Assexualidade.”Quem não o é, não sabe como nos sentimos”

Assexualidade.”Quem não o é, não sabe como nos sentimos”


Invisibilidade, incompreensão e preconceito. Estas são três das palavras que explicam aquilo que as pessoas assexuais sentem no dia-a-dia. Numa sociedade onde o sexo está por toda a parte, existem aqueles para os quais este nada significa. Afinal o que é ser assexual? E demissexual? Será que o sexo é realmente essencial? Alice, Alexandre e…


Se há uma coisa irrefutável é que vivemos num mundo sexualizado. Em pequenos, ensinam-nos que os bebés chegam através da cegonha ou surgem de uma pequena semente. Depois, descobrimos a verdade e, com o passar do tempo, através da televisão, dos filmes, séries, conversas de café, ou mesmo na escola, começamos a “ter contacto” com o tema: sexo. Porém, a ideia preconcebida de que este suscita curiosidade a toda a gente, é falaciosa. Tal como a ideia de que toda a gente gosta e pratica; ou de que quem não o faz, não é feliz. Assim, acabamos por perpetuar a sexualização da sociedade, coisa que sustenta a invisibilidade de muitas pessoas que, ao contrário da maioria, não sentem qualquer atração sexual, ou, para senti-la é necessário uma conexão muito forte.

“Existe uma presença muito forte de imagens, palavras e comportamentos que são considerados sexuais ao nosso redor: da publicidade à música e ao cinema, no discurso da saúde e do bem-estar, no discurso jurídico, etc. Há uma tentativa de forjar uma relação inseparável entre a prática sexual constante e o que significa ser humano saudável e bem-sucedido. Há um reforço intenso no discurso do prazer e do bem-estar (emocional, físico, psicológico) e tudo o que cai fora desse guião é considerado errado, doente ou um falhanço”, explica ao i Rita Alcaire, antropóloga, investigadora em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra com foco no estudo do género e sexualidades e autora de A Revolução Sexual: discutindo direitos humanos pela lente da assexualidade em Portugal.

A verdade é que “Assexual” é uma designação que diz respeito a uma realidade ampla e complexa. Segundo a investigadora, uma pessoa assexual não sente atracão sexual por outras, independentemente do seu sexo ou género: “As pessoas assexuais podem sentir atração romântica, estética, intelectual, social, emocional por outras, sem que necessariamente sintam atração sexual. Isto não invalida que possam construir laços profundos e relações fortes de amor, intimidade e cumplicidade. Não impede também que tenham contactos românticos ou sexuais. Depende da forma como cada pessoa sente que é melhor para si no âmbito das relações que estabelece”, continuou.

Rita Alcaire acredita que aquilo que nos ensinam a pensar desde cedo é que estes diferentes tipos de atração vêm sempre em conjunto, ou mais ainda, “são uma e a mesma coisa, um todo”. Contudo, o que a assexualidade nos vem mostrar é que não é necessariamente assim. “As identidades e experiências assexuais existem num espetro muito alargado. Há quem não sinta atração sexual ou romântica por outras; há quem sinta atração sexual aquando da formação de um vínculo com outra pessoa; há aquelas que incluem o sexo no seu reportório íntimo, há outras que não; há quem goste e deseje toque; há quem tenha desejos de parentalidade”, contou, acrescentando que “as pessoas que se identificam como assexuais vivem diferentes tipos de relações, muitas delas que tendem a ser desvalorizadas pela sociedade, por não seguirem normas convencionais”.

 

A história de Alice

Na adolescência, Alice (nome fictício), atualmente com 28 anos, sentia-se diferente dos outros. Embora quisesse ter contacto físico e vínculos românticos (mas não necessariamente os dois simultaneamente), a atriz não queria propriamente ter contacto sexual. “Isso causou-me uma confusão imensa porque ainda não sabia das diferentes atrações: romântica, estética, sexual, sensual, platónica, intelectual podiam ser vividas através de diferentes pessoas e de forma separada. Por isso sentia que me faltava alguma coisa, mas vivia isso silenciosamente”, revela ao i. A dada altura, a jovem chegou mesmo a pensar que o problema pudesse ser seu e, sobretudo, psicológico, “porque até sentia medo”. Esta confusão misturada com o facto de “ser lida socialmente como mulher e a repressão sexual daí decorrente”, levaram a que explorasse muito pouco qualquer uma dessas atrações, evitando formar vínculos ou tendo mesmo permanecido em vínculos duradouros e monogâmicos, procurando internamente “corrigir-se”. “Só recentemente, já com outra informação, é que me tenho permitido perguntar-me como desejo viver as diferentes atrações que experiencio e a explorar esse desejo”, frisou.

