Inteligência Artificial. Quando o real e o imaginário se confundem

Inteligência Artificial. Quando o real e o imaginário se confundem


E se, ao vermos um vídeo na internet, não conseguíssemos perceber se é ou não real? E se bonecas virtuais pudessem influenciar o que vestimos, o que comemos e para onde viajamos? A inteligência artificial abriu a porta para um outro nível de criação. E talvez haja motivos para estarmos preocupados.


A tecnologia tem feito com que o mundo evolua sem que tenhamos tempo de digerir algumas transformações. Com ela temos descoberto “capacidades” extraordinárias, ao mesmo tempo que nos desafiamos. Não é novidade que a inteligência artificial tem ocupado grande parte daqueles que são os desafios tecnológicos do século XXI, promovendo uma “substituição” das pessoas por robôs.

No futuro, cada vez mais, viveremos lado a lado. Se há uns anos nos dissessem que uma personalidade que não existe no mundo real ficaria famosa na internet, sendo procurada por inúmeras marcas, talvez não acreditássemos. Mas os tempos mudam e o mundo digital tem-nos mostrado que poucas são as barreiras à criatividade e ao marketing, principalmente na Coreia do Sul.

Olhamos para as fotografias e julgamos estar perante uma jovem oriental comum, como tantas outras. Uma rapariga de olhos rasgados, pele “perfeita”, cabelos negros, quase sempre divididos por duas longas tranças e roupas coloridas que nos remetem para as atmosferas mágicas dos animes.

Rozy Gram não é uma pessoa real, apesar de ser uma das influencers mais populares do Instagram, com 122 mil seguidores. E, por ser um fenómeno, tem quebrado barreiras, mostrando que “a realidade também se transforma”. Se desde o ano passado tem sido requisitada por inúmeras marcas, agora, Rozy terá mesmo a sua própria música, acompanhada com um videoclipe. Conforme anunciou a empresa Sidus Studios X, a produção musical ficará a cargo de Jung Jae-won, conhecido como Vanilla Man, do duo Vanilla Acoustic, que também produz canções para Bolbbalgan4 (antes formado por duas artistas, e atualmente nome do ato a solo da cantora Ahn Ji Young), informou o Korea Herald.

O fenómeno Rozy Nos primeiros meses da sua “vida” no perfil do Instagram, ninguém se apercebeu que esta não passava de uma “boneca virtual”. Com 22 anos, “iniciou a sua carreira”, ou foi “criada”, no ano passado em computadores pelo Sidus Studio X – empresa que lida com animações e ilustrações digitais para as necessidades da sétima arte e do marketing e que decidiu criar o sua própria influenciadora virtual no verão.  

Além das fotografias estrategicamente planeadas e editadas, com poses que já lhe parecem características, Gram “visitou”, só em 2021, lugares como África, Espanha, Itália, EUA, Egito, entre muitos outros. No fim do ano passado, alegadamente, já existiam mais de 100 patrocinadores na “fila de espera” que gostariam que Rozy anunciasse os seus produtos.

Quanto ao seu estilo e público, a boneca, segundo os seus criadores, deseja chegar até à “geração milénio”. A técnica que usam, de modelagem 3D, permite à influenciadora quase “800 poses e diferentes expressões faciais”. Além da colaboração que tem com empresas de cosméticos e moda, a “jovem” também tem estado lado a lado com fabricantes de automóveis e só no ano passado assinou oito acordos exclusivos de cooperação de marketing.

Em 2021, o estúdio responsável pela sua criação, esperava faturar cerca de mil milhões de won coreanos, cerca de 600 mil euros. Fossem quais fossem as restrições no mundo da covid-19, Rozy nunca seria “interdita” de viajar, mostrar lugares bonitos, tirar fotografias, daí o seu grande sucesso e interesse. Segundo os estúdios, esta terá para sempre 22 anos, continuará “perfeita” em qualquer ocasião e ninguém poderá “desenterrar um escândalo do seu passado e manchar a sua imagem”.

