Revisão constitucional inconstitucional?


A Constituição não é uma folha de papel em branco onde dois terços dos Deputados à Assembleia da República possam escrever ad libitum.


As normas constitucionais inconstitucionais (mesmo que em modo de possibilidade, à la Bachof) são uma consequência necessária do conceito de constituição material. A aporia coloca-se de forma evidente no texto originário nos casos em que a constituição recorre a fórmulas de hetero-referenciação. No caso da Constituição da República Portuguesa o locus classicus encontra-se no nº 2 do artigo 16º: “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.” O apelo à DUDH serviu de base legitimadora a um novo direito constitucional que, não se bastando com a negação da ordem jurídica do Estado Novo, procurava concretizar a ideia de Direito saída da revolução do 25 de Abril olhando para a ordem jurídica internacional. Gomes Canotilho, certeiramente, descreve a CRP, à semelhança da Lei Fundamental de Bona, como possuída por uma amizade pelo Direito Internacional Público (Völkerrechtfreundlichkeit).

Já os limites ao poder de revisão constitucional resultam da existência de um poder constituinte previamente exercido. Estes limites são ostensivos naquelas constituições que, como a CRP, são dotadas de rigidez quanto às possibilidades e modalidades de revisão: o tempo, a forma, as maiorias e também as matérias que podem ser objecto de revisão constitucional. 

Do catálogo de limites materiais explícitos ao poder de revisão constitucional constam os direitos liberdades e garantias dos cidadãos. Este limite deve ser lido como inviabilizando novas restrições permanentes de direitos que, de forma desproporcional, desnecessária e não fundamentada, atentem contra direitos fundamentais previstos simultaneamente no texto constitucional e na DUDH. A não ser assim toda e qualquer restrição ou até mesmo supressão de direitos seria admissível pela via na consagração no texto formal da CRP.

O processo de revisão constitucional em curso, nutrido por 8 projectos, oferece bons exemplos de tentativa de contrabando de normas cujo principal propósito é, à margem do telos constitucional, restringir direitos fundamentais.
O Chega propõe um novo nº 3 no artigo  25º (integridade pessoal): “Para efeitos do disposto no número que antecede, estão fora do seu âmbito de aplicação penas que digam respeito a tratamentos químicos que se considerem necessários para a prevenção de crimes de natureza sexual, cujo objectivo seja a redução ou inibição de libido.”

Já o PS acrescenta uma nova alínea i) ao nº 3 do artigo 27º (excepções à proibição de privação de liberdade): “Separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial.”

Por sua vez o PSD propõe um novo nº 5 para o artigo 34º (inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações): “A lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais.”

A projectada revisão constitucional de 2022 tem uma identidade clara: restrição de direitos, liberdades e garantias. A VIII revisão é, por desgraça, tristemente original.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Revisão constitucional inconstitucional?


A Constituição não é uma folha de papel em branco onde dois terços dos Deputados à Assembleia da República possam escrever ad libitum.


As normas constitucionais inconstitucionais (mesmo que em modo de possibilidade, à la Bachof) são uma consequência necessária do conceito de constituição material. A aporia coloca-se de forma evidente no texto originário nos casos em que a constituição recorre a fórmulas de hetero-referenciação. No caso da Constituição da República Portuguesa o locus classicus encontra-se no nº 2 do artigo 16º: “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.” O apelo à DUDH serviu de base legitimadora a um novo direito constitucional que, não se bastando com a negação da ordem jurídica do Estado Novo, procurava concretizar a ideia de Direito saída da revolução do 25 de Abril olhando para a ordem jurídica internacional. Gomes Canotilho, certeiramente, descreve a CRP, à semelhança da Lei Fundamental de Bona, como possuída por uma amizade pelo Direito Internacional Público (Völkerrechtfreundlichkeit).

Já os limites ao poder de revisão constitucional resultam da existência de um poder constituinte previamente exercido. Estes limites são ostensivos naquelas constituições que, como a CRP, são dotadas de rigidez quanto às possibilidades e modalidades de revisão: o tempo, a forma, as maiorias e também as matérias que podem ser objecto de revisão constitucional. 

Do catálogo de limites materiais explícitos ao poder de revisão constitucional constam os direitos liberdades e garantias dos cidadãos. Este limite deve ser lido como inviabilizando novas restrições permanentes de direitos que, de forma desproporcional, desnecessária e não fundamentada, atentem contra direitos fundamentais previstos simultaneamente no texto constitucional e na DUDH. A não ser assim toda e qualquer restrição ou até mesmo supressão de direitos seria admissível pela via na consagração no texto formal da CRP.

O processo de revisão constitucional em curso, nutrido por 8 projectos, oferece bons exemplos de tentativa de contrabando de normas cujo principal propósito é, à margem do telos constitucional, restringir direitos fundamentais.
O Chega propõe um novo nº 3 no artigo  25º (integridade pessoal): “Para efeitos do disposto no número que antecede, estão fora do seu âmbito de aplicação penas que digam respeito a tratamentos químicos que se considerem necessários para a prevenção de crimes de natureza sexual, cujo objectivo seja a redução ou inibição de libido.”

Já o PS acrescenta uma nova alínea i) ao nº 3 do artigo 27º (excepções à proibição de privação de liberdade): “Separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial.”

Por sua vez o PSD propõe um novo nº 5 para o artigo 34º (inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações): “A lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais.”

A projectada revisão constitucional de 2022 tem uma identidade clara: restrição de direitos, liberdades e garantias. A VIII revisão é, por desgraça, tristemente original.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990