Benji Price. “Adoro música pimba. Já trabalhei com a Ana Malhoa e gostava de trabalhar com mais pessoas dessa área”

Benji Price. “Adoro música pimba. Já trabalhei com a Ana Malhoa e gostava de trabalhar com mais pessoas dessa área”


Entre Naruto, One Piece, ou mitologia nórdica, o produtor Benji Price assina pela primeira vez um disco a solo, ígneo, e deixou as suas paixões guiarem a narrativa do disco.


Benji Price, alter-ego musical de João Ferreira, com uma longa carreira como produtor de hip-hop em Portugal e metade responsável pela criação do disco System (2020) com Profjam, assume, pela primeira vez na sua carreira, a responsabilidade de ser o protagonista do seu disco de longa duração de estreia, ígneo.

 

 

 

Depois de uma carreira pautada por trabalhos “atrás das cortinas”, nomeadamente, enquanto produtor, como se sente por agora assumir-se como a “personagem principal da sua música?

Sinto-me estranho. Sendo a música um trabalho tão colaborativo, não estou habituado a funcionar a “solo”. Não é que não me sinta confortável, mas é estranho não existir ninguém com quem possa partilhar aquela sensação de entusiasmo coletivo de estarmos a criar algo juntos. Não é que os meus amigos e colegas de trabalho não fiquem felizes por mim (risos), eles partilham esse entusiasmo, mas é sem dúvida diferente de trabalhar num projeto que envolve mais pessoas, como quando fiz o System a meias com o Profjam. Obviamente, existem colaborações neste disco, mas foi uma viagem um pouco solitária, para ser sincero. Contudo, no fim, estou contente por ter chegado aqui. Sei que é uma resposta que parece saída de uma “flash-interview” depois de um “Clássico”, mas é a realidade. Sinto-me só esquisito por não estar habituado a ser o único “jogador” dentro do relvado.

Como é que acha que vai ser assumir toda esta responsabilidade sozinho em cima do palco?

Oxalá as pessoas gostem. Embora não tenha feito praticamente nenhum concerto sozinho, tenho muita experiência de palco, devido ao meu passado no conservatório e de acompanhar os meus colegas na estrada estes anos todos. Já tenho alguma bagagem que ajuda a tornar toda a experiência mais fácil. Ainda estou numa fase em que quero perceber qual é a forma mais interessante de trabalhar este projeto ao vivo. Com o contexto da pandemia, todos os espetáculos são extremamente raros. Apesar de haver, progressivamente, mais, já não sei muito bem o que esperar. Antes da pandemia, os espetáculos aconteciam em salas ou terrenos abertos completamente lotados, agora acontecem com as pessoas sentadas, com distância de segurança, por isso, existe uma dinâmica ainda um pouco “alienígena”. Espero que as pessoas gostem de me ver a atuar e a quem me venha acompanhar. É uma fase que me deixa muito entusiasmado.

Uma pergunta que vive na cabeça dos seus fãs, que se calhar são aqueles “nerds” de hip-hop, obcecados pelo seu trabalho de produção, é perceber porque é que agora decidiu que deveria assumir este protagonismo na sua música?

Sentia que não havia muito mais por explorar na minha música não sendo eu a voz principal desse projeto. É sempre bom trabalhar com outras pessoas e tirarei sempre muito prazer e conhecimento destas colaborações. Mas pretendia trabalhar em algo onde pudesse impor a minha visão artística de uma forma mais preponderante e mais óbvia, porque trabalhando por trás das cortinas a palavra final nunca é minha. Isso é algo que limita a criatividade e a tua expressão. Obviamente, tenho sempre uma palavra a dizer nas minhas colaborações, às vezes até adiciono ideias que o artista nunca teria sozinho, mas fazer isso num trabalho a solo é uma experiência muito singular, acabas por viver e morrer pela espada. Queria sentir o que era essa sensação, queria expressar-me da maneira que sentia ser mais apropriada e perceber o que é que as pessoas achavam ao conhecer de uma forma mais aprofundada aquilo que eu queria fazer musicalmente porque, realmente, é algo que as pessoas não tem tido muito acesso ao longo dos tempos. O meu cunho artístico até poderia estar presente em alguns trabalhos, mas, agora, sou só eu. Veremos, afinal, o que é que eu valho. 

A sua história faz-me lembrar a do Kanye West, que também começou a trabalhar como produtor, mas sentia que tinha algo mais a provar, nomeadamente, sair das sombras para se assumir como um artista a solo.

