O triunfo da gritaria


A gritaria existe porque houve omissão onde devia ter havido ação e houve ação onde deveriam ter existido ética, valores e sentido do serviço público.


Bem sei que o tempo é de ligeireza, de volatilidade e de inconsistência da palavra ditas e das ações, mas o triunfo da gritaria, muito além dos exercícios cívicos e das liberdades de expressão ditos normais, só existe porque a normalidade, o funcionamento das instituições e os mandatados não cumprem as suas funções básicas.

O problema não se supera por apelos ao foco e ao virar de página de quem está formatado numa vivência política e partidária que promove o tipo de acontecimentos dos últimos meses. Como se costuma dizer, “não é defeito, é feitio” e não há nenhum ridículo formulário de escrutínio de candidatos a governantes que supere o funcionamento sistémico da prática política de anos. Para formulário, bastava qualificar as escolhas, não deixar a gangrena de casos com fundamentos e distorções dos valores da República, da Democracia e do Partido Socialista, ter o partido a funcionar ao ponto de manter uma exigência nas estruturas que assegurasse a triagem do bom senso ou realizar uma simples pesquisa digital, mas não.

Ainda há pouco, se elogiou o sentido estratégico e comercial das manchetes (e do jornalismo) do Correio da Manhã, para agradar na entrevista política ao dito e agora o bumerangue de notícias de casos e de alegadas situações prossegue sem virar de página.

Aliás, não deixa de ser enternecedor as demarcações de viva-voz e em surdina de quem sempre foi complacente com o sistema, os seus equilíbrios sustentados e o protagonista maior, chegando-se ao ponto dos arautos da solução questionarem o papel da comunicação social na divulgação dos casos como acontece com Pacheco Pereira, numa espécie de reedição da deriva da liderança parlamentar do PSD quando quis proibir os jornalistas de circularem nos corredores do Parlamento.

A gritaria existe porque houve omissão onde devia ter havido ação e houve ação onde deveriam ter existido ética, valores e sentido do serviço público.

A gritaria persiste porque a justiça é incapaz de desempenhar o seu papel em tempo útil, sem que a presunção de inocência e a triagem seja realizada antes da condenação na praça pública por suspeitas com níveis diferentes de solidez, por vezes, também ao saber de interesses particulares bem afastados do imperativo de apuramento da verdade.

A gritaria surge como o caminho possível porque não há espaços de acolhimento e processamento dos sentimentos populares, dos estados de alma e das vivências, não há quem esteja atento, quem oiça e quem proponha soluções para muitos dos cidadãos comuns, das empresas comuns ou dos territórios longínquos dos espaços urbanos do poder.

A gritaria existe porque o exercício político na ética, nos valores e na coerência é frágil, deixou-se aprisionar por uma solução de governo que respondeu com o caminho mais óbvio, gerando enormes expectativas de generalização e deixando de lado e debaixo do tapete um amplo conjunto de problemas em que a perceção popular considerava só poderem ser resolvidos com uma maioria absoluta. Conquistado o mandato para fazer, sem desculpas ou grilhetas na configuração do acesso ao poder, não se soube formar um governo com músculo para a concretização, configurado para o tempo atual de escrutínio e focado no que importa: as pessoas, o território e a resiliência do país face aos constrangimentos estruturais e da conjuntura. A maioria absoluta bloqueou o exercício político habilidoso. O exercício político enleou-se nas suas fragilidades, gerando espaço de sobra para os radicalismos, os populismos e a rua, palco de saturações acumuladas. 

Uma maioria absoluta, com recursos financeiros, tinha tudo para o compromisso, dada a estabilidade política de uma legislatura, mas, por opção ou por inabilidade, preferiu-se dar espaço à gritaria, à reivindicação e a expressões de contestação, em que apenas têm voz os mais organizados, melhor posicionados junto dos media e com recursos para a mobilização. Além desses, no acesso à gritaria, muitos ficarão de fora, sem existência pública e mediática, sem se posicionarem para ter na distribuição do bodo que alimenta o sistema ou que repõe equilíbrios algumas compensações.

O problema da gritaria é que promovendo a retribuição para quem se mexe, pode afagar alguns justos descontentamentos com os passivos de inação acumulados, mas não permite a estruturação de respostas que tenham em conta uma visão integrada da sociedade e do país, além das existências mediáticas.