A primeira vez que ouviu o termo “assexual” foi numa conversa íntima com um grupo de amigos com quem se sentiu segura de partilhar e descrever os seus sentimentos acerca de sexo. “O que tentava descrever (até em jeito de desabafo porque era uma coisa que me preocupava) era que não sentia interesse e sentia até repulsa. Tinha a ideia de que devia ser um problema e, nesta altura, já pensava que era um problema físico, ao contrário da adolescência, em que achava que podia ser um bloqueio psicológico”, lembrou Alice, lamentando que essa ideia lhe foi passada por uma ginecologista.

Felizmente, uma das suas amigas colocou a hipótese de esta ser assexual e sugeriu-lhe que procurasse mais informações na internet. “Foi depois de algumas leituras (sobretudo as que separam as diferentes atrações) que percebi que sim, que me fazia muito sentido!”, afirmou, admitindo que com o tempo começou-se a sentir cada vez mais confortável em descrever-se como assexual. Atualmente, identifica-se como assexual fluida, mais especificamente assexual pansexual romântica. “Isto significa que me sinto atraída romanticamente por todos os géneros e também sinto atração sensual”, esclareceu. Segundo a mesma, a atração sensual é diferente da sexual, porque envolve desejo de contacto físico, embora não sexual. “Sendo fluida, o meu desejo sexual não é nulo, embora aconteça pouco frequentemente, com pouca intensidade e em condições específicas”, sublinhou.

O que sente em relação ao sexo está sempre a mudar, embora varie dentro de um certo espetro: “A maior parte do tempo sinto-me sex repulsed, isto é, não me sinto confortável em falar ou ter contacto com atividades sexuais, seja na primeira pessoa, seja através de outras, em cenas de cinema ou televisão, por exemplo. Mas a minha assexualidade é fluida e há alturas em que me é mais indiferente ou chego a ter um interesse muito ligeiro”, explicou.

A jovem atriz não sente necessidade de clarificar a sua orientação sexual quando conhece alguém, geralmente isso acontece porque lhe perguntam. “Mas quando me perguntam é muito raro eu não ter que explicar o que é a assexualidade e é muito raro não fazerem perguntas desconfiadas, como se algo não estivesse a ser bem explicado ou tivesse ficado por explicar”, adiantou, acrescentando que, muitas vezes, as pessoas fazem perguntas sem se aperceber que podem ser violentas, quase sempre porque se veem confrontadas com algo que não pensavam que pudesse existir. “É surpreendente, mas a possibilidade de haver alguém saudável que experiencia pouco ou nenhum desejo sexual é uma novidade para muita gente. Acho que é porque há uma ideia muito forte que estrutura a conceção de animalidade, assente em ideias de naturalidade, que é a de que o desejo sexual é não só universal, como uma característica básica, primeira, que une todos os que partilham dessa animalidade”, lamentou, apontando ainda a “valorização do sexo enquanto possibilidade de emancipação e afirmação de um indivíduo”. “O sexo é encarado como possibilidade única de exploração da identidade e do prazer, tem uma intensidade difícil de reconhecer noutras atividades. E é difícil compreender que as pessoas possam fazer tudo isso – emancipar-se, afirmar-se, explorar a identidade e o prazer – dirigindo a sua energia vital para outras atividades e até experimentando os mesmo níveis de intensidade”, disse Alice.

 

A internet como espaço de encontro

Tal como ela, Alexandre Martins, de 22 anos, sentiu-se desconfortável durante alguns anos. “Sou transexual e grayssexual”, afirmou ao telefone com o i. Ou seja, “uma pessoa que sente atração sexual raramente, apenas em circunstâncias específicas e independentes de vínculo emocional”. “Também é um termo ‘guarda-chuva para orientações do espetro assexual (assexuais não-estritos). Termo em inglês: Gray-A”, explicou.

Na adolescência nunca foi de falar muito sobre esta questão. Era um tema que não tinha interesse para si: “A minha descoberta tem sido lenta e tem vindo a sofrer ‘alterações’. Desde achar que era bissexual, até chegar aos 18 anos e ter a certeza que era transgénero e assexual, mas com interesse romântico em mulheres”, contou.