Sem dúvida. Não conhecendo, obviamente, o que se passa na cabeça do Kanye, porque acho que ninguém sabe (risos), atrevo-me a dizer que vem de um sítio extremamente similar. Acredito que ele também se tenha sentido constrangido por ter de ser a pessoa em segundo plano. Não digo isto num sentido egocêntrico, mas sim na vontade de ter liberdade na minha expressão artística. Além disso, é uma referência importante. Pensar que existem pessoas que também conseguiram realizar esta transição é porque é possível. Vamos ver se também sou capaz, mas acredito que sim. Apesar de ter recebido pouco feedback, uma vez que a amostra não é muito grande, não é tão fácil quando tens um portfólio maior e começas a mostrar muitas facetas diferentes. Mas, à imagem do Kanye West, tenho uma visão muito clara daquilo que quero fazer. Ele é um artista muito idiossincrático e difícil de emular, mas em relação à motivação de singrarmos tenho a certeza que será muito similar. Ele é dos meus artistas favoritos, por isso, é uma comparação que faz todo o sentido para mim.

Depois de tanto tempo na indústria, o que o motivou a lançar agora o seu primeiro disco?

Existem certos ciclos da indústria que vale a pena respeitar, em termos de sucesso financeiro. Mas em termos pessoais, já andava a trabalhar no ígneo há tempo suficiente para sentir que estava mesmo no fim da linha. Já não conseguia, nem queria adicionar nada a este trabalho. Não fazia sentido estar a tentar estender este trabalho ainda mais, especialmente porque existe essa esparrela do perfeccionismo. De começar a pensar em excesso no fechar deste ciclo e de correr o risco de nunca fechar este “nó”. Na arte, inerentemente, existe mais esse “feeling” de desistirmos do que de conclusão. É mais provável lançarmos algo porque sentimos que não temos mais nada a acrescentar do que de uma sensação de conclusão, de que o trabalho está definitivamente “fechado”. Não sendo uma pessoa que se satisfaz com muita facilidade, tenho de ter especial preocupação de não correr o risco de prolongar-me demasiado num trabalho e colocar travões a mim mesmo. 

Quando é que sentiu que era a altura certa para colocar esse travão?

Deve ter sido no início de novembro. Três meses antes do lançamento de ígneo.

E quando é que começou a trabalhar neste disco? Tem algumas raízes do disco System, que lançou em 2020.

Comecei a trabalhar não muito depois desse lançamento. Demorei um ano até que o ígneo estivesse terminado. Mas teve muitas interrupções. Trabalhei no projeto de forma algo fragmentada. Trabalhava dois meses consecutivos no álbum e depois tinha dois meses em que não lhe tocava. Tinha necessidade de trabalhar noutros projetos, porque estava a estagnar criativamente, mas também sentia que precisava de relaxar o “músculo da criatividade”. Quando cheguei ao System tinha estado a trabalhar, ininterruptamente, durante cinco anos. Acabava um projeto e partia logo para outro. Quando acabei esse disco, senti que precisava de fazer algo com calma. Também para não dar em maluco. Tinha que me permitir repouso. Sentia-me muito desgastado. Acredito que é preciso trabalhar muito para chegar longe nas nossas carreiras, mas também existe um limite, e sinto que o atingi. Foi uma pausa importante.

Durante as sessões do ígneo, sentiu que era um trabalho muito diferente daqueles que já tinha feito?

Sendo apenas eu, neste processo acabou por existir uma forma mais separada do que aquilo que estava habituado a fazer. Para mim, é muito comum, quando estou a trabalhar com outro artista, a música sair toda numa sessão. Neste caso, existiam muitos instrumentais e muitas ideias de voz, portanto, existia um processo de separação maior, trabalhava com bastante precisão em cada parte da música. Por isso, era normal recuperar batidas que tinha criado meses antes, algo que nunca aconteceu antes. 

Apesar deste ser o seu primeiro álbum a solo, contou com um leque variado de convidados. Serviu como muleta para ajudar nessa transição?

Sem dúvida, não tenho medo nenhum desse termo, até porque era algo que eu precisava. Para não cair num sítio muito isolado mentalmente, se tivesse passado este ano a trabalhar completamente sozinho, sem receber nenhum tipo de feedback, ia entrar em “parafuso” e começar a ter “visão de funil”. Sabia que, para não fazer algo demasiado fechado em mim mesmo, ia precisar de chamar outras pessoas. Fazer música de forma colaborativa é extremamente divertido, por isso é que também quis contar com mais pessoas neste disco.