Num país adulto de quase 50 anos de Democracia, a simples proximidade às realidades, a todas as realidades, teria permitido a audição, a mobilização equitativa de recursos e o compromisso, mas, perante a incapacidade de ouvir e de agir com critérios compreensíveis, justos e sustentáveis, o que temos é gritaria, de se inclui o ambiente das redes sociais, sob a égide da ligeireza. Uns ficarão de fora, por falta de voz, outros conseguirão melhorias, o país sabe-se lá como fica quando se tinha tudo para fazer diferente, melhor e com sentido de futuro, além das narrativas sem nexo com as realidades.

Num quadro em que a governação está enleada nos seus pressupostos de fragilização, a oposição é inconsistente na alternativa apresentada e a Presidência da República só está preocupada com a imagem de saída no final do mandato, a gritaria tem tudo para vingar, para ser recompensada e para ser o caminho, cada vez com maior intolerância popular face aos desmandos, desgaste democrático e deslaço social.

Não havia necessidade, mas, como se diz no Alentejo, “quem os espalhou que os ajunte”.

NOTAS FINAIS
O SUFOCO BUROCRÁTICO. A notícia do JN de que o Tribunal de Contas fez 74% das suas compras por ajuste direto é bem reveladora de que a teia burocrática instalada é incapaz de assegurar a ética, as respostas para o funcionamento das instituições e a eficácia das opções. O tempo da decisão das opções não pode estar tão desfasado do tempo da concretização, sob pena de gerar ineficiências e perceções populares de disfunção das instituições democráticas.

A FUTEBOLIZAÇÃO DO JORNALISMO. A conjugação da degradação do exercício jornalístico, também pelas condições de trabalho dos profissionais, com a necessidade de alimentar a antena com conteúdos é geradora de um “encher chouriços” que dá tempo à desinformação. Foi o caso do alegado bloqueio de forças de segurança a autocarros de professores protagonizado por especialistas na desinformação. Quem anda à chuva molha-se. É informar com cautelas e rigor.

GRITARIA DESPORTIVA. A gritaria das queixas com a arbitragem tem sempre a capacidade de gerar um Artur Soares Dias para jogos cruciais em que os pressupostos são sempre concretizados pela sua ação empastelada e pelas insuficiências onde elas não deviam de existir. Com ou sem gritaria, é o Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol que temos. É berrar para ganhar.
Escreve à quarta-feira

O triunfo da gritaria


A gritaria existe porque houve omissão onde devia ter havido ação e houve ação onde deveriam ter existido ética, valores e sentido do serviço público.


Bem sei que o tempo é de ligeireza, de volatilidade e de inconsistência da palavra ditas e das ações, mas o triunfo da gritaria, muito além dos exercícios cívicos e das liberdades de expressão ditos normais, só existe porque a normalidade, o funcionamento das instituições e os mandatados não cumprem as suas funções básicas.

O problema não se supera por apelos ao foco e ao virar de página de quem está formatado numa vivência política e partidária que promove o tipo de acontecimentos dos últimos meses. Como se costuma dizer, “não é defeito, é feitio” e não há nenhum ridículo formulário de escrutínio de candidatos a governantes que supere o funcionamento sistémico da prática política de anos. Para formulário, bastava qualificar as escolhas, não deixar a gangrena de casos com fundamentos e distorções dos valores da República, da Democracia e do Partido Socialista, ter o partido a funcionar ao ponto de manter uma exigência nas estruturas que assegurasse a triagem do bom senso ou realizar uma simples pesquisa digital, mas não.

Ainda há pouco, se elogiou o sentido estratégico e comercial das manchetes (e do jornalismo) do Correio da Manhã, para agradar na entrevista política ao dito e agora o bumerangue de notícias de casos e de alegadas situações prossegue sem virar de página.

Aliás, não deixa de ser enternecedor as demarcações de viva-voz e em surdina de quem sempre foi complacente com o sistema, os seus equilíbrios sustentados e o protagonista maior, chegando-se ao ponto dos arautos da solução questionarem o papel da comunicação social na divulgação dos casos como acontece com Pacheco Pereira, numa espécie de reedição da deriva da liderança parlamentar do PSD quando quis proibir os jornalistas de circularem nos corredores do Parlamento.

A gritaria existe porque houve omissão onde devia ter havido ação e houve ação onde deveriam ter existido ética, valores e sentido do serviço público.

A gritaria persiste porque a justiça é incapaz de desempenhar o seu papel em tempo útil, sem que a presunção de inocência e a triagem seja realizada antes da condenação na praça pública por suspeitas com níveis diferentes de solidez, por vezes, também ao saber de interesses particulares bem afastados do imperativo de apuramento da verdade.

