trabalho, como também não poderá ser chamada de democrática.

Porque, uma democracia em que não existe esta igualdade de facto, em que existe apenas uma igualdade de direito, é uma democracia puramente formal, não é uma democracia em que todos os cidadãos são verdadeiramente capazes de contribuir para a vida da sociedade, para dar o seu melhor contributo e na qual todas as forças espirituais de todos os cidadãos são chamadas a contribuir para este caminho, para este progresso contínuo de toda a sociedade.» *tradução nossa; (LO STATO SIAMO NOI, Ed. Chiarelettere, Milano, 2011)

Não podia o autor ser mais explícito, nem mais atual.

Com aquela inovadora e imaginativa fórmula política – «A Itália é uma República democrática fundada no trabalho» – a CRI procurava, na verdade, superar os limites do velho constitucionalismo liberal.

Isto, quando aquele constitucionalismo liberal se referia ao trabalho e, sobretudo, o que era mais habitual, quando nem sequer o referia.

O constitucionalismo liberal sempre considerou, no fundamental, a propriedade privada como o suporte e a garantia de todas as outras liberdades e da verdadeira Democracia: votavam apenas, por isso, os que eram proprietários.

Na discussão e redação da Constituição francesa de 1848, Tocqueville, em representação dos liberais e contra a proposta dos socialistas, repudiou expressamente a consagração constitucional do direito ao trabalho, pois, segundo ele, tal proposta, conduzira diretamente ao comunismo ou, no mínimo, ao socialismo. (L. Ferry – A. Renaut, PHILOSOPHIE POLITIQUE (3), DES DROITS DE L’HOMME À L’IDÉE RÉPUBLICAINE, Ed. Quadrige / PUF, 1996).

Pelo contrário, a consensual fórmula constitucional italiana – que, no pós-guerra, uniu democrata-cristãos, socialistas e comunistas – propunha uma razão e caminho diversos e, mesmo, inversos: que fossem o homem e a sua criatividade e atividade produtiva a serem consagrados como base e princípio constitucional primordial.

Seria a partir de tais valores que, no essencial, se promoveria e satisfaria a dignidade humana dos homens e dos cidadãos italianos.

No trabalho do homem, na sua obra como homem e para o homem, e não na propriedade – reservada apenas a alguns – deveria, pois, assentar o fundamento filosófico fundamental da cidadania e, por conseguinte, a orientação da sua nova Constituição.

4. Como disse – recordemos – Zagrebelsky: do trabalho, as políticas económicas; das políticas económicas, a economia.

Competiria, pois, ao Estado – a todos os cidadãos, afinal – desenvolver condições para a materialização de políticas que ambicionassem orientar a atividade económica da República no sentido proposto pelo artigo 1.º da CRI.

Com a nova CRI – defendeu, ainda, o mesmo autor – os trabalhadores que, no século anterior, eram tratados discriminatoriamente pelos liberais mais ortodoxos, tornar-se-iam no principal fundamento e no motor da República; uma República erguida, então, a partir das dolorosas ruínas físicas e morais deixadas pelo regime fascista.

Parece fazer, pois, todo o sentido, num momento de ascensão de novos populismos radicais e de direita, relembrar a origem e a vocação constitucional de tais direitos fundamentais.

Principalmente, dos consagrados nas constituições europeias ocidentais, nascidas em momentos diferentes, mas depois da II Guerra, da resistência popular contra as ditaduras fascistas: a dignificação da vida de todos e de cada homem, de cada trabalhador, alcançada através e na sua participação ativa – da sua obra – na realização solidária do «bem comum».

5. No que a Portugal respeita, isso só será possível – como facilmente se constata todos os dias – com o contributo político ativo e não sectário dos que se reveem na Constituição e no sentido profundamente humanista dos seus princípios e direitos fundamentais e, entre eles, dos que respeitam ao trabalho e aos trabalhadores.

É o mínimo que se exige, hoje, de um país normal: levar os direitos fundamentais, todos os direitos fundamentais, a sério.

E um país normal é, afinal, o que deseja a maioria dos cidadãos.        

