Angelo Badalamenti. O homem que musicou os mais loucos sonhos de David Lynch

Angelo Badalamenti. O homem que musicou os mais loucos sonhos de David Lynch


O homem responsável pelas etéreas melodias da série Twin Peaks, Angelo Badalamenti, morreu esta segunda-feira, aos 85 anos de causas naturais.


 compositor responsável pelas bandas sonoras de alguns dos mais importantes trabalhos do realizador David Lynch, entre os quais Twin Peaks, Um Coração Selvagem, Lost Highway: Estrada Perdida, Uma História Simples, Mulholland Drive, e que inspirou uma geração de músicos com a sua música etérea e sonhadora, Angelo Badalamenti, morreu, esta segunda-feira, aos 85 anos, de causas naturais, rodeado pela sua família.

A notícia da morte de Badalamenti foi avançada pelo sobrinho-neto do compositor. “O meu tio-avô Angelo Badalamenti cruzou a barreira para outro plano de existência”, escreveu o familiar, elogiando as suas colaborações com os mais variados artistas, de músicos a cineastas, como David Bowie, Michael Jackson, Paul McCartney, Nina Simone, Julee Cruise, Isabella Rosselini, Dolores O’Riordan, Anthrax, Dokken, Eli Roth e, “especialmente”, David Lynch.

“Ele sempre foi o homem mais interessante do mundo. Uma verdadeira inspiração musical e artística para mim e para inúmeros outros. Permaneceu fiel às suas raízes e família, nunca abandonou North Jersey para se mudar para Los Angeles. Sem mencionar as casuais, mas alucinantes, histórias da sua vida, da qual ele nunca se cansou. Ele realmente fará falta a muitas pessoas”, lamentou.

Badalamenti nasceu em Brooklyn, em Nova Iorque, em março de 1937, e desde uma tenra idade desenvolveu uma forte ligação emocional com a música, tendo começado a aprender a tocar piano aos oito anos, e trompa, pela qual acabaria por optar ao longo da sua formação, que culminou num mestrado na Escola de Música de Manhattan.

Contudo, apesar do seu talento, a entrada no mundo da música não foi fácil. Devido a dificuldades financeiras, chegou a considerar outras opções profissionais, estando muito perto de se tornar taxista.

Mas acabaria por conseguir um emprego como professor, aos 22 anos, e, quando foi desafiado a organizar um musical com os alunos, decidiu criar as suas próprias composições, o que acabou por ser um grande sucesso, recebendo inclusive um convite da PBS para gravar as músicas nos seus estúdios.

O convite abriu as portas a Badalamenti para um dos seus primeiros empregos na área da música, como editor musical. Durante a década de 1960, sob o pseudónimo Andy Badale, escreveu músicas para artistas como Nina Simone (I Hold No Grudge, 1967) e membros dos Beatles, numa música de Paul McCartney que nunca chegou a ser publicada, Is It Raining in London, e na canção Santa Bring Me Ringo, cantada por Christine Hunter.

Os seus primeiros trabalhos no mundo do cinema foram em O Comando Anti-Droga (1973), um filme de ação realizado por Ossie Davis, e Patrulha Auxiliar (1974), uma comédia sobre o crime na cidade de Nova Iorque de Ivan Passer.

Seria anos mais tarde, em 1986, quando começou a colaborar com David Lynch, que o seu trabalho viria a atrair a atenção de uma maior audiência.

Apesar de, inicialmente, ter sido contratado para Veludo Azul na função de treinador de voz de Isabella Rossellini, o compositor foi convidado a escrever uma música para a banda sonora, com o realizador a pedir-lhe uma música que “flutuasse como as marés do oceano” e que fosse capaz de “acumular o espaço e o tempo, intemporal e infinito”.

Assim nasceria Mysteries Of Love, interpretada por Julee Cruise, que morreu em junho deste presente ano. 

Badalamenti acabaria por assumir o papel de supervisor musical, produzir a banda sonora – e ainda surge no filme como pianista no bar de jazz.

O compositor gozou de uma das mais celebradas parcerias criativas de sempre com Lynch, mas foi em Twin Peaks, trabalho pelo qual Badalamenti conquistaria um Grammy de Melhor Performance Pop Instrumental, que criaria o seu trabalho mais memorável, apesar de nunca ter voltado a ver a série.

“David veio ao meu pequeno escritório, em frente ao Carnegie Hall e disse: ‘Tenho uma ideia para um show, ‘Northwest Passage’… sentou-se ao meu lado no teclado e disse, ‘Ainda não gravei nada, mas é como se estivéssemos numa floresta escura, com uma coruja ao fundo e uma nuvem sobre a lua e plátanos, a soprar muito suavemente’ …”, recordou num vídeo viral de YouTube, que foi partilhado em massa pelos fãs do compositor, onde Badalamenti explica, de uma forma muito emotiva, a criação do tema da icónica personagem Laura Palmer.

“Uma rapariga linda, mas problemática está a sair da floresta e caminha em direção à câmara…’ Toquei os sons inspirado nas suas descrições”, dizia enquanto premia as teclas do seu piano. “As notas acabaram por sair. David ficou atordoado, assim como eu. Os cabelos dos seus braços estavam arrepiados e ele tinha lágrimas nos olhos: ‘Eu consigo ver Twin Peaks. Eu disse: ‘Vou para casa trabalhar nisso.’ ‘Trabalhar nisso?! Não mudes nem uma nota’. E é claro que nunca mudei”. 

A misteriosa, sinistra, mas sonhadora música criada por Badalamenti influenciou toda uma geração de artistas, inspirados pela ambiguidade e capacidade narrativa que a sua música conseguia transmitir.

“Não há outra música de um filme ou de uma série de televisão que consiga transmitir tantas coisas, mas que também seja tão focada”, disse Jamie Stewart, fundador da banda experimental norte-americana Xiu Xiu, que, em 2016, criou um álbum de tributo à série, Xiu Xiu Plays the Music of Twin Peaks. “A sua música é romântica, engraçada, inocente, assustadora, estranha, sombria e sexual. Mas, ao mesmo tempo, tem a capacidade de indicar ao quem a está a ouvir para onde foi transportada. Apenas uma obra-prima pode ser tão ampla e instantaneamente evocativa. A série alcança a mesma capacidade. Juntas são divinais”, louvou.

Além das suas colaborações com Lynch, Badalamenti trabalhou em filmes como Pesadelo em Elm Street 3 (1987), A Cidade das Crianças Perdidas (1995), A Praia (2000) e A Secretária (2002).