Dom Phillips, Bruno Pereira e a queda do céu


O crime indignou além fronteiras porque Dom Phillips e Bruno Pereira são símbolo de duas realidades indivisíveis: a esperança e coragem de quem levanta os braços, num mundo que nos faz pensar que talvez não estejamos assim tão longe da queda do céu.


“A Queda do Céu” é uma etnografia original e subversiva sobre o diálogo interétnico entre a ecologia ocidental e a cosmologia indígena. É original porque desafia a ideia clássica da relação entre antropólogo e objeto de estudo, e subversiva porque o resultado desse contacto é uma poderosa narrativa ecologista sobre a urgência e as estratégias de proteção da Amazónia. O livro, publicado em 2000, é resultado do encontro, prolongado ao longo de décadas, entre o etnólogo e ativista Bruce Albert e o xamã e líder indígena yanomami Davi Kopenawa.

“A queda do céu” é uma profecia cosmológica sobre o fim do mundo que o povo yanomami incorporou no discurso científico e político contemporâneo sobre as consequências das alterações climáticas.  Esse fim do mundo remete para o mito da queda do céu dos primeiros tempos, originada pela morte dos grandes xamãs ancestrais, que criou o mundo atual. No entanto, mesmo tratando-se de uma visão apocalíptica, para Kopenawa a destruição total não é uma inevitabilidade. É um resultado possível do embate entre a pandemia xawara – provocada pelo “fumo do metal” e pelo “canibalismo da mercadoria” dos brancos – e o ambientalismo xamânico, a ecologia.

Esta introdução é uma tentativa de compreensão antropológica da aliança política que as lideranças indígenas conseguiram fazer com os movimentos ecologistas de todo o mundo e, em particular, com a oposição democrática ao governo de Bolsonaro. Essa aliança tem sido incansável na denúncia do genocídio indígena em curso no Brasil, e meço as minhas palavras.

Desde a chegada ao poder de Bolsonaro, o mundo chocou-se com a intensificação dos incêndios e a velocidade do desmatamento da Amazónia. As políticas anti indigenistas deram carta branca aos exploradores ilegais de minério (garimpeiros) para entrar a matar (em muitos casos, literalmente), assim como à exploração ilegal de gado e de recursos piscatórios dos territórios indígenas. Ao mesmo tempo, asfixiaram as associações de defesa dos povos indígenas, elegendo como inimigo número um a Federação Nacional do Índio (Funai). Como consequência, o mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que o número de assassinatos de yanomamis aumentou em 1.100% de 2020 a 2021 e o garimpo ilegal está a fazer a pior ofensiva em 30 anos, e certamente a mais violenta.

Será isso suficiente para falar em genocídio? Sim. Para os povos indígenas, a destruição do seu território significa o extermínio do seu povo. Não há índio sem terra. E por isso a Constituição brasileira reconhece que as terras indígenas são “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. É um direito originário.

Ao travar o processo de demarcação de territórios indígenas e permitir a invasão e destruição ilegal de territórios demarcados na Amazónia, Bolsonaro está a provocar deliberadamente um genocídio indígena. O indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips são as vítimas mais recentes desse crime organizado. Foram assassinados, os seus corpos foram encontrados esquartejados e incinerados, durante uma viagem pelo Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil. Segundo a Univaja, os suspeitos do crime integram grupos de caçadores e pescadores profissionais que fazem invasões constantes à terra indígena Vale do Javari e ameaçam de morte quem atua contra eles.

O crime indignou além fronteiras porque Dom Phillips e Bruno Pereira são símbolo de duas realidades indivisíveis: a esperança e coragem de quem levanta os braços, num mundo que nos faz pensar que talvez não estejamos assim tão longe da queda do céu.

 

Deputada do Bloco de Esquerda

Dom Phillips, Bruno Pereira e a queda do céu


O crime indignou além fronteiras porque Dom Phillips e Bruno Pereira são símbolo de duas realidades indivisíveis: a esperança e coragem de quem levanta os braços, num mundo que nos faz pensar que talvez não estejamos assim tão longe da queda do céu.


“A Queda do Céu” é uma etnografia original e subversiva sobre o diálogo interétnico entre a ecologia ocidental e a cosmologia indígena. É original porque desafia a ideia clássica da relação entre antropólogo e objeto de estudo, e subversiva porque o resultado desse contacto é uma poderosa narrativa ecologista sobre a urgência e as estratégias de proteção da Amazónia. O livro, publicado em 2000, é resultado do encontro, prolongado ao longo de décadas, entre o etnólogo e ativista Bruce Albert e o xamã e líder indígena yanomami Davi Kopenawa.

“A queda do céu” é uma profecia cosmológica sobre o fim do mundo que o povo yanomami incorporou no discurso científico e político contemporâneo sobre as consequências das alterações climáticas.  Esse fim do mundo remete para o mito da queda do céu dos primeiros tempos, originada pela morte dos grandes xamãs ancestrais, que criou o mundo atual. No entanto, mesmo tratando-se de uma visão apocalíptica, para Kopenawa a destruição total não é uma inevitabilidade. É um resultado possível do embate entre a pandemia xawara – provocada pelo “fumo do metal” e pelo “canibalismo da mercadoria” dos brancos – e o ambientalismo xamânico, a ecologia.

Esta introdução é uma tentativa de compreensão antropológica da aliança política que as lideranças indígenas conseguiram fazer com os movimentos ecologistas de todo o mundo e, em particular, com a oposição democrática ao governo de Bolsonaro. Essa aliança tem sido incansável na denúncia do genocídio indígena em curso no Brasil, e meço as minhas palavras.

Desde a chegada ao poder de Bolsonaro, o mundo chocou-se com a intensificação dos incêndios e a velocidade do desmatamento da Amazónia. As políticas anti indigenistas deram carta branca aos exploradores ilegais de minério (garimpeiros) para entrar a matar (em muitos casos, literalmente), assim como à exploração ilegal de gado e de recursos piscatórios dos territórios indígenas. Ao mesmo tempo, asfixiaram as associações de defesa dos povos indígenas, elegendo como inimigo número um a Federação Nacional do Índio (Funai). Como consequência, o mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que o número de assassinatos de yanomamis aumentou em 1.100% de 2020 a 2021 e o garimpo ilegal está a fazer a pior ofensiva em 30 anos, e certamente a mais violenta.

Será isso suficiente para falar em genocídio? Sim. Para os povos indígenas, a destruição do seu território significa o extermínio do seu povo. Não há índio sem terra. E por isso a Constituição brasileira reconhece que as terras indígenas são “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. É um direito originário.

Ao travar o processo de demarcação de territórios indígenas e permitir a invasão e destruição ilegal de territórios demarcados na Amazónia, Bolsonaro está a provocar deliberadamente um genocídio indígena. O indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips são as vítimas mais recentes desse crime organizado. Foram assassinados, os seus corpos foram encontrados esquartejados e incinerados, durante uma viagem pelo Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil. Segundo a Univaja, os suspeitos do crime integram grupos de caçadores e pescadores profissionais que fazem invasões constantes à terra indígena Vale do Javari e ameaçam de morte quem atua contra eles.

O crime indignou além fronteiras porque Dom Phillips e Bruno Pereira são símbolo de duas realidades indivisíveis: a esperança e coragem de quem levanta os braços, num mundo que nos faz pensar que talvez não estejamos assim tão longe da queda do céu.

 

Deputada do Bloco de Esquerda