Doutoramentos na indústria e em outros ambientes não académicos

Doutoramentos na indústria e em outros ambientes não académicos


Várias Universidades, em diversos países, oferecem programas de doutoramento em meio empresarial sob a designação generalizada “Industrial PhD”. 


Faz um ano que este jornal publicou um artigo intitulado “Porquê fazer um doutoramento? Porquê contratar um doutorado?” com a minha visão sobre o tema. Divulgado nas redes sociais, recebeu centenas de likes e foram deixados comentários relevantes no LinkedIn. Foi salientado o absurdo de estarmos a alcançar a média da OCDE na percentagem de doutorados na população ativa e termos uma das mais baixas taxas de absorção no setor privado. Foi lamentada a pouca valorização dos doutorados no mercado de trabalho, os baixos salários, a falta de oportunidades de emprego e perspetivas da carreira de investigação. Foi recomendada a experiência de quem realizou o doutoramento em ambiente empresarial e aproveitou sinergias entre universidade e empresa. O presente artigo foi motivado por estes comentários e pelo recente polémico concurso aberto pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) para atribuição de até 400 bolsas de doutoramento em ambiente não académico.

Várias Universidades, em diversos Países, oferecem programas de doutoramento em meio empresarial sob a designação generalizada “Industrial PhD”. É o caso de Universidades com fortes programas em engenharia e ciências nos Estados Unidos, Reino Unido, e União Europeia (UE) (Alemanha, Dinamarca, França, Suécia, Finlândia, Noruega, Espanha), estes no âmbito de uma linha específica de financiamento da UE. É objetivo destas bolsas apoiar a investigação e inovação na Europa, criar uma economia mais inovadora e competitiva, mais empregos altamente qualificados, novas tecnologias e produtos para o mercado. As empresas terão também que investir financeiramente e garantir o seu sucesso (alguns programas pressupõem um contrato de trabalho com o doutorando). De facto, estas beneficiarão do desenvolvimento de novas tecnologias e produtos do seu interesse, do acesso a investigação de ponta e recursos humanos qualificados, de ideias e soluções inovadoras, da transferência de conhecimento. Em Portugal, a FCT lançou em 2022 um concurso a bolsas de doutoramento em empresa tendo atribuído cerca de 100. Este ano, quadruplicou esse número e alargou a oferta a outras instituições de acolhimento não académicas (entidades públicas, sociais, da saúde, culturais ou outras instituições de interface). Embora sujeitos aos requisitos de um doutoramento “académico” em termos de regulamentação, rigor, supervisão e exame, e sendo obrigatoriamente um dos orientadores científicos oriundo da academia, existem diferenças. No entanto, a universidade que atribui o grau não foi considerada no processo de modo a garantir a suficiente flexibilidade dos seus programas doutorais para integrar a nova tipologia nas escolas doutorais e oferecer, formalmente, estes doutoramentos. 

Independentemente do interesse que possa ser atribuído à nova tipologia por poder aumentar a empregabilidade dos doutorados e a inovação, que se não criem ilusões! Não é por terem realizado um doutoramento “tradicional” que só pouco mais de 15% dos doutorados trabalha fora do meio académico em Portugal. Um doutoramento académico é perfeitamente adequado a emprego fora da academia e são numerosos os exemplos de transição da academia para empresas com desenvolvimento de carreiras de sucesso. Os doutoramentos académicos são desenhados para fornecer um profundo nível de conhecimento e competências de investigação numa determinada área, pensamento crítico e criativo, capacidade de resolver problemas. Por isso, esses doutores vão enriquecer o local de trabalho com competências altamente valorizadas por empregadores em vários setores permitindo-lhes encontrar empregos gratificantes fora da academia. Também ninguém se iluda quanto à origem da inovação e das ferramentas para a atingir. As empresas podem identificar os problemas que lhe interessa resolver e fornecer recursos para o desenvolvimento e comercialização de produtos e serviços inovadores, mas é, no geral, a academia que tem a competência e capacidade em I&D para criar novas ideias e tecnologias. As empresas com essa competência são as que verdadeiramente desenvolvem investigação, embora focada nos seus objetivos próprios. E fazem-na com base em doutorados formados na academia, com percursos internacionais e elevadas qualificações. Sem uma Universidade com atividade de investigação qualificada em todas as áreas do conhecimento e devidamente financiada, e não encarada como parceira subalterna nos financiamentos e nos projetos, não haverá inovação. Acresce que a investigação académica (para a qual este ano foram disponibilizadas 1450 bolsas), ajuda a compreender o mundo e a encontrar novas soluções para os seus graves problemas e desafios e fornece os alicerces para o desenvolvimento e melhoria de novos produtos, processos, mercados e serviços. 

Mas, o que é um doutoramento? Na verdade, tem diferente significado conforme os sistemas educativos. Não é uma qualificação bem definida. Por isso, há que saber em que ambiente científico o doutorado foi treinado, quem o orientou, qual o júri que avaliou a tese. Um doutoramento não é um título vago, mas a demonstração da evolução e valor científico do doutorado na sua área. Não pode ser atribuído a alguém só porque desenvolveu um programa de trabalho, durante o período de duração da bolsa, num ambiente desqualificado ou muito tolerante, quer este seja académico quer não académico. É que o sucesso de um doutorado depende da qualidade do doutoramento realizado e da sua atitude e desempenho como profissional. 

Prof Catedrática Jubilada do IST, diretora do Programa doutoral-FCT BIOTECnico, membro da comissão para a reestruturação do 3º ciclo do IST