Numa excelente iniciativa da Editora Gradiva e do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), foi recentemente reeditado o “Manifesto para a Ciência em Portugal” de José Mariano Gago, aproveitando a efeméride dos 75 anos do seu nascimento. Originalmente publicado em 1990, li o ensaio quando foi publicado (e ainda mantenho a minha cópia) orgulhoso do professor do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico em que eu era, na altura, aluno. Nunca fui aluno de José Mariano Gago, mas, depois do seu regresso ao Técnico vindo da presidência da JNICT, discuti com ele as cadeiras avançadas de física experimental, da qual ele era o responsável e mentor na Engenharia Física Tecnológica.
Para além de revisitar o ensaio, aconselho vivamente a leitura, em paralelo, da reflexão feita por Mariano Gago, de forma cândida e extensa, em entrevista a João de Pina-Cabral, do Instituto de Ciências Sociais, e publicada na revista Análise Social em 2011 [1]. Havendo muitas outras pessoas que podem relatar, na primeira pessoa, as suas impressões sobre Mariano Gago (aliás, explicitamente mencionadas na entrevista), esta revela, na primeira pessoa, a sua estatura intelectual, a visão que apoiou a sua acção política e o seu diagnóstico do que, em 2011, estava ainda por a fazer.
Existem três aspectos que sobressaem sempre na minha releitura da entrevista. O primeiro é a ênfase na apropriação da ciência pela sociedade, como instrumento fundamental para a consolidação do sistema científico. Esta apropriação é enfaticamente entendida como social e cultural, indo muito para lá do impacto económico da ciência – argumenta Mariano Gago que só com uma base social de apoio muito alargada será possível tornar inevitável o desenvolvimento científico.
O segundo aspecto que sobressai é a importância de uma visão clara e plano detalhado para sustentar a acção política – se no Manifesto se apresentam as intenções, na entrevista é possível compreender como é que toda a sua acção política anterior foi apoiada num plano de médio e longo prazo, arquitectado e devidamente articulado nas suas diferentes dimensões, reconhecendo as próprias limitações das instituições existentes (e.g. universidades) ou dos equilíbrios a que foi conduzido. Esta componente é absolutamente notável porque, em todas as áreas da acção política, muito raramente encontramos nos actores políticos a ambição, a clareza, e a consistência na execução sistemática de um plano de transformação, sem “… ceder à tentação da nossa eterna pequenez” [2].
Finalmente, é evidente a tensão permanente em relação às universidades. Por um lado, representaram fonte de resistência aos processos de desenvolvimento científico, e.g. no início do lançamento das instituições científicas ou como promotoras de processos de avaliação descritos como imaturos. Por outro lado, é aí, nas universidades e nas instituições científicas, que reside a esperança para o desenvolvimento de uma parte importante das carreiras científicas fora das empresas. Mariano Gago também reconhece que, apesar do número de investigadores estar mais próximo dos padrões dos países com que nos queremos comparar, existe ainda um grande caminho a percorrer principalmente nos “recursos físicos (…) ou financeiros disponíveis para fazer investigação”.
Apesar de alguns progressos, passados 12 anos sobre a entrevista, a questão das carreiras está ainda por resolver na sua totalidade. Ao contrário da esperança de Mariano Gago, e apesar de algumas instituições, como o Técnico, terem desenvolvido planos plurianuais para recrutamento e desenvolvimento de carreiras, o panorama geral ainda é desanimador. Podemos argumentar que o contexto das universidades e das instituições científicas tem sido adverso a planeamentos de médio prazo, mas talvez seja antes uma evidência do que Mariano Gago descreve como “(…) uma mistura de derrotismo triste, aparente bom senso, ansiedade e medo do futuro que formam a nossa portuguesíssima teia da desgraça, assente em séculos de pobreza e de falta de oportunidades”.
Em tempos como os que vivemos, em que se anunciam reformas nas universidades e desafios nas carreiras científicas, é sempre inspirador reler o optimismo e a ambição de José Mariano Gago: optimismo na capacidade do país para construir uma sociedade alicerçada na ciência; ambição para um país plenamente europeu e com os padrões de países como a Suécia, Suíça e Dinamarca. É assim, com certeza, desejo de todos que a reedição do Manifesto e a releitura desta entrevista sejam um ímpeto adicional para a nossa comunidade científica e os nossos decisores políticos manterem este optimismo e, principalmente, a ambição de Mariano Gago.
[1] Entrevista a José Mariano Gago por João de Pina-Cabral, Análise Social, vol. XLVI (200), 2011, 388-413, disponível aqui: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1325586077J8 zDR6sq3Ep56EE1.pdf
[2] Todas as citações referem-se ao texto em [1]
Professor Catedrático do Departamento
de Física, Instituto Superior Técnico
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