Pietro Citati foi uma das mais destacadas presenças da cultura italiana nas últimas sete décadas. Um desses hoje tão raros intelectuais europeus nos quais convergem a herança das grandes criações de diferentes tradições e que só assim exprimem o alcance do espírito humano ao longo dos tempos, e que defendeu a literatura como uma memória avessa aos regimes triunfantes, aos factos consagrados por articularem as noções mais convenientes. Citati foi um grande leitor e dedicou-se de forma resoluta ao esforço de impor a experiência individual, defender o concreto e as coisas, os sentidos e o sensível face a essa ficção social esmagadora e falsamente universal que nivela os homens, essa força de abstracção que esteriliza tudo. Ele participou ainda desse grande movimento de resistência que descendia do Iluminismo e que procurava criar uma sociedade em que os homens, ao invés de se assumirem detentores da verdade, reconhecem que cada pessoa não é mais que um acervo de fragmentos que só pode contemplar uma porção ínfima dos fenómenos de um universo que resulta de “uma maravilhosa cadeia de relações e proporções que desce das estrelas às plantas, às pedras e ao homem". Do lado dos poderes da imaginação, Citati foi um dos mais empenhados e clarividentes entrançadores das redes electivas que se organizam entre os espíritos mais afinados de cada época, num enfrentamento com a História, essa que pretende encarnar e realizar o universal, e à qual a literatura contrapõe, segundo Claudio Magris, aquilo que cai para a berma, nas margens do devir histórico. Assim, o desígnio dos grandes interpretes passa por dar voz e memória ao que foi rechaçado, reprimido, destruído e apagado pela marcha do progresso. “A literatura defende a excepção e o desejo contra a norma e as regras; recorda que a totalidade do mundo se estilhaçou e que nenhuma restauração pode fingir reaver uma imagem harmoniosa e unitária da realidade, a qual seria falsa”, remata Magris.
Citati morreu na passada quinta-feira, na sua casa em Roccamare, na Toscânia, aos 92 anos. Embora vários dos seus livros tenham sido editados por cá, talvez não espante ninguém que a sua morte não tenha merecido qualquer menção na nossa imprensa. Afinal, vai longe o tempo em que os jornais assumiam ser sua função formular um contraponto face a essa dissolução de qualquer estrutura narrativa que produz o regime de massas, orientando-se por fenómenos de superfície, indo atrás do formigueiro impuro e fugaz de uma realidade prisioneira da sua caótica caducidade. Mas se Citati escapou a ser lembrado, isto certamente diz menos da importância da sua obra do que diz sobre o tão frágil e redundante ecossistema cultural português. Afinal, como notou João de Araújo Correia num dos seus contos, “a morte, em meios imbecis, é o que foi a vida: um quadro baço, quieto, sem frémito de asa, sem gota de água, sem nada.” E esta nota é especialmente relevante ao lembrar o percurso e as obras de um intelectual que tudo fez, inclusivamente escrevendo uma boa parte da sua obra nos jornais, para combater a tendência da imprensa para seguir o exemplo dos restantes media, que se limitam a noticiar e produzir objectos já consumidos, a mostrar acontecimentos já vistos, a submeter-nos a factos já interpretados e a embalar-nos nessa omnipresente litania consumista e na ineficácia de uma linguagem rebaixada ao nível do slogan e de outras formas de um mimetismo sem saída face às imposições dos factores económicos.
Citati é comummente referido, a par de Peter Ackroyd e poucos mais, entre os grandes biógrafos de todos os tempos, tendo dedicado boa parte da sua vida a estudos caracterizados pelo fascínio com autores imprescindíveis como Tolstói, Kafka, Goethe, Proust, Leopardi, Baudelaire, Manzoni, e ainda uma série de impressivos “Retratos de Mulheres”, desde Teresa de Ávila a Jane Austen ou Virginia Woolf, destacando-se o comovente retrato de Katharine Mansfield, mas também figuras históricas como Alexandre Magno e até personagens fictícios como Ulisses. Assinou ainda um excelente romance a partir das cartas apaixonadas que haviam trocado os seus bisavós, em “História Primeiro Feliz, Depois Dolorosa e Funesta” (editado pela Cotovia em 1990). Noutra das suas incursões, recriou literariamente a tumultuosa relação dos Fitzgerald, esse casal que se viu consumido entre a ficção e a loucura, e que protagoniza “A Morte da Borboleta”. Recusava-se a ver esses livros classificados como biografias, uma vez que a sua abordagem estava longe de respeitar a ortodoxia ou os cânones, tratando-se de obras que, como escreveu o escritor e crítico britânico Ian McEwan, são "inspiradas e poéticas invenções" sobre a vida e a obra dos escritores abordados.