Foi também através da internet que Alexandre percebeu que era efetivamente assexual e, apesar de no princípio ter ficado um pouco cabisbaixo, rapidamente passou a ser algo normal. “Sempre respeitei a minha forma de ser. Sinto que é mais complicado para quem se relaciona com alguém assexual”, acredita, revelando que quando começa a desenvolver sentimentos amorosos por alguém, sente logo necessidade de explicar. “Mas não é fácil. Quem não é, não sabe como nos sentimos”, lamentou o jovem.

De acordo com a antropóloga, a internet é, sem dúvida, uma das primeiras e principais formas de contacto com conhecimento sobre assexualidade e onde se encontram outras pessoas com experiências e sentimentos parecidos. “Ela representa um papel muito importante para a assexualidade. As redes sociais, os blogues e sites de microblogging aparecem nas entrevistas como fontes de informação ou espaço de socialização. Nunca esqueçamos que foi a internet que possibilitou a organização da própria comunidade e movimento assexual a nível internacional e onde o conceito foi cunhado e disseminado”, explicou.

Alice, por exemplo, pertence a vários grupos online e, tal como Rita Alcaire, acha que as redes sociais e a internet no geral são uma “ótima ferramenta para a comunidade assexual”. Para si, permitem a visibilidade, o encontro, a informação e a partilha de histórias, “dentro de uma comunidade que, por razões várias, pode não se sentir confortável em ter uma vida social mais física”. Mas há países em que a comunidade assexual é muito organizada e convive regularmente, começando a haver grupos grandes que caminham nas marchas durante o Pride, por exemplo. “Estive recentemente em Praga durante o Pride, e, entre outras atividades, as pessoas LGBTQIA+ reúnem-se num jardim, distribuindo-se em grupos, reconhecendo-se pelas bandeiras que são postas em diferentes árvores. Encontrei um grupo de assexuais a fazer um pic-nic e nunca tinha visto tantas pessoas assexuais juntas (só conheço diretamente duas pessoas assexuais, além de mim). Emocionou-me”.

 

A necessidade de uma bandeira

A bandeira correspondente à comunidade de assexuais possui a cor preta, cinzenta, seguida de branco e roxo. Segundo Rita Alcaire, havia por parte da comunidade assexual internacional o desejo de ter um símbolo que representasse todas as pessoas dentro do espetro, – incluindo as pessoas arromânticas – e que pudesse ser usado em eventos (as pessoas que são arromânticas não sentem atração romântica por outras pessoas).

Foram então apresentados inúmeros designs por parte de utilizadores de sites ligados à assexualidade, sob o olho atento e aglutinador da AVEN (The Asexuality Visibility and Education Network), a maior comunidade online de pessoas assexuais. De acordo com a especialista, essas diferentes propostas foram depois a votos. “A bandeira vencedora é a que se conhece hoje, com quatro riscas horizontais de cores diferentes: a preta, que representa a assexualidade; a cinzenta, que representa a grey-assexualidade (pessoas que se sentem atraídas sexualmente por outras em circunstâncias que não são muito definidas) e a demissexualidade (pessoas que só sentem atração sexual por outras quando constroem com elas vínculos emocionais fortes), a branca, para pessoas aliadas e parceiros; e a roxa, que representa a comunidade”, esclareceu.

Alexandre Martins acredita que as pessoas tendem a confundir esta orientação com o celibato, pois atualmente “fala-se tão abertamente sobre sexo que é um choque quem não gosta”: “Como se o sexo fosse o centro de tudo. Para mim é um complemento e não algo essencial ou obrigatório num casal”, frisou.

 

O que diz a sexologia?

Segundo a sexóloga Catarina Lucas, e tal como apontava Alice, a sexualidade “integra a pirâmide das necessidades de Maslow na sua componente mais básica”. Ou seja, na componente fisiológica, é a base da pirâmide. Por isso é globalmente importante e é importante em todas as espécies, “seja por uma questão biológica de reprodução e continuidade da espécie, seja pela gratificação física e sensações experienciadas ou pela gratificação emocional, ligação e intimidade entre as pessoas”. “Através do sexo é possível a expressão de desejos e vontades e é para alguns a partilha plena entre duas pessoas que se amam. Está ainda associada a crenças de virilidade, de autoestima e de valor próprio”, explicou ao i a especialista.

