O fogo do génio


As patentes oriundas das indústrias farmacêutica e biotecnológica constituem um objeto recorrente desta dissonância moral entre propriedade intelectual e direito à saúde.


Por Duarte Miguel Prazeres, Professor e Investigador do Instituto Superior Técnico

O termo patente designa o direito legal temporário que concede aos inventores o direito exclusivo de fabricar, usar e vender a suas invenções, em troca da divulgação pública das características técnicas das mesmas. Os seus defensores argumentam que as patentes contribuem para incentivar a inovação, dinamizar a economia, proteger investimentos, promover a divulgação e estimular a concorrência. Em oposição, outros observam que as patentes reivindicam o que não deve ser possuído, inibem a inovação, limitam a concorrência e bloqueiam o acesso a medicamentos e tecnologias que deveriam ser universais. Ironicamente, as patentes surgiram como uma forma de combater o monopólio de corporações poderosas dominadoras da atividade económica nos seus ramos.

Os antecedentes históricos do sistema de patentes surgiram na economia altamente regulada da República de Veneza do séc. XIV [1]. A situação legal vigente determinava que muitos produtos artesanais ou tecnológicos só podiam ser produzidos e vendidos por guildas de artesãos e mercadores. Estas associações de ofício características das épocas Medieval e Renascentista, possuíam direitos exclusivos concedidos pelo estado que impediam o cidadão comum de praticar atividades como a produção de vidro, a fiação de lã ou a construção naval sem a bênção das guildas apropriadas. Quaisquer invenções criadas pelos seus membros ou por forasteiros caíam sob o monopólio das guildas, que tinham o direito exclusivo de usar essas invenções no seu domínio de atividade. Consciente da importância dos artesãos e tecnologias estrangeiras para a dinamização da sua economia, a República de Veneza instituiu a determinada altura um sistema de licenças que concediam aos forasteiros o privilégio de fabricar ou vender determinados bens ou serviços exclusivos das guildas. Numa fase inicial este sistema não impedia as guildas de se apropriarem e lucrarem com as invenções dos detentores das licenças. Face a esta limitação, as licenças acabariam por evoluir de forma a incluir não só privilégios positivos ou licenças para a prática, mas também privilégios exclusivos sobre a invenção em questão [1].

No mundo atual as patentes conferem aos inventores o direito de explorar comercialmente e em exclusivo a suas invenções durante um período limitado, geralmente 20 anos, em troca da divulgação pública das características técnicas das mesmas. O direito a lucrar em exclusivo incentiva o desenvolvimento de novas tecnologias e produtos, enquanto a obrigatoriedade em divulgar as invenções dissemina o conhecimento e promove mais inovação. Durante o período de vigência, os inventores e seus patronos podem recuperar o investimento e financiar novas iniciativas. Acresce que após a entrada no domínio público, a invenção passa a estar disponível para promover a criação de novos produtos e tecnologias. Esta visão otimista e bem intencionada da doutrina das patentes foi bem expressa pelo presidente americano Abraham Lincoln, ele próprio um inventor com obra patenteada, quando referiu que o sistema adicionava o “combustível do interesse” ao “fogo do génio”.

Apesar da sua instituição generalizada em todo mundo, o sistema de patentes em vigor é criticado recorrentemente. Muitos vêem este tipo de propriedade intelectual como um artifício que concede às empresas o monopólio de ideias e invenções que, em muitos casos, resultam de investigação e investimento público e dos esforços de gerações de cientistas. Por este prisma, o sistema de patentes é apenas mais um instrumento de controlo de mercado ao dispor das grandes corporações, que lhes permite tolher a concorrência e praticar preços que dificultam o acesso aos produtos patenteados. A moralidade de conceder o monopólio de exploração é especialmente questionada em situações em que a invenção protegida encerra em si a possibilidade de salvar ou proteger vidas humanas. As patentes oriundas das indústrias farmacêutica e biotecnológica constituem um objeto recorrente desta dissonância moral entre propriedade intelectual e direito à saúde. Durante os anos 1990s, por exemplo, encetaram-se disputas acesas entre países como o Brasil ou a África do Sul que pretendiam produzir versões genéricas de fármacos antivirais para o tratamento da SIDA e as multinacionais farmacêuticas detentoras das patentes respetivas. Mais recentemente, a pandemia de COVID-19 originou uma série de controvérsias, com muitos países a exigir a renúncia ou o licenciamento compulsivo de patentes por forma a aumentar o acesso global a vacinas e tratamentos. Outras estratégias empresariais merecedoras de críticas incluem ações destinadas a manter a todo o custo a relevância de patentes para lá do período de exclusividade, um excesso de litigância e a criação de redes densas de patentes sobrepostas, muitas vezes de baixa qualidade, com o objetivo de impedir a competição de desenvolver novos produtos. Mais desconcertante ainda é a emergência recente de modelos de negócio baseados na aquisição de portfolios de patentes com o único propósito de processar potenciais infratores. 

O debate e controvérsia sobre o uso de patentes mantém-se interminável. Um mercado sem patentes seria provavelmente mais competitivo, mas também muito menos dinâmico, inovador e benéfico para a sociedade em geral. Mas é inegável e evidente que ao longo dos últimos anos a promessa de inovação, crescimento económico, oportunidades e prosperidade tem sido distorcida por práticas abusivas pouco dignificantes. Claramente, o sistema precisa de reformas urgentes que permitam que o objectivo central das patentes seja de facto o de atiçar o fogo do génio criativo a que aludiu Abraham Lincoln.
 

[1] Sichelman, T., O'Connor, S. (2012) Patents as promoters of competition: The guild origins of patent law in the Venetian republic. San Diego L. Rev., 49, 1267.

