Foi recentemente notícia ter sido proferido pelo Tribunal Constitucional o seu Acórdão 464/2022, que considerou materialmente inconstitucional a imposição de confinamento obrigatório aos cidadãos fora do estado de emergência. Há muito que o Tribunal Constitucional vinha declarando inconstitucional esta medida, mas apenas com fundamento em inconstitucionalidade formal e orgânica, uma vez que a mesma resultava de resoluções do Conselho de Ministros, meros regulamentos do Governo, quando a restrição dos direitos, liberdades e garantias apenas pode ocorrer por lei do Parlamento. Neste acórdão, o Tribunal Constitucional vai, porém, mais longe, referindo que a imposição de quarentenas forçadas aos cidadãos viola o seu direito à liberdade, garantido pelo art. 27º da Constituição, sendo por isso materialmente inconstitucional.
O Tribunal Constitucional salienta em primeiro lugar que “o artigo 27.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa impõe que todas as formas de privação da liberdade sejam autorizadas pelo catálogo fechado previsto nessas duas disposições, quer sejam totais ou apenas parciais, impondo-se a aplicabilidade do princípio da tipicidade qualquer que seja o grau de privação que se observe”.
Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional considera que o confinamento obrigatório “estabelece uma forma de privação da liberdade total, já que se traduz em reclusão no domicílio, vedando quaisquer formas de deslocação para fora da residência. Em certo sentido, a norma pode entender-se possuir âmbito de intrusão mais intenso na integridade pessoal dos visados que medidas de encarceramento prisional por período idêntico: a quarentena em residência nas condições estabelecidas no dispositivo não garante sequer mínimos de mobilidade dentro do espaço de reclusão (pense-se, por exemplo, nos casos de domicílio pessoal em quartos arrendados, em pensões ou hospedarias, que poderão nem consentir espaços para exercício físico, de circulação no interior do edifício ou de exposição a ar livre), sendo que a permeabilidade da norma a que sejam indicados outros locais para efeitos de confinamento por mero arbítrio de entidade administrativa (“autoridades de saúde”) agrava sensivelmente a situação de dano potencial no direito”.
E, por último, o Tribunal Constitucional considera que a medida é inconstitucional, por resultar de uma decisão de uma autoridade administrativa, quando “a determinação de qualquer medida nesse âmbito está sujeita a reserva jurisdicional por via de regra, impondo-se que seja decretada por órgão judicial, ou, quando tenha lugar no âmbito da atividade administrativa, que seja ao menos sujeita a controlo jurisdicional subsequente (…). Esta é uma garantia mínima contra abusos num domínio particularmente sensível e intenso da tutela constitucional e não é admissível solução legal que permitisse que a privação operasse apenas por ato administrativo desprovido de controlo judicial necessário e temporalmente conexo com ela”.
A Ordem dos Advogados desde sempre se pronunciou publicamente pela inconstitucionalidade deste tipo de medidas e pela brutal violação dos direitos dos cidadãos que estava a ser praticada no nosso país, sem que nenhuma das entidades encarregadas de fiscalizar a constitucionalidade das normas o tivesse alguma vez feito. Tal deixou o Governo de mãos livres para tomar estas medidas. Todos nos recordamos que, a 27 de Abril de 2020, quando foi levantado o estado de emergência, o primeiro-ministro referiu que “o confinamento é para manter, diga o que disser a Constituição”. E quando foi questionado sobre a inconstitucionalidade desta medida limitou-se a responder: “Eu também sou jurista e sei a capacidade enorme que os juristas têm de inventar problemas. Felizmente, a realidade da vida é muitíssimo mais prática”.
Na verdade, os advogados inventaram problemas, uma vez que foi um advogado que instaurou o habeas corpus que levou a esta decisão do Tribunal Constitucional. E foi a Ordem dos Advogados que permaneceu a defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos do art. 3º a) do seu Estatuto, quando mais ninguém o quis fazer neste país. A Ordem dos Advogados continuará assim a exercer essa sua missão, por muitas investidas que o poder político lhe queira dirigir.