Um tsunami na edição francesa

Um tsunami na edição francesa


A anunciada fusão dos dois maiores grupos editoriais em França está a dar origem a um debate aceso com os editores independentes a baterem-se para impedir que se crie um gigante editorial que irá deter mais de 50% do mercado do livro.


Um pouco por toda a Europa, temos assistido ao longo dos últimos anos ao desaparecimento progressivo das chamadas editoras independentes. Independentes, dizem-se, por não estarem dependentes de um CEO que lhes dita uma agenda de rentabilidade que têm de cumprir escrupulosamente. Independentes, dizem-se, porque apenas dependem de si próprias para escolher os autores, pagar os custos, dar a conhecer os livros. Estas editoras, com os seus meios à escala humana e que perpetuam o ofício de fazer livros, encontram-se hoje em dia a dividir o mercado em partes desiguais com grupos editoriais multinacionais. Estes grupos podem ser compostos por vários tipos de sociedades, agrupando os livros e a televisão, a rádio, a imprensa e até algum comércio ocasional de mísseis para arredondar as contas no fim do mês, como é o caso da sociedade francesa Lagardère, detentora do primeiro grupo editorial do mercado, Hachette. Já o segundo grupo, Editis, pertence à sociedade Vivendi, detentora de vários canais de televisão e cujo proprietário se encontra envolvido em muitas outras sociedades e negócios obscuros.

Estas empresas associadas nada têm a ver com livros e vêm injetar capital externo no setor editorial, criando uma forma de concorrência desleal. Dito por outras palavras, uns partem para a guerra com uns trapos, e outros de cavalo e armadura. Por outro lado, os autores que publicam em chancelas editoriais pertencentes a grandes grupos poderão dispor de uma promoção de maior alcance, por exemplo através de publicidade ou de críticas literárias nos jornais, na rádio ou nos canais de televisão do grupo. O que significa que –  tirando as cada vez mais raras exceções de autores militantes, que não procuram na escrita uma carreira – uma parte significativa dos autores poderá ter o seu ego seduzido por este tipo de condições mais favoráveis à existência mediática. O grupo a que a Hachette pertence é, por exemplo, proprietário das revistas Elle e Paris Match, do canal Europe 1, e do curioso negócio das lojas Relay, vermelhas, muito luminosas, que se encontram geralmente em aeroportos ou estações, e onde há sanduíches triângulo, água engarrafada, pastilhas elásticas, revistas e meia dúzia de livros de aspeto dramático e capas berrantes. Naturalmente, o leitor não irá encontrar qualquer espécie de edição independente nestes pontos de venda.

O capitalismo, a sua cegueira do lucro, entra com os seus tentáculos por portas e janelas e tinge tudo com a deturpação que impõe à natureza das coisas; a concentração editorial é uma perfeita manifestação disso. Esta contaminação do ofício dos livros por outros interesses económicos e ideológicos está longe de ser um problema novo. Acerca dele escreveu André Schiffrin uma trilogia de ensaios que muito nos elucidam sobre estas questões e dos quais o primeiro, e mais célebre, foi traduzido para português. Em O Negócio dos Livros (ed. Letra Livre, 2013), Schiffrin relata a sua experiência pessoal como editor da lendária Pantheon Books – editor americano de Beauvoir, Duras, Foucault -, que teve de abandonar depois de esta ter sido comprada pelo grupo Random House e posta ao serviço da rentabilidade. A rentabilidade implica rapidez, produtividade, e sobretudo facilidade: esta é própria para consumo, massifica-se melhor. A rentabilidade implica deixar de lado os autores que não o são, os livros que não o são, os géneros que não o são. Entregue às mãos da lógica capitalista dos saqueadores da edição, uma grande parte dos livros que foram produzidos pela humanidade – filosofia, poesia, teatro – não teria tido condições para existir.

No dia 20 de junho de 2022, no jornal Le Monde, quatro editoras vieram exprimir-se acerca da recente confirmação daquilo que há meses se temia no mundo editorial francês. Vincent Bolloré, o proprietário de Editis, adquiriu o grupo Hachette. Esta fusão, sem precedentes na história editorial francesa, dará origem – caso seja aprovada pelo Conselho da Concorrência da Comissão Europeia – a um gigante editorial que irá deter mais de 50% do mercado do livro. Este monopólio, a realizar-se, será um verdadeiro tsunami tanto para as editoras como para as livrarias independentes. Este monstro Hachette-Editis ficaria a controlar quase totalmente a distribuição livreira, fazendo chegar os seus livros a todo o lado e não deixando às editoras independentes outra opção a não ser contratar os seus serviços de distribuição se quiserem alcançar os pontos de venda mais inacessíveis do território francês e internacional, dentro da Europa e fora dela. Resta saber a que preço, e se este preço poderá ser suportado por uma estrutura de dimensão mediana. No que diz respeito às livrarias, sabendo que mais de metade dos seus livros pertencem a este gigante, poderão sofrer uma imposição de certas condições que influenciariam as suas escolhas e interfeririam com a sua liberdade e critérios de seleção. Por último, surgiria um monopólio significativo dos órgãos de comunicação destinados à promoção de livros.