Interrogada sobre as razões para essa repulsa ou falta de interesse em sexo, a sexóloga revelou que as explicações podem ser várias e “devem ser alvo de avaliação e despiste antes de se assumir que a pessoa é assexual”. “As dificuldades ao nível da atração/desejo sexual são muitas e antigas, podendo dever-se a fatores emocionais, físicos ou até mesmo médicos”, afirmou.

E lá por não sentir atração sexual, quer dizer que não sinta prazer? De acordo com a mesma, embora a investigação nesta área seja ainda escassa, “é preciso entender também que a sociedade está em mudança, atualmente o prazer é obtido de diferentes formas e o estímulo é grande. Há quem prefira o prazer de jogar videojogos ou ver séries ao prazer sexual e isso é preciso ser também tido em conta”, alertou. Por isso, não sentir atração ou desejo não significa que não se sinta prazer. “Aliás, mesmo em pessoas que não se identificam como assexuais é comum períodos em que se dá a diminuição do desejo sexual, mas quando ocorre é gratificante e prazeroso”, explicou ainda, acrescentando que “a atração/desejo é o impulso que nos leva a querer envolver sexualmente e o prazer é o resultado disso”. “Uma vez que a masturbação não implica a atração por alguém, mas a vivência isolada da própria sexualidade, é possível não sentir atração por outra pessoa mas sentir prazer com a masturbação”, exclamou. De qualquer das formas, para si, “ainda é cedo para se falar de uma diminuição da importância da sexualidade para o ser humano”.

 

A demissexualidade Além dos assexuais, segundo Rita Alcaire, os demissexuais são pessoas dentro do espetro da assexualidade que só sentem atração sexual por alguém com quem já estabeleceram uma ligação emocional forte. Ambos os termos são discutidos enquanto uma forma de orientação sexual integrando o leque LGBTQIA+.

Rute J., de 46 anos, descobriu que era demissexual já depois dos 30, numa altura em que estava à procura de novas amizades em plataformas de amizade/dating e verificou que, até quem dizia estar só à procura de amizade, tinha, na realidade, por via de regra, a expectativa de iniciar “amizades coloridas”. “Então, comecei a pesquisar sobre essa minha ausência de interesse sexual prioritário nas relações, em geral, que foi sempre uma coisa mais ou menos inconsciente, e fui dar com a página da AVEN americana e com os conceitos de grayssexualidade e, em especial, de demissexualidade, com que me identifiquei logo”, contou o i. Foi como se todo o seu percurso de vida fizesse, de repente, sentido. “Foi muito libertador e empoderador. Se, numa sociedade qualquer, a maioria real não for propriamente alossexual (nome dados pela comunidade a pessoas que não são assexuais), mas permanecer em silêncio, não falando das suas vivências reais, permitindo que a única voz que ecoa junto das instituições representativas dos cidadãos, nas universidades, nos media, através de quem produz arte e cultura, na rua, no café da esquina ou em qualquer plataforma, seja a de uma minoria alossexual mais ‘barulhenta’, essa passa automaticamente a ser a ‘maioria’ oficial, que dita as regras do ‘jogo’ para toda a gente, por mais longe que estejam de ser universalmente válidas”, lamentou.

A sua exploração da sexualidade não começou na adolescência, mas sim antes do início da socialização escolar, quando começou a ter curiosidade e a descobrir o seu corpo. Sendo jurista por formação e polímata por paixão, foi percebendo tudo de modo intuitivo, sem sentir necessidade de fazer muitas perguntas.

Na adolescência, nunca se sentiu muito diferente do seu grupo mais restrito de amigos (entre três a seis ou sete pessoas), que era aquele que, para si, era o mais importante. “Tínhamos muitas afinidades, incluindo a forma como vivenciávamos a sexualidade, sobre a qual havia alguma curiosidade. Não era propriamente reprimida, mas também não era uma prioridade óbvia para qualquer de nós, rapazes, raparigas e pessoas que já, na altura, embora não tivéssemos ainda um nome para isso, não nos revíamos propriamente em qualquer género binário específico”, explicou. Nos namoros, a mesma coisa: por regra, relacionava-se com pessoas com quem sentia que podia ter mais semelhanças. “Pessoas muito sensuais ou que fosse óbvio que o seu principal interesse era sexo nunca me atraíram”, admitiu.