A primeira de muitas  Além de Rozy, já existem muitas outras influencers que têm despertado a curiosidade de muitos. Rae, da Singapura, é outra estrela virtual criada graças a imagens geradas por computadores, conhecida por ter sido a cara da Audi na estreia online do Audi A3. E há ainda a coreana Rui, desenvolvida por uma empresa local – mas, ao contrário das outras, não tem uma aparência de “bonequinha”.

O seu rosto é baseado num ser humano de verdade, digitalmente realizado com a tecnologia deepfake – sistema de reconhecimento facial profundo criado por um grupo de investigação do Facebook que identifica rostos humanos em imagens digitais. Rui é bastante ativa no Youtube, plataforma onde partilha vídeos e já possui mais de 44 mil subscritores. Aí, a influencer virtual mostra o seu dia-a-dia, as suas viagens, compras, os seus hobbies e a sua casa.

Há algum tempo que as empresas de tecnologia coreanas vêm direcionando a sua atenção para a mistura do metaverso, da inteligência artificial e dos media sociais. Há já planos de se criar um serviço que permita às pessoas “usar os seus próprios rostos nos vídeos que criarem digitalmente”.

Na última feira de tecnologia CES, em Las Vegas, a Samsung revelou a plataforma digital inteligente “Neon“, apresentando avatares de diferentes etnias. A rival LG também se chegou à frente, criando, no início do ano passado, uma humana artificial chamada Reah Keem. Também Kim Teak-jin, CEO da empresa de gaming NCSoft, prevê que no futuro, os “atores digitais” irão entrar em filmes. 

A mais recente campanha da Calvin Klein escolheu o rosto de modelos: Bella Hadid e Lil Miquela Sousa. Contudo, há uma pequena diferença entre elas. Lil Miquela não existe, é uma influencer e cantora criada digitalmente pela empresa Brud. A personagem tem mais de 1,6 milhão de seguidores no Instagram e mais de 80 mil utilizadores escutam, mensalmente, as suas canções no Spotify.

Já a rede de fast-food KFC lançou recentemente uma versão moderna e digital do seu fundador, o Coronel Sanders. O modelo foi criado a partir de fotos de celebridades e influencers do Instagram, para criar um visual que atraísse likes e seguidores online. “Foi a nossa oportunidade de brincar um pouco com o mundo da publicidade do qual somos parte”, afirmou Steve Kelly, diretor digital e de media do KFC, ao The New York Times.

A tendência estende-se a outras áreas do entretenimento. A Xinhua, empresa estatal chinesa, criou uma apresentadora virtual para o seu noticiário que tem a vantagem de “poder  trabalhar 24 horas por dia”. A Soul Machines, empresa do cientista Mark Sagar, lançou professores digitais para responder às dúvidas de alunos.

Segundo Alexis Ohanian, cofundador da plataforma Reddit, que agora trabalha no setor dos influenciadores digitais, existem muitas vantagens na utilização destas tecnologias: “Nas gravações, por exemplo, um avatar não precisa de gravar imensas vezes. Com os personagens virtuais as empresas não precisam de lidar com contratos e regras, como com as pessoas reais”, elucidou à mesma publicação.
 
O universo do K-Pop virtual Apesar de Rozy ser considerada a “primeira influenciadora virtual sul-coreana”, abrindo caminho para muitas outras, o universo do K-pop já havia conhecido o grupo Eternity no ano passado. Formado por “11 idols hiper-realistas”, também criadas a partir da inteligência artificial, a girls band lançou a sua primeira música – ironicamente chamada I’m real, em português Eu sou Real – em março e depressa se tornou num fenómeno na Coreia do Sul. O Eternity foi criado pela Pulse9, uma empresa de tecnologia sul-coreana focada em inteligência artificial e a companhia afirmou que este grupo de K-pop é o seu primeiro projeto para “investigar e melhorar a tecnologia facial”.