Ernesto Sampaio, responsável pela tradução da biografia "Kafka – Viagem às Profundezas de uma Alma", de Citati, notou que estes estudos compreendiam “verdadeiras meditações determinadas pela afinidade espiritual, e com uma novidade suplementar: essa afinidade contamina a bela escrita do próprio Citati, como se, em cada livro, fosse fagocitada pelo estilo do escritor estudado, ou melhor, iluminado”. No fundo, o que Citati escrevia eram romances de crítica, padecendo orgulhosamente dessa doença feliz – “a doença do infinito” –, a de um leitor que, à semelhança do amante, acaba por transformar-se na coisa amada. Ele foi um estupendo leitor, e o que acontece com esses poucos que não se limitam a devorar livros e formular umas vagas impressões num comprazimento com uma suposta cultura adquirida, é que acabam por se devotar às suas obsessões, entendendo que no estudo, como no resto, é preciso assinalar com arte os limites da caça. Citati tornou-se um artista da leitura, dotado de uma aguda percepção e de uma capacidade camaleónica de se movimentar na intimidade dos textos, reescrevendo os livros dos outros, dando passos mais profundos, alargando a rede de relações, nessa planície fértil e florescente, traçando estradas secundárias, dessas que reforçam o vigor e o sentido das principais, estradas umbrosas, erbosas e suavemente floridas, renunciando desde o início a qualquer regime ou escala interpretativa prévia, abdicando de trilhar comodamente um percurso na academia, como tantos que se fazem valer desses modelos de prestígio social para prosseguir no regime de "vistoriar o vistoriado", e isto porque tinha claro que o crítico só acompanha o criador enquanto se bate por cada frase, por cada abertura, nesse traçado dúctil e ardente, criando ligações entre esses outros mundos capazes de uma coesão mimética ainda mais vibrante e profusa nas suas analogias. Assim, Citati não desarmava nunca nem recorria às fórmulas típicas que servem de corrimão para os que andam pelos géneros a subir e descer escadas num furor próprio de quem toma a literatura por um regime jurídico mais emplumado.
Era um intérprete com uma memória prodigiosa, um ensaísta deslumbrante, e nos seus textos “não existe uma única linha recta, como se uma maldição as tivesse expulsado do mundo. Tudo é prega, ângulo em cotovelo, gatafunhos, curva, caracol, emaranhado; tudo é fragmento; tudo é salto de um tema a outro, alternância, divagação, contradição, repentino e fulgurante escorço analógico”, isto usando palavras que Citati escreveu a propósito de Montaigne, autor que figura como um evidente percursor seu. Porque a fluência de Citati resulta da forma como nele a erudição em vez de nos aborrecer era sempre instigante, impressionando-nos “a soberana rapidez do movimento, a velocidade das relações analógicas e intelectuais, a sistemática transcrição física de dados intelectuais – que transforma a actividade interior numa actividade visível, que decorre num espaço –, a alternância entre concentração e complacente lentidão, entre frases epigramáticas e períodos enormes e cambados”. Italo Calvino, de quem foi muito próximo, vincava como na sua escrita, tudo é narração. “Narração feita de golpes de teatro, inversões de itinerários, explorações ousadas e viagens íntimas, acessos de euforia e abismos de depressão, numa sequência que evoca a orquestração harmoniosa de movimentos musicais.”