Para si, quando falamos de sexo, falamos de várias dimensões distintas ao mesmo tempo. De uma dimensão pessoal – que diz respeito ao modo como nos relacionamos connosco próprios e com outras pessoas através do corpo –, e de uma dimensão histórica, socioeconómica e política, diretamente ligada a outra, de natureza cultural”. A nível pessoal, nunca sentiu repulsa em relação ao corpo, que começou a descobrir cedo, através do toque, por iniciativa própria. “Com o tempo, fui percebendo, de modo mais ou menos inconsciente, que, apesar de agradável, o prazer que advinha da estimulação sexual, fosse qual fosse a sua forma, era muito limitado, esgotando-se no ato, e que precisava de um prazer de outro tipo, mais permanente, que me preenchesse mais do que qualquer prazer sensorial”, detalhou. Nas dimensões histórica, socioeconómica, política e cultural, contudo, já não tem propriamente uma visão “assim tão neutra do sexo”: “Tendo até para uma certa aversão ou repulsa pelo conceito, dado o desequilíbrio em que me parece ter caído a sua evolução, já que permite a invisibilidade e a discriminação infundada de uma fatia significativa da população global”.

Atualmente identifica-se como uma pessoa agénero (não-binária), demissexual/demirromântica, cada vez mais interessada em relacionamentos agâmicos (éticos para o maior número possível de pessoas). Na sua visão, a demissexualidade significa que, para a atração sexual por outra(s) pessoa(s) se manifestar e/ou se manter, é necessário a perceção da existência de um vínculo psicológico, emocional significativo com essa(s) pessoa(s). “Essa perceção pode ocorrer durante um encontro puramente casual, em determinado momento. Não tem a ver com a duração da relação”, frisou. No caso da demirromanticidade, acontece a mesma coisa, mas diz respeito à atração romântica, “que é perfeitamente separável e distinta da sexual”. Ou seja, Rute só acha alguém sexualmente e romanticamente desejável quando se apaixona por essa pessoa. Contudo, mesmo quando isso acontece o sexo e o romance não são o centro ou a prioridade da relação, o que quer dizer que, se a pessoa com quem estiver não puder, por qualquer motivo, ter relações sexuais ou participar em atividades conjuntas que os pares românticos costumam fazer, no que depender de si, a relação não irá terminar. “Nem sentirei necessidade de procurar sexo ou romance noutro lugar”, garantiu.

Enquanto demissexual, a jurista acredita que é, de algum modo, uma pessoa privilegiada em relação a pessoas assexuais estritas ou a pessoas que sentem repulsa por tudo o que diga respeito a sexo, no que toca a encontrar com mais facilidade gente cuja experiência de vida, apesar de não se identificar ou desconhecer completamente o conceito de assexualidade, acaba, de modo geral, por estar mais próxima da área cinza entre a assexualidade estrita e a alossexualidade.

 

Relações entre assexuais e sexuais

É possível uma pessoa assexual ou demissexual estar com uma pessoa alossexual? Como é que essa relação deve ser gerida? Segundo Alice, é possível, mas não há um modo melhor ou mais perfeito ou até único de fazer essa gestão. “Há tantos modos quantas relações entre pessoas sexuais e assexuais. Há casais que vivem de forma não monogâmica, há casais que mantêm a atividade sexual, há casais que têm outro tipo de intimidade. À partida, como em qualquer outra relação, acredito que o diálogo acerca das necessidades de cada um é a base das relações saudáveis”, acredita. E a sexóloga concorda, salientando também a importância do diálogo. “É difícil alguém que deseja e quer praticar sexo não ser correspondido pelo outro, podendo até gerar sentimentos ambíguos e perceções de auto-valor baixas. De igual modo, não é fácil para a pessoa assexual sentir que não consegue corresponder à necessidade do outro. Todavia, é possível negociar linhas intermédias”, explicou a especialista.

