A minha geração pouco se recordará da zona oriental de Lisboa antes da EXPO’98. Não havia pavilhão, shopping, oceanário… não havia ponte, estação nem linha de metro. Hoje, o Parque das Nações é um centro da cidade, reunindo atividades económicas, culturais e recreativas, com uma importante componente residencial (que é só para alguns). Resultado vindo de uma ideia excêntrica, não muito bem planeada mas eximiamente executada, com uma pitada de sorte e tudo misturado no tempo das vacas gordas.
Já lá vai esse tempo. Agora é mais difícil justificar abrir os cofres para pagar eventos. Prova disso foram as vozes que se opuseram à Eurovisão 2018, mesmo após passarmos 50 anos a tentar ganhá-la. Uma opinião certamente assombrada pelos fantasmas do Euro 2004. Mas mais difícil é reunir consenso para obras públicas. Veja-se só que foi preciso chamar o Papa para, 25 anos depois, completar o plano de urbanização do Parque das Nações.
O mundo evoluiu, a sociedade civil ganhou voz, as prioridades mudaram e a sustentabilidade tem agora lugar à cabeceira da mesa. Os grandes eventos perderam importância: quando foi a última vez que ouviu falar de uma EXPO? Sabe onde vão ser os próximos Jogos Olímpicos? Lutando pela sobrevivência e contra a oposição pública, os donos destes eventos estão a adaptar requisitos numa desesperada busca por cidades anfitriãs. Não foi por acaso que se organizou o Euro 2020 em vários países da Europa ou que o Mundial 2026 se realizará por toda a América do Norte. Mudança de paradigma que permite usar o que existe e evitar criar os famosos elefantes brancos que nós tão bem conhecemos.
Em teoria, este novo paradigma é bem claro mas, na política, tudo funciona de forma menos óbvia. Os grandes eventos continuam a ter o seu papel, com uma importante diferença: em vez de desencadearem novos projetos, são usados para desencravar os que não reúnem consenso. Como? É simples…
Para organizar um destes eventos é criado um comité local que desenvolve uma candidatura. Esta pode incluir a realização de obras públicas que dão força à proposta em certas componentes de avaliação, como o transporte ou o alojamento. Normalmente este documento não é divulgado e, como não constitui um instrumento de gestão territorial legal, à partida não tem de passar por consultas públicas. Se aprovada pelo governo, a candidatura vai competir contra as restantes. O vencedor é escolhido pelo dono do evento que assina um contrato com o futuro anfitrião, salvaguardando a concretização das intervenções propostas. E para garantir o cumprimento do contrato, o governo defende-se com a criação de leis excecionais que tornam estas intervenções prioritárias. É quase como um estado de emergência onde, aconteça o que acontecer, tudo o que seja considerado necessário para o bom funcionamento do evento tem que estar pronto a tempo e a horas. É lógico que, no momento de implementação, cada uma das intervenções continua sujeita aos processos decisórios e legislações habituais. Quer dizer, mais ou menos…
Portugal e Espanha apresentaram uma candidatura conjunta ao Mundial 2030, à qual se juntou recentemente a Ucrânia. Candidatura essa que segue na frente como favorita. Mas já em 2009 os dois países apresentaram candidaturas falhadas para os Mundiais 2018 e 2022. Na altura, o projeto TGV foi o ponta de lança desta proposta. Por projeto, leia-se, a rede completa: Lisboa-Porto-Vigo, Lisboa-Badajoz-Madrid, Lisboa-Algarve-Sevilha! Mas só recentemente, após anos de debates e vai-não-vai, o primeiro-ministro anunciou que, até 2030, teremos o troço Lisboa-Porto-Vigo. Será a data de 2030 pura coincidência?
O novo Aeroporto de Lisboa não foi convocado para a anterior candidatura Ibérica mas custa-me a crer que não seja titular na nova proposta. Após metade do território nacional já ter sido sugerido como localização para o aeroporto e dado como comprovado que não se chegará a um consenso sobre o assunto, surge como opção reunir acordo através do futebol, até porque já jogámos a carta do Papa. Imagine-se Mbappé e companhia terem de apanhar o transfer no terminal 2 porque não há portas com manga disponíveis no terminal 1? Ou a taça perder-se no amontoado de bagagens que tem estado pelo chão do aeroporto? Alcochete, Montijo… é onde quiserem, só não se brinca é com o futebol!
Posto assim parece descabido, mas a verdade é que não é preciso muito para justificar intervenções para grandes eventos. Em Paris, a “Lei Olímpica” permitiu a construção de um bairro residencial em zona protegida para alojar os membros da imprensa durante os Jogos de 2024, um projeto antigo que tem finalmente luz verde. Em Cortina d’Ampezzo, a mesma lei vai permitir a reconstrução da pista abandonada de bobsleigh para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2026, ainda que os próprios promotores do projeto já tenham estimado prejuízos financeiros derivados da operação e manutenção da pista pós-evento na ordem dos 200 mil euros por ano. Em ambos os casos, o Comité Olímpico Internacional, dono dos eventos, afirmou que não necessita destas intervenções, inclusivé sugerindo alternativas. Dá que pensar: são as intervenções que são para o evento ou é o evento que serve de desculpa conveniente para as intervenções?
Estas ferramentas estão à disposição dos decisores políticos para avançar com obras públicas, combatendo a variada oposição que democratiza tanto o nosso sistema como o complica ainda mais. É bom? É mau? Depende… Eu cá não sei pormenores, mas estou convencido que, dê por onde der, em 2030 temos aeroporto!
Estudante de doutoramento do Instituto Superior Técnico, investigador no Centro para a Inovação em Território, Urbanismo e Arquitetura (CiTUA)