Tirar a pedra que sela o sepúlcro


Em Portugal, parte importante da estrutura de governo da Igreja abjura tudo quanto possa pôr em risco o poder clerical. Como era de esperar, começam agora a vir à luz do dia posições de importantes membros do clero desqualificando expressamente o trabalho da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja.


A festa da ressurreição da ressurreição é a celebração da superação de todos os limites, da rejeição do fatalismo e da resignação, da desconstrução da sisudez sacrificial imposta ao cristianismo por quem lhe subtrai a dimensão libertadora. Isso é o que é central na Páscoa como festa nuclear dos cristãos. E, se todas as Páscoas são Páscoas da Igreja, esta, sobretudo em Portugal, é-o mais ainda.

A escolha de Francisco para Papa desencadeou dinâmicas muito fortes que os seus dois antecessores congelaram de modo autoritário. Vindo das periferias de uma Igreja até então absolutamente eurocêntrica na sua estrutura de poder, Francisco quis ser fiel ao pobre de Assis e resgatou o que sempre devia ter sido o centro da vida da Igreja: os pobres, as sobras humanas, os descartados por esta economia que mata. Uma Igreja pobre e para os pobres, em que eles sejam “instância de evangelização da própria Igreja”, como escreveu na exortação Evangelii Gaudium – esse é o foco pastoral de Francisco.

É isso que dá um sentido simultaneamente ad intra e ad extra ao chamamento do Papa a uma “Igreja em saída”. Recado para dentro, desde logo, porque uma Igreja centrada nos pobres é o povo de Deus, o avesso de  uma Igreja clericalizada, refém de uma cultura administrativista e hierarquizadora. Recado para fora, porque a centralidade dos pobres muda as políticas, as economias e as culturas e desafia todos os poderes a essa metanoia radical.

A Igreja precisava, para ser fiel a Jesus, de ser constipada pelo ar fresco dos debates a que Francisco a veio expor e que o poder curial havia vedado. Eu acredito que essa constipação – ou mesmo bronquite, sei lá – é necessária para que o organismo se torne mais saudável, ganhe imunidades (ao clericalismo, ao sexismo, ao autoritarismo,
à administrativização) que agora não tem.

Esta Páscoa tem de ser a da tomada de consciência coletiva de que o clericalismo é uma “perversão da Igreja”, como lhe chamou o Papa. Em Portugal, parte importante da estrutura de governo da Igreja abjura tudo quanto possa pôr em risco o poder clerical. Como era de esperar, começam agora a vir à luz do dia posições de importantes membros do clero desqualificando expressamente o trabalho da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja.

É a resposta defensiva de quem sente ameaçado o sistema de poder radicado na distinção hierárquica entre o povo crente e a uma casta de ministros do divino.

É a reedição da estratégia antiga de autorrepresentação da Igreja como cidadela rodeada de inimigos, contra a essência do movimento cristão: um povo a caminho, irmanado na construção de um reino de fraternidade radical. Por isso, nesta Páscoa da Igreja em Portugal, a ressurreição passará pelos gestos concretos de reparação das vítimas e de transformação da cultura de violência estrutural inerente ao que Francisco tem corajosamente designado por pecado do clericalismo.

 

Ex-deputado do BE, professor universitário e católico progressista

Tirar a pedra que sela o sepúlcro


Em Portugal, parte importante da estrutura de governo da Igreja abjura tudo quanto possa pôr em risco o poder clerical. Como era de esperar, começam agora a vir à luz do dia posições de importantes membros do clero desqualificando expressamente o trabalho da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja.


A festa da ressurreição da ressurreição é a celebração da superação de todos os limites, da rejeição do fatalismo e da resignação, da desconstrução da sisudez sacrificial imposta ao cristianismo por quem lhe subtrai a dimensão libertadora. Isso é o que é central na Páscoa como festa nuclear dos cristãos. E, se todas as Páscoas são Páscoas da Igreja, esta, sobretudo em Portugal, é-o mais ainda.

A escolha de Francisco para Papa desencadeou dinâmicas muito fortes que os seus dois antecessores congelaram de modo autoritário. Vindo das periferias de uma Igreja até então absolutamente eurocêntrica na sua estrutura de poder, Francisco quis ser fiel ao pobre de Assis e resgatou o que sempre devia ter sido o centro da vida da Igreja: os pobres, as sobras humanas, os descartados por esta economia que mata. Uma Igreja pobre e para os pobres, em que eles sejam “instância de evangelização da própria Igreja”, como escreveu na exortação Evangelii Gaudium – esse é o foco pastoral de Francisco.

É isso que dá um sentido simultaneamente ad intra e ad extra ao chamamento do Papa a uma “Igreja em saída”. Recado para dentro, desde logo, porque uma Igreja centrada nos pobres é o povo de Deus, o avesso de  uma Igreja clericalizada, refém de uma cultura administrativista e hierarquizadora. Recado para fora, porque a centralidade dos pobres muda as políticas, as economias e as culturas e desafia todos os poderes a essa metanoia radical.

A Igreja precisava, para ser fiel a Jesus, de ser constipada pelo ar fresco dos debates a que Francisco a veio expor e que o poder curial havia vedado. Eu acredito que essa constipação – ou mesmo bronquite, sei lá – é necessária para que o organismo se torne mais saudável, ganhe imunidades (ao clericalismo, ao sexismo, ao autoritarismo,
à administrativização) que agora não tem.

Esta Páscoa tem de ser a da tomada de consciência coletiva de que o clericalismo é uma “perversão da Igreja”, como lhe chamou o Papa. Em Portugal, parte importante da estrutura de governo da Igreja abjura tudo quanto possa pôr em risco o poder clerical. Como era de esperar, começam agora a vir à luz do dia posições de importantes membros do clero desqualificando expressamente o trabalho da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja.

É a resposta defensiva de quem sente ameaçado o sistema de poder radicado na distinção hierárquica entre o povo crente e a uma casta de ministros do divino.

É a reedição da estratégia antiga de autorrepresentação da Igreja como cidadela rodeada de inimigos, contra a essência do movimento cristão: um povo a caminho, irmanado na construção de um reino de fraternidade radical. Por isso, nesta Páscoa da Igreja em Portugal, a ressurreição passará pelos gestos concretos de reparação das vítimas e de transformação da cultura de violência estrutural inerente ao que Francisco tem corajosamente designado por pecado do clericalismo.

 

Ex-deputado do BE, professor universitário e católico progressista