Tal como elas, Rute afirma que é possível uma pessoa demissexual e outra alossexual estarem numa relação amorosa: “Se a pessoa demissexual se apaixonar por uma pessoa alossexual, ou se existir entre essas pessoas um vínculo psicológico ou afetivo importante e a pessoa alossexual tiver as relações sexuais que desejar ter, dentro ou fora dessa dinâmica relacional”, exemplificou a jurista. Segundo a mesma, ao contrário da pessoa alo, é provável que a pessoa demi, por mais ativa que seja sexual e/ou romanticamente nessa parceria, nunca venha a sentir que o sexo e o romance são a grande prioridade nessa ou noutra relação. É isso que as distingue. “É muito importante que as pessoas envolvidas tenham consciência deste facto, sob pena de desenvolverem falsas expectativas acerca dessa relação”, alertou.

 

Incompreensão e invisibilidade

No que toca às maiores dificuldades que uma pessoa assexual encontra no dia-a-dia, de acordo com Alice, começa logo, de uma maneira geral, com o não reconhecimento da orientação sexual (seja pelo próprio ou por outros, por desconhecimento ou descrédito). “Isso pode levar a que uma pessoa se sinta incompleta, doente, disfuncional e se iniba de explorar o seu contacto com outros”, afirmou. “De modo específico, na assexualidade um dos maiores desafios do quotidiano é lidar com a omnipresença de sexo ou ideias de sexo na literatura, em teorias filosóficas e sociais, nas publicidades, no cinema, nos conteúdos televisivos, etc. e com o próprio interesse constante de discussão que há à volta do tópico”, revelou, acrescentando que “não há muitos conteúdos que tenham em conta a nossa experiência e nos quais nos possamos ver representados”.

Além disso, para as pessoas assexuais que também têm alguma deficiência ou doença física ou mental, pode ser muito mais difícil navegar pelas questões que os assexuais no geral já se colocam, “porque isso se mistura com o modo como vivem a sua condição”. “Eu própria vivo essa dificuldade, porque a minha assexualidade foi sempre vivida a par do meu histórico de doença mental”, admitiu.

Porém, nem tudo é mau. Rita Alcaire vê uma evolução no que toca à representatividade. “Sinto que o entendimento sobre a assexualidade tem aumentado nos últimos anos, muito graças ao ativismo assexual e à presença de pessoas assexuais nos media, falando sobre a sua experiência vivida e contribuindo de forma muito construtiva para quebrar mitos”, explicou, frisando que mesmo com estas mudanças, a ideia que é propagada como sendo a narrativa única e experiência válida – pela escola, pela família e pelos media –, é heteronormativa, e é a de “validar e reforçar socialmente estar em relações de cariz amoroso e sexual”. “E isso faz com que seja difícil desgarrar o sexo do romance, considerados obrigatórios nesta equação”, acrescentou. Segundo a investigadora, ser assexual e/ou arromântico ainda são desvalorizadas como não sendo identidades válidas, ainda são encaradas como “opções pessoais” ou “falhas no desenvolvimento”. “Estes retratos unidimensionais infantilizam, ou pior, desumanizam as pessoas e desconsideram as múltiplas formas de intimidade que existem na comunidade”, lamentou.

Para combater essa invisibilidade, de acordo com a jurista, seria necessário haver mais informação e educação que contrariasse a invisibilidade do próprio conceito de assexualidade e desmistificasse as ideias falsas que existem sobre o tema e um modelo societário não-patriarcal, “porque esse continua a ser a grande origem deste e de outros tipos de apagamento social, de injustificadas e gritantes desigualdades, da ausência de coesão e permanente fragmentação social, assim como da solidão e desamparo psicológico de muita gente, quer assexual, quer alossexual”. Além disso, “tem também de passar por uma alteração da proteção injustificada que, juridico-constitucionalmente se dá, ainda, em ordenamentos como o nosso, ao atual modelo patriarcal, monogâmico, sexo-amatonormativo de família”, continuou Rute. Para si, quem quiser permanecer numa relação monogâmica baseada no sexo e no romance deve poder, obviamente, fazê-lo, mas já sem os privilégios de que goza atualmente em relação a quem não se revê nesse tipo de organização familiar: “Há poucos meses, houve, por exemplo, uma decisão histórica de um tribunal sueco que deu razão a uma pessoa que vivia com outra, em regime de comunhão de mesa e de habitação, mas não de leito, na disputa pela respetiva herança, em conjunto com os seus familiares. O tribunal determinou que o essencial era a existência de um vínculo emocional de confiança entre ambas e não propriamente de uma relação de natureza sexual, para que a pessoa que vivia com a autora da herança a ela tivesse direito”, rematou.