Nesta selva triste, devemos animar-nos então com esta resistência pela arte, a resistência dos vulneráveis que não deixam de se exprimir, que não vão largar o osso até vir a resposta final. Por agora, apenas Marrocos opôs o seu veto a esta concentração, e a resposta da Comissão Europeia poderá demorar até três meses. Estas quatro mulheres, editoras da Zulma, Verdier, Luana Levi e Sabine Wespieser não deixaram passar em silêncio; não querem “uma edição onde o leitor seja considerado como um consumidor de obras standardizadas, onde o pluralismo editorial e a criação literária iriam desaparecer aos poucos e poucos”. A Zulma é uma editora que se diz “de literaturas do mundo inteiro”; é graças a ela que quem lê francês pode ler literatura contemporânea indiana, islandesa, sudanesa, romena, coreana. É de continuar a haver espaço para isto existir que se está a falar. Um coletivo de 15 livrarias lançou um apelo nas redes sociais, comentando que esta “hiper-concentração dos dois grupos mais importantes da edição francesa contribuiria para uma perda da independência e da diversidade dos fundos das livrarias”. É entrar numa livraria em Paris e ficar lá umas horas para perceber do que se está a falar. A cidade com mais livrarias por quilómetro quadrado no mundo, talvez. A miríade de edições, as nacionalidades dos autores, de todos os séculos, de todos os géneros. Para o leitor vindo de Portugal, a sensação é a de que se encontra tudo. Mas se há tudo é porque há estes obreiros a garantir ciclicamente que vai havendo tudo.

Desolador é pensar que a ambição megalómana de um homem como Vincent Bolloré possa vir a colocar este universo em perigo. Um homem conhecido por todos como alguém que não respeita a liberdade de imprensa, alguém que intimida jornalistas, sindicalistas, membros de ONG’s, perseguindo com processos de difamação duvidosos aqueles que ousam denunciar as práticas que utiliza nas suas sociedades. Um homem que desde os anos 80 é o principal ator do negócio de exportação de madeira nos Camarões e na Costa do Marfim, sendo o responsável pela desflorestação destes países desde há décadas; como não é chinês, ninguém fala sobre ele. Um homem que é dono da rede nacional de caminhos de ferro dos Camarões, um dos países de África Central com pior rede de circulação interna, mas o monsieur Bolloré só usa os comboios para transportar mercadoria; a população é carne para canhão. Um homem que está por trás das mais importantes empresas de exploração de óleo de palma – Socapalm e outras -, onde trabalham crianças, onde as pessoas são pagas miseravelmente, trabalham sem luvas, sem capacete, sem qualquer espécie de protecção social, vivem em barracas insalubres que são os “alojamentos” da empresa, assistem aos seus cursos de água a serem contaminados por produtos tóxicos. Já foram vários os jornalistas de investigação a demonstrar que este homem, literalmente herdeiro da chamada “Françafrique”, é uma personagem neocolonialista com contornos de escravocrata moderno. Um homem que, para além de tudo isto, é ainda dono do canal de televisão mais reacionário da televisão francesa, CNEWS, onde durante vários anos o ex-candidato presidencial de extrema-direita Éric Zemmour teve programas de opinião política. Programas em que chegou a afirmar, por exemplo, que “a maior parte dos traficantes são pretos e árabes, é assim, é um facto”, afirmações pelas quais foi judicialmente condenado por incitação ao ódio racial. Esta notícia não é suficientemente longa para enumerar tantas ignomínias, apenas para assinalar que este é um homem perigoso. Que metade do mercado livreiro possa ficar debaixo da sua alçada é consternador e teria consequências graves a longo termo em toda a vida cultural e política francesa. Virginie Despentes disse ao Libération: “É muito fácil fazer desaparecer autores. Se Bolloré puser um tipo de extrema-direita à frente das editoras que vai comprar, tudo o que nós escrevemos anteriormente lhe passa a pertencer. E uma parte do catálogo poderá ser apagada por pura ideologia: os estudos de género, os ensaios feministas, anti-racistas, a filosofia… Ver livros enterrados vivos é uma ideia insuportável.”