Os cidadãos e o país passaram, ao longo dos últimos anos, as passas do Algarve devido à atribuição desabrida de crédito a torto e a direito para alguns pelas instituições bancárias. Olha-se ao redor e parece que ninguém aprendeu nada com o passado pela espiral de promoção de crédito que prossegue há meses. Não há semana em que não caia no email um apelo ao crédito para o consumo, ora para as férias, ora para os presentes de Natal ou porque sim. É como se a literacia financeira dos cidadãos em Portugal fosse uma realidade consolidada e não estivéssemos ainda a suportar desmandos dos bancos, enquanto aumentam as comissões e reduzem os balcões de proximidade, numa deriva de afastamento das vivências reais que pretende colocar tudo no plano digital, com os clientes a fazerem de empregados. Esta é outra tendência dos nossos tempos, os clientes pagam bens e serviços, mas são tratados como empregados. É assim nas estações de serviço de abastecimento de combustíveis, nas operadoras de telecomunicações e nos bancos. O cliente é que faz as operações que outrora eram realizadas por profissionais das empresas prestadoras de serviços. Mas, voltemos ao consumo e à loucura que se instalou com o Black Friday, a par de outras importações destinadas a desvirtuar tradições com pés e cabeça trocando-as por expressões de apelo ao consumo para o pagode.
Num tempo de incertezas, de dificuldades e de aumento do custo de vida, da produção de bens ao consumo final, o ar comercial é quase irrespirável com a conjugação da histeria da Black Friday com a aproximação ao Natal. Quem chegue de fora e olhe para o patamar de evolução civilizacional da publicidade comercial em Portugal julga-se num país com petróleo, gás natural, diamantes ou outra fonte de enriquecimento fácil que assegura a linguagem vigente, o incentivo ao gasto e a miríade de ofertas alegadamente vantajosas. O ar é irrespirável e a caixa de email consegue ter mais tráfego do que o IC19 ou A2 em hora de ponta, obrigando o proprietário a uma purga de autorizações de comunicação e uma erradicação de novas tentativas provindas provavelmente de gritantes violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados, numa terra em que a modernidade não foi acompanhada pelo rigor, segurança e fiscalização dos riscos do digital, como o comprova a onda de ciberataques dos últimos meses. Acaba por ser normal, num país em que o sistema judicial quis promover o cibercriminoso Rui Pinto a herói em vez de dotar quem de direito com as ferramentas para atuar no quadro de um Estado de Direito Democrático.
O bombardeamento de Black Friday é diário, quase de hora a hora, no email, na televisão, na rádio ou nos jornais, sem dó nem piedade, acompanhado de complementos publicitários da banca para o crédito ao consumo, apesar da proximidade do pagamento do subsídio de Natal, que serve para reequilibrar os quadros familiares de muitos.
O consumo alimentou muitas vezes o crescimento económico e os resultados que os políticos gostam de apresentar como virtuosismo das opções tomadas. O consumo e desmandos de oferecer mais do que se dispunha já nos levou a termos de suportar muitas instituições como contribuintes, com uma enorme carga fiscal, com retornos fragilizados dos serviços do Estado na saúde, na educação e noutras funções essenciais.
Assiste-se a uma espécie de pandemia do engodo consumista para um público fragilizado pelos rendimentos e pelas circunstâncias do aumento do custo de vida, sem que quase ninguém faça um trabalho pedagógico de alerta para os riscos do endividamento, num tempo em que, pelo aumento das taxas de juro da habitação, alguns serão forçados a entregar casas ao banco.
E neste contexto de evidente fragilidade estrutural e circunstancial, até o Presidente da República desvaloriza os direitos humanos face à prevalência do consumo futebolista, num Mundial que nunca deveria ter existido, atirando-se a mais uma viagem ao estrangeiro, sem senso e sem qualquer utilidade para o país ou para a prestação da seleção nacional de futebol. Com dificuldade no pão, continuamos agarrados ao circo. Já vem dos tempos de Roma, em que nem nos governávamos nem nos deixávamos governar. O problema é que no final, alguém é destruído ou paga os desmandos.
NOTAS FINAIS
A DERIVA DA DESTRUIÇÃO DA PROXIMIDADE. Mete dó ir ao Interior e constatar que esquerda e direita não conseguem inverter a realidade das frases que se viam em prédios abandonados nas cidades. Tanta gente sem casa e tanta casa sem gente. E a destruição de mínimos de proximidades de serviços fundamentais, substituídos por novas centralizações regionais ou respostas digitais não têm em conta a realidade e o perfil das pessoas. Não respondem aos que lá estão e não geram atratividade para ninguém. São miseráveis, do ponto vista humano e da coesão territorial. Agora, são as Direções Regionais da Agricultura que se integram nas CCDR, mais afastadas das pessoas e dos territórios das freguesias, dos concelhos e dos distritos.
QUAL É O CRITÉRIO. Em condições normais, o critério é a lei, apesar da geometria variável permitida pelas interpretações jurídicas. Uma das maiores inquietações de um cidadão num Estado de Direito Democrático é ter a perceção de que o critério é de geometria variável. Depende do protagonista da ação, das circunstâncias ou dos interesses. Não é critério, é arbítrio. Em muitas realidades dos nossos quotidianos somos confrontados com estas realidades pelas investigações jornalísticas e judiciais. Afinal qual é o critério para fustigar, por exemplo, uma autarquia e deixar de fora outra que fez contratos de milhares de euros com um órgão de comunicação social para um alegado evento singular de promoção de oferta de veraneio. Estão a brincar com o Estado de Direito, sendo que os agentes da justiça são promotores dessa brincadeira arbitrária. Mas, o povo gosta do circo, enquanto não lhe toca.
A REVISÃO CONSTITUCIONAL E OS GOVERNOS CIVIS. O populismo inconsequente de alguns é confrangedor. O governo da direita, na sua última existência, desmembrou uma instituição de proximidade do Estado aos cidadãos e aos territórios. Os Governos Civis vão-se manter na Constituição, a par dos distritos, enquanto não avança para as regiões e se afirmam novas unidades de organização territorial. Não se governa, nem se deixa governar.
AINDA AS POLÍCIAS. A fragilização das forças de segurança e a diabolização dos agentes e militares não serve ninguém. A realidade não é nova e verdadeiramente nunca houve condições para a atacar de forma estruturada o problema e as suas causas. Nunca valorizamos os aspetos positivos da ação, mas sublinhamos sempre os negativos, sabendo que a praça pública faz julgamentos sumários e age em conformidade. Como temos dito, com maioria absoluta e recursos, espera-se que o MAI tenha condições para combater estes desvios nas forças de segurança e nos bombeiros e que a Defesa o possa fazer nos ramos militares. E já agora, que se possa fazer também nos media, onde existem expressões similares, que não são objeto de reportagens justiceiras ou de consórcios de investigação.
Escreve à quarta-feira