O fogo do génio


As patentes oriundas das indústrias farmacêutica e biotecnológica constituem um objeto recorrente desta dissonância moral entre propriedade intelectual e direito à saúde.


Por Duarte Miguel Prazeres, Professor e Investigador do Instituto Superior Técnico

O termo patente designa o direito legal temporário que concede aos inventores o direito exclusivo de fabricar, usar e vender a suas invenções, em troca da divulgação pública das características técnicas das mesmas. Os seus defensores argumentam que as patentes contribuem para incentivar a inovação, dinamizar a economia, proteger investimentos, promover a divulgação e estimular a concorrência. Em oposição, outros observam que as patentes reivindicam o que não deve ser possuído, inibem a inovação, limitam a concorrência e bloqueiam o acesso a medicamentos e tecnologias que deveriam ser universais. Ironicamente, as patentes surgiram como uma forma de combater o monopólio de corporações poderosas dominadoras da atividade económica nos seus ramos.

Os antecedentes históricos do sistema de patentes surgiram na economia altamente regulada da República de Veneza do séc. XIV [1]. A situação legal vigente determinava que muitos produtos artesanais ou tecnológicos só podiam ser produzidos e vendidos por guildas de artesãos e mercadores. Estas associações de ofício características das épocas Medieval e Renascentista, possuíam direitos exclusivos concedidos pelo estado que impediam o cidadão comum de praticar atividades como a produção de vidro, a fiação de lã ou a construção naval sem a bênção das guildas apropriadas. Quaisquer invenções criadas pelos seus membros ou por forasteiros caíam sob o monopólio das guildas, que tinham o direito exclusivo de usar essas invenções no seu domínio de atividade. Consciente da importância dos artesãos e tecnologias estrangeiras para a dinamização da sua economia, a República de Veneza instituiu a determinada altura um sistema de licenças que concediam aos forasteiros o privilégio de fabricar ou vender determinados bens ou serviços exclusivos das guildas. Numa fase inicial este sistema não impedia as guildas de se apropriarem e lucrarem com as invenções dos detentores das licenças. Face a esta limitação, as licenças acabariam por evoluir de forma a incluir não só privilégios positivos ou licenças para a prática, mas também privilégios exclusivos sobre a invenção em questão [1].

No mundo atual as patentes conferem aos inventores o direito de explorar comercialmente e em exclusivo a suas invenções durante um período limitado, geralmente 20 anos, em troca da divulgação pública das características técnicas das mesmas. O direito a lucrar em exclusivo incentiva o desenvolvimento de novas tecnologias e produtos, enquanto a obrigatoriedade em divulgar as invenções dissemina o conhecimento e promove mais inovação. Durante o período de vigência, os inventores e seus patronos podem recuperar o investimento e financiar novas iniciativas. Acresce que após a entrada no domínio público, a invenção passa a estar disponível para promover a criação de novos produtos e tecnologias. Esta visão otimista e bem intencionada da doutrina das patentes foi bem expressa pelo presidente americano Abraham Lincoln, ele próprio um inventor com obra patenteada, quando referiu que o sistema adicionava o “combustível do interesse” ao “fogo do génio”.

Apesar da sua instituição generalizada em todo mundo, o sistema de patentes em vigor é criticado recorrentemente. Muitos vêem este tipo de propriedade intelectual como um artifício que concede às empresas o monopólio de ideias e invenções que, em muitos casos, resultam de investigação e investimento público e dos esforços de gerações de cientistas. Por este prisma, o sistema de patentes é apenas mais um instrumento de controlo de mercado ao dispor das grandes corporações, que lhes permite tolher a concorrência e praticar preços que dificultam o acesso aos produtos patenteados. A moralidade de conceder o monopólio de exploração é especialmente questionada em situações em que a invenção protegida encerra em si a possibilidade de salvar ou proteger vidas humanas. As patentes oriundas das indústrias farmacêutica e biotecnológica constituem um objeto recorrente desta dissonância moral entre propriedade intelectual e direito à saúde. Durante os anos 1990s, por exemplo, encetaram-se disputas acesas entre países como o Brasil ou a África do Sul que pretendiam produzir versões genéricas de fármacos antivirais para o tratamento da SIDA e as multinacionais farmacêuticas detentoras das patentes respetivas. Mais recentemente, a pandemia de COVID-19 originou uma série de controvérsias, com muitos países a exigir a renúncia ou o licenciamento compulsivo de patentes por forma a aumentar o acesso global a vacinas e tratamentos. Outras estratégias empresariais merecedoras de críticas incluem ações destinadas a manter a todo o custo a relevância de patentes para lá do período de exclusividade, um excesso de litigância e a criação de redes densas de patentes sobrepostas, muitas vezes de baixa qualidade, com o objetivo de impedir a competição de desenvolver novos produtos. Mais desconcertante ainda é a emergência recente de modelos de negócio baseados na aquisição de portfolios de patentes com o único propósito de processar potenciais infratores. 

O debate e controvérsia sobre o uso de patentes mantém-se interminável. Um mercado sem patentes seria provavelmente mais competitivo, mas também muito menos dinâmico, inovador e benéfico para a sociedade em geral. Mas é inegável e evidente que ao longo dos últimos anos a promessa de inovação, crescimento económico, oportunidades e prosperidade tem sido distorcida por práticas abusivas pouco dignificantes. Claramente, o sistema precisa de reformas urgentes que permitam que o objectivo central das patentes seja de facto o de atiçar o fogo do génio criativo a que aludiu Abraham Lincoln.
 

[1] Sichelman, T., O'Connor, S. (2012) Patents as promoters of competition: The guild origins of patent law in the Venetian republic. San Diego L. Rev., 49, 1267.