Ciência e consciência (1)

Ciência e consciência (1)


A Bomba é uma obra seriíssima do ponto de vista documental e de uma grande eficácia no tratamento de questões complexas de uma forma não só apelativa, como empolgante.


Se há uma ideia feita que a História desmente, ela é a da bondade intrínseca da Civilização. Assurbanípal (685-627 a.C.), poderoso rei da Assíria, perpetuou a sua memória graças à arte (os incomparáveis baixos-relevos assírios) e a grande Biblioteca de Nínive, a mais célebre do mundo pré-clássico, cujas tabuinhas de argila em escrita cuneiforme testemunham a crueldade do monarca na devastação dos reinos inimigos. Neste tópico, o nazismo é sempre trazido à colação. Pois não se ouvia em Auschwitz Beethoven, Schubert?… Aliás, a devastação a que se assiste hoje na Ucrânia não é ela fruto do confronto das duas maiores potências militares, tecnológicas, científicas, culturais, com a terceira, a milenar China, a assistir?

Interrogações que põem em cheque, infelizmente, um propalado optimismo antropológico tão caro à esquerda, pese embora um indesmentível progresso que levou um punhado de primatas caçadores recolectores às avenidas do espaço sideral…

Uma BD como a de hoje A Bomba, de Didier Alcante, Laurent-Frédéric Bollée e Denis Rodier (2 tomos, edição Gradiva), levanta várias questões, que não são fáceis, tantos os dilemas éticos a que determinados indivíduos são sujeitos. E um deles é o do pacifismo à outrance, que nos traz à memória a voz de Maria Bethânia em dois versos de Chico Buarque:

“Quantas guerras terei de vencer / Por um pouco de paz?” Este um dos problemas postos a vários cientistas envolvidos no ultra-secreto Projecto Manhattan, a partir de 1940: a produção da bomba atómica, numa corrida contra o tempo, antecipando-se à Alemanha nazi, pressupondo, e bem, que esta a utilizaria como quem bebe um copo de água.

A Bomba é uma obra seriíssima do ponto de vista documental e de uma grande eficácia no tratamento de questões complexas de uma forma não só apelativa, como empolgante. O rigor e o volume de informação tratados com total eficácia narrativa e visual é, quanto a nós, o seu grande trunfo, para o qual concorreram a experiência dos dois argumentistas, o belga Didier Alcante e o francês Laurent-Frédéric Bollée – de quem aqui falámos, a propósito de “As Novas Aventuras de Bruno Brazil” – e os desenhos do quebequense Denis Rodier, um autor que já trabalhou para a DC e a Marvel.

Ou seja: a consistência da BD franco-belga aliada à mestria do comics norte-americanos. Curiosamente, à primeira leitura, a memória transportou-nos à infância idílica em que folheávamos as revistas a preto e branco, hoje saudosas da EBAL-Editora Brasil-América: de repente Nova Iorque transformava-se aos nossos olhos em Metrópolis, e não estranharíamos que ao virar de página nos surgisse o Clark Kent… 

Repartida por seis capítulos, um prólogo e um epílogo, veremos na próxima semana de que for se desempenharam os autores.

BDTeca

ABECEDÁRIO 

M, de Mickey (Walt Disney & Ub Iwerks, 1928-30). Começa como figura de desenhos animados, com “Steamboat Willie” – o primeiro filme de animação sonoro –, salta para os quadradinhos dois anos depois, graças ao êxito das curtas metragens. Começando por ser um pachola, dividindo-se entre Minnie, a namorada, Pluto ou os sobrinhos, que lhe põem a cabeça em água, tem ainda, por vezes, de defrontar Peg Leg Pete (João Bafo de Onça). Esta característica de herói íntegro e combatente do crime irá acentuar-se no futuro, à medida que vão aparecendo as personagens que fazem as vezes de de Sancho Pança: Horácio, Pateta, que se torna companheiro permanente,e Donald, cuja estouvadice e “humanidade” tão do agrado do público lança o rato para outros cenários menos cómicos. Durante anos coexistiram assim dois Mickeys: o dos filmes, num registo infantil, e nos comics, com narrativas policiais ou espionagem em que ao Bafo de Onça se junta uma trupe de vilões de fazer inveja aos congéneres da DC e da Marvel.

LIVROS

La Oveja Samurai – La Senda del Tatuador (Santiago Girón, Fran Carmona e Puzy). Num Japão medieval, em que os locais são animais antropomorfizados, o xogum – o militar que efectivamente governa o país – não tem confiança no herdeiro, escolhendo o filho segundo, um choné que prefere ser tatuador. Mas o xogum não desiste da ideia. O tebeo espanhol também tem o que contar. (Grafito Editorial, Valencia, 2022).