 

A Constituição e os direitos fundamentais: os direitos dos trabalhadores e o direito ao trabalho (II)


É o mínimo que se exige, hoje, de um país normal: levar os direitos fundamentais, todos os direitos fundamentais, a sério.


1. Neste ano da comemoração dos cinquenta anos da Revolução de Abril, uma reflexão coletiva sobre os direitos fundamentais parece necessária.

A título de exemplo, apontámos já, a importância estruturante que têm os direitos dos trabalhadores e o direito ao trabalho na Constituição.

Por razões algo parecidas às que ora nos movem, a discussão dos mesmos temas teve, não há muito tempo, lugar em Itália e em França.

Tal reflexão foi concitada, curiosamente, não por juslaboristas, mas por juristas de áreas alheias a esse ramo do Direito, mas o seu alcance x quedou-se, no essencial, no plano académico, não tendo, assim, conseguido realizar o projeto dos seus animadores.

O caminho que propomos agora é, porém, um outro, menos erudito é certo, mas mais popular: chamar todos os cidadãos e, em especial, os jovens a conhecer e discutir o texto constitucional, os direitos fundamentais.

Inspiremo-nos, contudo, na reflexão italiana.

2. Longe vão, com efeito, os tempos em que a, então, recém-aprovada Constituição da República Italiana (CRI) do Pós-Guerra afirmou, com otimismo, logo no seu artigo primeiro que «A Itália é uma República democrática fundada no trabalho".

Sobre tal formulação profundamente humanista e congregando, à data da sua aprovação, o consenso de correntes de pensamentos político-filosóficos distintas (democrata-cristãos, socialistas e comunistas), afirmou, mais recentemente, Gustavo Zagrebelsky (Professor Emérito de Direito Constitucional da Universidade de Turim, juiz e, depois, Presidente do Tribunal Constitucional italiano):

«Fora do imaginário literário [que suscita], a questão pode ser formulada nos termos simples que se seguem. A Constituição coloca o trabalho como fundamento, como princípio de que dependem: do trabalho, as políticas económicas; das políticas económicas, a economia.»

 E, adiante, clarificou o que pensava, da realidade atual:

«Hoje, assistimos, porém, a um mundo que, em relação a esta sequência, está invertido: da economia dependem as políticas económicas; destas, os direitos e deveres do trabalho […] O trabalho é [hoje] o resultado passivo de diferentes fatores, com os quais deve ser compatível. Não são esses outros fatores que têm de provar a sua compatibilidade com o trabalho. O trabalho, de "principal", passou [por isso] a ser consequencial.» *tradução nossa; (FONDATA SUL LAVORO – Ed. Einaudi, Turim, 2013)

Importante é, em todo o caso, fixar, hoje, o encadeamento das precedências tal como elas foram enunciadas por Zagrebelsky: «…do trabalho, as políticas económicas; das políticas económicas, a economia»

Ou seja, a economia como resultado de uma política democraticamente definida e fundada no trabalho e, também por isso, da prossecução de políticas económicas que o privilegiam.

Por outras palavras, o trabalho como inspirador das opções e dos rumos da economia, e esta pensada politicamente como propiciadora daquele.

Ou, ainda, a economia como concretização da política democraticamente definida pelos órgãos próprios da República e não a política como subordinada à dinâmica da economia – dos mercados – e aos interesses dos que, à margem dos órgãos de soberania, a tutelam efetivamente. 

3. Piero Calamandrei – insigne jurista e, ele próprio, constituinte italiano em 1946, então em representação do Partido de Ação (socialista liberal) – dissera já, a este propósito, sobre a Constituição que ajudou a escrever:

«É tarefa [da República] eliminar os obstáculos que impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana: portanto, dar trabalho a todos, dar um salário justo a todos, dar uma escola a todos, dar a todos os homens a dignidade do homem.

 Somente quando isso for alcançado será possível afirmar, verdadeiramente, que a fórmula contida no artigo primeiro – «A Itália é uma República democrática fundada no trabalho – corresponderá à realidade.

 Porque, até que haja esta possibilidade de cada homem trabalhar e estudar e de retirar com segurança do seu trabalho os meios para viver como homem, não só a nossa República não poderá ser chamada de fundada no trabalho, como também não poderá ser chamada de democrática.