Naturalmente, o verdadeiro crítico não pode senão ser aquele que é capaz de seguir a criação acompanhando com a mesma liberdade e soberania incondicional, e os seus ensaios inventavam a cada passo os seus instrumentos de análise, estudando por meio de hipóteses radiantes, fugas vivazes, variações prenhes de novos exemplos e cadências. Trata-se de uma crítica que não fica enquistada nessas sentenças judiciosas, não se limita a avaliar ou julgar certos aspectos exteriores, mas mergulha em profundidade, extravasa, e não é fria, nem demasiado cerebral, tende até para o descuidado e o fortuito, experimenta até ao delírio. De que vale um leitor rodear-se de livros, ouvir os silvos entre as estantes, o ruído laborioso entre as suas armadilhas e cantos hipnóticos, as suas temperaturas e humidade, os seus ecos e belezas secretas, de que vale se ele mesmo não for capaz de penetrar e, ao mesmo tempo, desdobrar essa densa sequência de imagens, alargando através dos seus sentidos a floresta de visões alheias, contagiando, por sua vez, outros leitores?
Nascido em Florença em 1930, Citati foi uma criança "tímida, desajeitada, melancólica e um pouco solitária" que cedo buscou refúgio nos livros, começando pela banda-desenhada, passando depressa às histórias de Salgari e Verne, e aos 14 anos já cultivava o convívio com alguns dos grandes nomes civilização literária europeia, tendo lido obsessivamente Proust e os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido". Poderia facilmente ter enveredado pela via académica, e um lugar como professor universitário seria seu se quisesse, mas preferiu esforçar-se por conquistar posições intervindo nos jornais, e, logo que chegou a Roma, em 1954, mergulhou de cabeça no mundo editorial e literário. Viria a dirigir uma colecção de clássicos gregos e romanos na Fondazione Lorenzo Valla, mas antes iniciou uma colaboração assídua e que se estenderia por quatro décadas na imprensa, primeiro na revista Il Punto, seguindo os passos de Pasolini, de quem se tornou amigo, depois no Il Giorno, Corriere della Sera e por fim no La Reppubblica. Fê-lo com um grau de perspicácia e audácia invulgares o que fez dele um desses críticos temíveis que põem ordem na casa, deixando claro que a crítica é um lugar privilegiado da criação literária, ao contrário do que é costume dizer-se, num sinal do ressentimento de tantos escritores por não verem as suas obras acolhidas por aclamações instantâneas. A verdade é que sem estes interpretes não existe propriamente um diálogo, e, sobretudo nos nossos dias, não chega a haver um discernimento sobre as obras que merecem ser resgatadas de entre o lixo editorial que indiscriminadamente chega aos escaparates.
De resto, como notou Virgil Thompson, a crítica é “o único antídoto que temos contra a publicidade paga”. E é fácil perceber como, nos tempos actuais, quase sempre que se fala de livros, especialmente nos órgãos de comunicação de massa, quase tudo se reduz a publicidade, e, mesmo aquela que não é paga, encontra-se subjugada à cadeia de favores que determina quem pode pronunciar-se publicamente sobre os produtos culturais. Citati vinha de outros tempos, gozava ainda o privilégio de se dirigir aos leitores mostrando estar-se perfeitamente nas tintas para as urgências e os conluios que vão desgraçando a perspectiva do espaço literário numa dada época devido a compromissos de ordem mundana. Indiferente ao jornalismo que papagueia e remastiga as mesmas frases feitas, sem nenhuma concepção ética quanto à sua responsabilidade não só face à linguagem como aos factos que veicula, um traço do seu carácter era o desprezo constante pela actualidade e a agenda que permanentemente se articula com a promoção e a venda de produtos e novidades ou eventos, deixando claro que preferia arrastar o leitor para outro lugar. Deixar a vendilhonice aos publicitários e tarefeiros com os seus jogos inflacionários em volta das pululantes decepções de hoje, viajando em direcção aos nascentes horizontes e à colheita de casos possíveis e impossíveis que a grande literatura nos oferece.