Uma das grandes particularidades de ígneo são as referências à cultura pop, quando é que decidiu que estas marcas geek iriam aparecer de uma forma tão proeminente?

Era algo que queria fazer há muitos anos, mas que apenas consegui concretizar agora, numa altura em que tenho espaço para ser apenas eu, uma pessoa muito nerd. Atualmente, posso não ter tanto tempo para ver tantos filmes ou ler tantos livros, como quando era mais novo e passava dez horas consecutivas a jogar videojogos. Antigamente, acontecia pelo menos três vezes por semana (risos). Isto é algo que sempre existiu em mim, mas para aprofundar esta cultura na minha música com o grau de profundidade que pretendia tinha que ser apenas quando fizesse música minha. No álbum anterior consegui inserir algumas referências, mas não ao ponto que queria usar no meu trabalho. Queria satisfazer o meu eu dez anos mais novo. Queria ser o quão nerd eu quisesse e falar de todas as referências obscuras que pretendesse. Se tivesse de fazer vinte versos só a falar de Naruto ninguém me ia impedir.

Isso ajudou-o a ser mais aberto e frágil nas músicas?

Sem dúvida. Considero este álbum um único texto ou uma única música, mas com vários movimentos diferentes. Foi uma exploração de uma ideia única do que é ter um alter-ego rapper. Este álbum é muito sobre a ideia de ser rapper, por isso, fazia sentido fazer uma faixa única em várias secções. Só conseguiria expressar a totalidade dessa visão agora. Quando és convidado a participar na música de outras pessoas tens uma certa limitação, mas, aqui, tive muito espaço e a oportunidade de explorar aquilo que bem queria. Com a ajuda desses elementos auxiliares permitiu-me falar de inúmeros assuntos que queria dizer e queria dizer dessa forma. Por exemplo, na música Estúpido, existe uma linha onde faço uma referência ao anime One Piece, e estou a falar sobre ser “elástico”, que é o super-poder do personagem principal, Luffy. Se tivesse que fazer essa barra na música de outra pessoa teria que ser, por exemplo, a plasticina.

Também é uma questão de conhecer a sua audiência?

Sim. No máximo, se calhar teria que falar do Sr. Fantástico, do Quarteto Fantástico.

Que é algo que o Mike El Nite faz no seu disco.

Sim, ele conseguiu fazer esse jogo. Mas como tinha espaço para mim, decidi fazer referência ao Luffy. Tinha oportunidade de estar a falar para todos aqueles que gostam do meu trabalho por isso tinha esse liberdade. 

Se calhar hoje já não acontece tanto, mas a cultura geek era associada a um lado mais frágil e sensível das pessoas. Como foi conciliar esta realidade com um estilo musical, o rap, que é tão ligado a uma postura mais dura e víril?

Acho que é uma questão de geração, muitos dos artistas com maior proeminência atualmente se calhar são aqueles que viam conteúdos como Dragon Ball quando eram mais novos, como é o meu caso,  acabamos por ser vítimas destas referências. Se calhar fazer uma referência ao Vegeta durante os anos 1990 era algo um pouco bizarro. Agora, existe mais espaço para fazer este tipo de música e colegas suficientes que conhecem este tipo de personagens. Nesse caso, ou somos os dois fracos ou então é porque é algo normal, e quero acreditar que se trata mais do segundo caso e fico muito feliz que assim o seja. Sempre achei que era bizarro uma cultura de conhecimento que, na sua essência, é o que é ser nerd, ter um conhecimento enciclopédico sobre jogos, filmes ou banda desenhada… ou como uma coisa negativa. Este sentimento vem de um sítio de masculinidade tóxica, onde nos afirmam que ser homem é ser adepto de futebol ou gostar de beber cerveja. Tu podes gostar disso tudo, mas também podes gostar de ver o Homem Aranha nas tuas horas livres e está tudo certo com isso. Sendo também o hip-hop um sítio ainda de muita masculinidade tóxica e da exaltação da hiper-virilidade, ainda bem que todo este sentimento está a acabar. É muito saturante e muito limitador, uma pessoa nunca é só uma coisa. Nunca somos só o “maior disto tudo”. Ser rapper envolve esta questão de ser confiante, crias uma versão hiperbólica de ti mesmo. És o rei e os outros são todos os peões. Apesar de nem todas as pessoas acreditarem totalmente nisto, sempre achei que isso era extremamente foleiro, à falta de melhor palavra. Estou muito contente com a forma como o rap evoluiu e ainda bem que sou desta geração. Se calhar se fizesse hip-hop há dez anos atrás isto não ia correr tão bem.

