Ciência e consciência (2)

Ciência e consciência (2)


O argumento de encurtar a guerra aparece mais do que uma vez, sabendo-se o Japão já era derrotado, sem que o admita


Na escola, em Lovaina, Didier Alcante tinha por melhor amigo um colega japonês, filho de um especialista no Império Carolíngio, em estudos na Bélgica. Essa amizade, que se mantém ainda hoje, suscitou no futuro argumentista de BD um forte fascínio pelo Japão, onde chegou também a viver com a família.

Numa visita a Hiroxima, deparou-se com um impressionante vestígio da primeira bomba atómica deflagrada numa guerra, às 8 horas e 15 minutos do dia 6 de Agosto de 1945: a sombra de um homem desintegrado marcada na pedra de um edifício, uma assinatura indelével do poder autodestrutivo que o ser humano se infligiu – 60 mil mortos no mesmo instante, ultrapassando os duzentos mil nos anos seguintes –, testemunho em exposição no museu da cidade.

“Para mim, aquela sombra representava de algum modo a aniquilação de um país que me tinha feito sonhar tanto […]. E talvez o fim da minha inocência.” – escreveu no posfácio. A partir daí, a pergunta “Como foi possível?” tornou-se-lhe obsidiante, até que, após anos de reflexão, decidiu empreender uma longa narrativa em BD – “Ou seria um romance gráfico, ou nada!” –, dada a seriedade do tema, pedindo para o efeito auxílio ao colega Laurent-Frédéric Boillé e convidando para os desenhos Denis Rodier, um autor experimentado no competitivo mercado norte-americano, nomeadamente na série Superman.

Foram cinco anos de trabalho e cerca de 450 pranchas, em dois volumes. Uma insanidade, recorde-se que um álbum de BD padrão tem por volta de 44 pranchas, levando um ano a fazer.

Esta largueza inusitada que uma graphic novel permite, tem a vantagem de dar um espaço maior à narrativa, que traz à ação grande parte dos cientistas envolvidos, os chefes militares, os políticos, em especial norte-americanos, e o povo japonês simbolizado por uma família de Hiroxima, pai viúvo e dois filhos, o mais velho piloto na força aérea japonesa, o segundo que entrará na idade militar durante a guerra – o pai, que terá os traços fisionómicos do amigo de infância de Alcante. Este agregado familiar e as suas interações será o único elemento ficcional da obra, cuja cuidada documentação e bibliografia podem ser compulsados no final.

Este realismo tem a reforçá-lo a ausência de panfletarismo e grandes proclamações. A face do militarismo japonês é suficientemente feia, e a hediondez de recurso a cobaias humanas no Projecto Manhattan para testar os efeitos da radioatividade e para precisarem de sublinhados. Presentes estão também os dramas individuais dos cientistas, as questões éticas que se põem ou não a políticos e militares. O argumento de encurtar a guerra aparece mais do que uma vez, sabendo-se o Japão já era derrotado, sem que o admita.

O preto e branco de Denis Rodier é apuradíssimo; a expressividade das personagens e a sequência da primeira explosão atómica são ficam-nos nas retinas e na memória.

BDTeca

ABECEDÁRIO  

T, de Tio Patinhas / Scrooge Mc Duk (Carl Barks, 1947). O nome e a avareza foram inspirados pela personagem de Charles Dickens, Ebenezer Scrooge; mas o Tio Patinhas, o pato mais rico do mundo, é um velho tycoon que à custa de trabalho árduo e sovinice construiu um império, sendo praticamente o dono da cidade de Patópolis. Se o sobrinho Donald, como aventámos na última semana, disputou a popularidade a Mickey no cinema, o tio, essencialmente personagem de comics, roubou-a ao sobrinho, pelo carisma e até complexidade que oferece. De tal modo que, entre nós, “Patinhas” significa, por antonomásia, revistas aos quadradinhos. Longe de ser um quaquilionário chato, ele leva uma vida incrivelmente aventurosa para quem é tão rico. De tal modo, que muitos dos seus leitores tornados homens foram ou gostariam de ter sido arqueólogos ou viajantes. No bunker que é a Caixa-Forte, em vez de aventura tem preocupação: os assaltos dos Irmãos Metralha ou o roubo da moeda n.º 1 pela bruxa Maga Patalójika.

LIVROS 

Bertille et Bertille – 1. L’Étrange Boule Rouge, por Eric Stalner. O Comissário Bertille é um polícia façanhudo, rezingão e desagradável que o acaso colocou junto de uma jovem aristocrata, Bertille de nome próprio, quando um estranho objeto redondo vermelho se despenha não longe de Paris, interrompendo uma acalorada troca de argumentos. Não sem pasmo verificam que o volume da bola cresce, ameaçando chegar à capital francesa, a viver os loucos anos vinte. (Edição Grand Angle).