Porque, uma democracia em que não existe esta igualdade de facto, em que existe apenas uma igualdade de direito, é uma democracia puramente formal, não é uma democracia em que todos os cidadãos são verdadeiramente capazes de contribuir para a vida da sociedade, para dar o seu melhor contributo e na qual todas as forças espirituais de todos os cidadãos são chamadas a contribuir para este caminho, para este progresso contínuo de toda a sociedade.» *tradução nossa; (LO STATO SIAMO NOI, Ed. Chiarelettere, Milano, 2011)

Não podia o autor ser mais explícito, nem mais atual.

Com aquela inovadora e imaginativa fórmula política – «A Itália é uma República democrática fundada no trabalho» – a CRI procurava, na verdade, superar os limites do velho constitucionalismo liberal.

Isto, quando aquele constitucionalismo liberal se referia ao trabalho e, sobretudo, o que era mais habitual, quando nem sequer o referia.

O constitucionalismo liberal sempre considerou, no fundamental, a propriedade privada como o suporte e a garantia de todas as outras liberdades e da verdadeira Democracia: votavam apenas, por isso, os que eram proprietários.

Na discussão e redação da Constituição francesa de 1848, Tocqueville, em representação dos liberais e contra a proposta dos socialistas, repudiou expressamente a consagração constitucional do direito ao trabalho, pois, segundo ele, tal proposta, conduzira diretamente ao comunismo ou, no mínimo, ao socialismo. (L. Ferry – A. Renaut, PHILOSOPHIE POLITIQUE (3), DES DROITS DE L’HOMME À L’IDÉE RÉPUBLICAINE, Ed. Quadrige / PUF, 1996).

Pelo contrário, a consensual fórmula constitucional italiana – que, no pós-guerra, uniu democrata-cristãos, socialistas e comunistas – propunha uma razão e caminho diversos e, mesmo, inversos: que fossem o homem e a sua criatividade e atividade produtiva a serem consagrados como base e princípio constitucional primordial.

Seria a partir de tais valores que, no essencial, se promoveria e satisfaria a dignidade humana dos homens e dos cidadãos italianos.

No trabalho do homem, na sua obra como homem e para o homem, e não na propriedade – reservada apenas a alguns – deveria, pois, assentar o fundamento filosófico fundamental da cidadania e, por conseguinte, a orientação da sua nova Constituição.

4. Como disse – recordemos – Zagrebelsky: do trabalho, as políticas económicas; das políticas económicas, a economia.

Competiria, pois, ao Estado – a todos os cidadãos, afinal – desenvolver condições para a materialização de políticas que ambicionassem orientar a atividade económica da República no sentido proposto pelo artigo 1.º da CRI.

Com a nova CRI – defendeu, ainda, o mesmo autor – os trabalhadores que, no século anterior, eram tratados discriminatoriamente pelos liberais mais ortodoxos, tornar-se-iam no principal fundamento e no motor da República; uma República erguida, então, a partir das dolorosas ruínas físicas e morais deixadas pelo regime fascista.

Parece fazer, pois, todo o sentido, num momento de ascensão de novos populismos radicais e de direita, relembrar a origem e a vocação constitucional de tais direitos fundamentais.

Principalmente, dos consagrados nas constituições europeias ocidentais, nascidas em momentos diferentes, mas depois da II Guerra, da resistência popular contra as ditaduras fascistas: a dignificação da vida de todos e de cada homem, de cada trabalhador, alcançada através e na sua participação ativa – da sua obra – na realização solidária do «bem comum».

5. No que a Portugal respeita, isso só será possível – como facilmente se constata todos os dias – com o contributo político ativo e não sectário dos que se reveem na Constituição e no sentido profundamente humanista dos seus princípios e direitos fundamentais e, entre eles, dos que respeitam ao trabalho e aos trabalhadores.

É o mínimo que se exige, hoje, de um país normal: levar os direitos fundamentais, todos os direitos fundamentais, a sério.

E um país normal é, afinal, o que deseja a maioria dos cidadãos.