Acha que agora existe mais espaço para esta sensibilidade no Hip-hop, nomeadamente em Portugal?

Sem dúvida. Com isto não quero dizer que rappers há dez anos atrás não o eram. Claro que há muitas coisas de exposição, por exemplo, uma das minhas faixas preferidas do hip-hop português é o Hereditário do Sam the Kid. Uma faixa muito pessoal e onde ele se fragiliza imenso. Obviamente, isso também acontecia, ser mais exposto não é algo que acontece apenas agora. Mas acho que, atualmente, é algo que existe cada vez mais. É mais provável artistas falarem de questões de saúde mental do que antigamente, e ainda bem. Com isto, também não quero dizer que um músico só tenha de falar destas questões, cada um fala do que quiser, mas acho que agora, como é visto com melhores olhos, é mais fácil abordar estas questões. Novamente, isto também acontecia antes, mas as pessoas não estavam tão bem equipadas para ouvir estas ideias quanto estão agora.

Outra particularidade deste disco são as influências da música tradicional portuguesa. Mesmo não surgindo com tanta evidência como, por exemplo, nos trabalhos do Stereossauro, existe um certo destaque, nomeadamente, na entrada do disco, com o som de uma guitarra portuguesa.

Tentei fazer uma mescla da portugalidade com outras influências que gosto, como a nipónica, como forma de mostrar as minhas raízes, mas também para conseguir recontextualizar esta realidade de forma a que alguém que é português e experiência a cultura de uma forma imediata consiga perceber todos estes elementos. Tento cada vez mais incorporar ideias portuguesas na minha música e no futuro pretendo faze-lo de forma mais óbvia, se calhar até fazer algo como o Stereossauro faz, de quem sou muito fã e que até colaborei no seu último trabalho. Além disso, tendo um background em música clássica ainda se torna uma escolha mais lógica para mim.

De onde surgiu a sua ligação com a música tradicional portuguesa?

Diria que existe um contexto tanto pessoal e íntimo, mas também, mais formal, devido aos meus estudos. Sem dúvida que os meus estudos fazem uma parte gigantesca dessa ligação, mas nunca tive vergonha de gostar daqueles elementos “menos bem vistos” da nossa cultura. Adoro música pimba. Não tenho medo nenhum de dizer isso. Não sendo o mesmo estilo, mas existindo nesse universo, já trabalhei com a Ana Malhoa e tenciono trabalhar mais e com mais pessoas dessa área. Adorava. Para mim, faz todo o sentido que eu incorpore estes elementos neste disco. Quem me ajudou imenso nesse aspeto foi o Mike el Nite, que é alguém que consegue realizar isso com extrema excelência e me ajudou muito a não ter receio de expor isto ao público. Antigamente, quase que não era visto como uma coisa fixe, não só dentro do hip-hop, mas existia uma vontade de ter soar mais americano. Obviamente, o revivalismo do rock português, nos últimos tempos, ajudou imenso. Nomeadamente, os trabalho de B Fachada ou de Capitão Fausto, eles trouxeram esses sons para o mainstream, assumindo essa cena retro-tuga. Espero que o hip-hop português continue cada vez mais a seguir essa direção porque é terreno muito fértil para explorar.

No final do ígneo, deixa um desafio ao ouvinte para voltar a ouvir o seu disco. Acha que é preciso ouvir mais que uma vez para o compreender na integra?

Espero que o disco também tenha muito valor na sua primeira impressão. Mas, da maneira como eu escrevo, acho que se ouvirem o disco várias vezes, o ouvinte vai descobrir cada vez mais referências. Um pequeno exemplo, a propósito da música Estúpido, um utilizador do Genius, uma página com letras e interpretações de músicas, veio falar comigo sobre uma das frases da música e, ao longo do tempo, fui recebendo várias mensagens dele a falar sobre os vários símbolos que ia descobrindo. Este é um desafio que gosto de lançar às pessoas, confesso que escrevo de uma forma um pouco densa e que recai numa forma muito cacofónica de abordar a linguagem, portanto, para compreender o que estou a dizer e para sentir as músicas na sua totalidade, acho que é preciso ouvir várias vezes. Se apanhares tudo à primeira fixe, louvo-te. Não faço a minha música para ser difícil, gostava que apanhasses a maior das coisas à primeira, mas sei que há elementos que só vais descodificar à segunda ou terceira tentativa. Por isso, para mim, senti que fazia sentido terminar o disco com esse bitaite.