A gritaria surge como o caminho possível porque não há espaços de acolhimento e processamento dos sentimentos populares, dos estados de alma e das vivências, não há quem esteja atento, quem oiça e quem proponha soluções para muitos dos cidadãos comuns, das empresas comuns ou dos territórios longínquos dos espaços urbanos do poder.

A gritaria existe porque o exercício político na ética, nos valores e na coerência é frágil, deixou-se aprisionar por uma solução de governo que respondeu com o caminho mais óbvio, gerando enormes expectativas de generalização e deixando de lado e debaixo do tapete um amplo conjunto de problemas em que a perceção popular considerava só poderem ser resolvidos com uma maioria absoluta. Conquistado o mandato para fazer, sem desculpas ou grilhetas na configuração do acesso ao poder, não se soube formar um governo com músculo para a concretização, configurado para o tempo atual de escrutínio e focado no que importa: as pessoas, o território e a resiliência do país face aos constrangimentos estruturais e da conjuntura. A maioria absoluta bloqueou o exercício político habilidoso. O exercício político enleou-se nas suas fragilidades, gerando espaço de sobra para os radicalismos, os populismos e a rua, palco de saturações acumuladas. 

Uma maioria absoluta, com recursos financeiros, tinha tudo para o compromisso, dada a estabilidade política de uma legislatura, mas, por opção ou por inabilidade, preferiu-se dar espaço à gritaria, à reivindicação e a expressões de contestação, em que apenas têm voz os mais organizados, melhor posicionados junto dos media e com recursos para a mobilização. Além desses, no acesso à gritaria, muitos ficarão de fora, sem existência pública e mediática, sem se posicionarem para ter na distribuição do bodo que alimenta o sistema ou que repõe equilíbrios algumas compensações.

O problema da gritaria é que promovendo a retribuição para quem se mexe, pode afagar alguns justos descontentamentos com os passivos de inação acumulados, mas não permite a estruturação de respostas que tenham em conta uma visão integrada da sociedade e do país, além das existências mediáticas.

Num país adulto de quase 50 anos de Democracia, a simples proximidade às realidades, a todas as realidades, teria permitido a audição, a mobilização equitativa de recursos e o compromisso, mas, perante a incapacidade de ouvir e de agir com critérios compreensíveis, justos e sustentáveis, o que temos é gritaria, de se inclui o ambiente das redes sociais, sob a égide da ligeireza. Uns ficarão de fora, por falta de voz, outros conseguirão melhorias, o país sabe-se lá como fica quando se tinha tudo para fazer diferente, melhor e com sentido de futuro, além das narrativas sem nexo com as realidades.

Num quadro em que a governação está enleada nos seus pressupostos de fragilização, a oposição é inconsistente na alternativa apresentada e a Presidência da República só está preocupada com a imagem de saída no final do mandato, a gritaria tem tudo para vingar, para ser recompensada e para ser o caminho, cada vez com maior intolerância popular face aos desmandos, desgaste democrático e deslaço social.

Não havia necessidade, mas, como se diz no Alentejo, “quem os espalhou que os ajunte”.

NOTAS FINAIS
O SUFOCO BUROCRÁTICO. A notícia do JN de que o Tribunal de Contas fez 74% das suas compras por ajuste direto é bem reveladora de que a teia burocrática instalada é incapaz de assegurar a ética, as respostas para o funcionamento das instituições e a eficácia das opções. O tempo da decisão das opções não pode estar tão desfasado do tempo da concretização, sob pena de gerar ineficiências e perceções populares de disfunção das instituições democráticas.

A FUTEBOLIZAÇÃO DO JORNALISMO. A conjugação da degradação do exercício jornalístico, também pelas condições de trabalho dos profissionais, com a necessidade de alimentar a antena com conteúdos é geradora de um “encher chouriços” que dá tempo à desinformação. Foi o caso do alegado bloqueio de forças de segurança a autocarros de professores protagonizado por especialistas na desinformação. Quem anda à chuva molha-se. É informar com cautelas e rigor.

GRITARIA DESPORTIVA. A gritaria das queixas com a arbitragem tem sempre a capacidade de gerar um Artur Soares Dias para jogos cruciais em que os pressupostos são sempre concretizados pela sua ação empastelada e pelas insuficiências onde elas não deviam de existir. Com ou sem gritaria, é o Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol que temos. É berrar para ganhar.
Escreve à quarta-feira