“O crítico", disse Sartre, “é um homem que, à beira do desespero, conseguiu encontrar um bom emprego como guarda de cemitério…" Retiro a citação do ensaio que Ernesto Sampaio dedicou a Citati, em que lembra como, “mantendo um trato assíduo com os autores mortos e votando à morte os vivos que glorifica, o ‘crítico’ é o mais desapossado, o mais ‘kafkiano’ dos escritores, culpado, sempre, de matar os que ama ou de deixá-los morrer de silêncio”. Contudo, Sampaio vinca que Citati “não é um crítico no sentido normativo do termo; é antes o inventor de um género novo, que tem mais a ver com as clássicas Vidas de santos do que com as refinadas hermenêuticas que no fim só deixam ficar os ossos dos autores”. E isto porque manteve sempre uma relação de proximidade espantosa, lendo os textos à luz de uma profunda afeição pessoal, e em nenhuma das obras publicadas entre nós é mais fácil reconhecer essa sua capacidade de trazer à luz uma trama de afinidades obscuras do que em “A Luz da Noite – Os Grandes Mitos da História do Mundo” (publicada no ano 2000 com selo da Editorial Presença), livro em que o ensaísta se lança numa revisitação encantada e enleante dos mitos fundadores, não apenas da cultura ocidental, mas de toda a humanidade, num assombroso percurso que se sustenta tanto de um fôlego poético como de uma lucidez admirável na relação que estabelece com os textos. Vale a pena que nos detenhamos mais longamente nas palavras que dedicou num ensaio sobre Montaigne incluído em “A Luz da Noite”, uma vez que neste caso o retrato consegue ser tão fiel ao retratado como ao retratista, nessa sua afinidade e compreensão profunda que o levou a interferir nas suas consciências, a interpor aquela lupa com que de um raio de luz se consegue queimar o papel abrindo uma fissura no tempo.
Tal como acontece com Montaigne que escreveu os seus “Ensaios” no terceiro andar de uma torre, onde tinha uma biblioteca com quase um milhar de livros, ordenados em cinco filas, “prontos a ser desfolhados se o assaltasse o capricho ou a inquietação”, e que é, segundo Citati, um desses escritores que só pode ser lido numa biblioteca, também a obra de Citati ganha em ser lida num espaço em que seja possível levantar os olhos e abarcar tantos outros livros, organizados em estantes, de tal modo que o leitor, se imagine envolvido por uma floresta luxuriante de que estes fazem parte. Se nos diz que Montaigne é alguém que tinha uma memória imensa, e que trazia no espírito uma floresta-biblioteca flamejante, conservando em si quase toda a civilização clássica e parte da civilização cristã, este crítico italiano foi um conhecedor profundo das civilizações mais diversas e oriundas dos lugares mais remotos, da longínqua Ásia ao Próximo Oriente e à Europa, passando pela América pré-colombiana. A sua biblioteca terá sido ainda mais frondosa, mas o impulso e o apelo eram os mesmos, um mesmo génio neles tinha como alimento o espanto, a caça e a ambiguidade. Eis um momento do retrato que nos diz tanto de um como do outro: “Montaigne sentia dentro de si um vazio ou uma lacuna que era necessário colmatar com a riqueza alheia, pois parecia-lhe que o seu terreno não era capaz de produzir flores suficientemente belas. Ao ler ia depenicando bago a bago, ora três versos, ora uma frase; e tratando-se do maravilhoso Plutarco, que tanto gostava de frequentar, como impedir-se de lhe roubar uma coxa, talvez uma asa? A citação resplandecia como uma gema, ao mesmo tempo que criava um pano de fundo, rico e delicado, distante e ousado, por detrás do seu discurso em primeiro plano. Por fim, o que era estranho (mas na literatura nada é estranho) acabava por ser assimilado: a frase alheia entrava na sua frase e esta entrava na frase alheia, o embutido insinuava-se noutro embutido, Lucrécio e Séneca transformavam-se na sua carne e no seu sangue. ‘As abelhas pilham flores por aqui e por ali, mas depois fazem o mel, que é todo delas; já não é tomilho nem manjerona.’ Desde os tempos das "Confissões" de Agostinho, talvez nenhum escritor tenha possuído um tão soberbo condão de transformar a riqueza dos livros no ritmo nervoso e suculento da sua prosa.”