No lançamento da banda, Cedar Bough Saeji, professora e doutora em Estudos Asiáticos, afirmou que “uma pessoa virtual pode ter uma voz ou coreografia perfeitas, mas isso nunca passará de um truque”: “Penso que um grupo completamente virtual vai atrair determinada demografia, assim como há pessoas que ‘se casam’ com bonecas… Mas nunca se pode substituir por ídolos de verdade e, uma das coisas que nos faz amá-los, são as suas peculiaridades. Os artificiais serão sempre artificiais”, defendeu, interrogando como conseguiremos nos ligar emocionalmente com este tipo de robôs.

Tanto Rozy como o grupo Eternity, seguiram a tendência do conjunto K/DA, um grupo feminino virtual de K-pop que consiste em quatro versões das personagens do jogo League of Legends, Ahri, Akali, Evelynn e Kai’Sa, cuja representação das integrantes é efetivamente virtual, contudo, com vozes de artistas humanas. Tal como também é o caso do grupo musical Aespa, formado por cantoras reais – Karina, Winter, Giselle e Ningning – que acompanham os seus respetivos avatares digitais.

Numa conferência de imprensa no ano passado, que assinalou o seu comeback, com o lançamento do single Next Level, em português Próximo Nível – que colecionou 13 milhões de visualizações em menos de 10 horas, acompanhado por um videoclipe de estilo futurista num cenário espacial – as artistas explicaram que os seus avatares são uma espécie de “alter-egos” delas próprias. “Encontrar avatares e passar por aventuras com eles é um conceito sem precedentes. Que bom que viemos para construir uma cor e um estilo únicos graças a este novo conceito”, admitiu Winter, segundo o jornal The Korea Times.

Perigos e vantagens Para Saeji, o uso desta “tecnologia complexa” é uma fração de como a Coreia do Sul investe em tecnologia e, assim, “pode destacar o seu potencial para iniciativas futuras em outras áreas”. “Não há razão para não presumir que esta tecnologia possa espalhar-se, mas ela realmente já existe em termos de modelos virtuais”, começou por explicar. “O novo uso de inteligência artificial no K-pop é uma forma natural de continuação das celebridades virtuais (como os influencers virtuais). Isso é possível porque a tecnologia evoluiu. Os coreanos têm sido há bastante tempo pioneiros da tecnologia (companhias tecnológicas às vezes usam a Coreia como um mercado de teste). Por isso, se isto descolar da Coreia, acredito que o veremos em muitos outros mercados”, admitiu a especialista.

Jogo de enganos? Mas depois do lançamento da música Eu Sou Real, depressa se percebeu que ao invés de “deslumbrar”, este tipo de criações pode “assustar”. Muitos internautas utilizaram a caixa de comentários do vídeo postado no Youtube para expressar o seu espanto. Uns considerando as bonecas “bizarras”, outros consideraram mesmo que isto pode ser perigoso para os artistas em ascensão. Respondendo às questões, o próprio canal publicou uma nota, afirmando compreendê-las, mas não havendo motivo para preocupações: “Entendemos as vossas preocupações, no entanto, não temos a intenção de prejudicar ninguém. Estamos simplesmente a dar a conhecer os recursos da tecnologia de inteligência artificial. Prometemos voltar com tecnologia aprimorada”, lê-se na nota. 

Ao The Korea Times, a presidente da empresa Pulse9, Park Ji-eun, sublinhou que lançou o Eternity por acreditar que as cantoras “pudessem simbolizar uma revolução com suas ‘qualidades únicas’”: “Ao contrário dos cantores humanos, os avatares criados a partir da inteligência artificial podem expressar-se livremente e opinar sobre diversas questões sociais porque são menos vulneráveis a comentários maliciosos e críticas”, defendeu a CEO.

Outra das preocupações dos internautas assenta nos riscos da forma como os vídeos são utilizados ou divulgados. Quanto a isso, a professora Saeji afirmou na conferência de imprensa que a preocupação com uso de imagem já assola as pessoas reais, mas ainda não há uma resposta sobre as personagens virtuais. “Aqui nós temos uma preocupação semelhante, mas agravada por implicações éticas, a questão do consentimento, no caso do trabalho virtual. Será interessante ver o que é que a sociedade vai decidir sobre os limites e proteções ao redor deste tipo de tecnologia”, comentou. 

Mas desengane-se quem considera que é só de imagens que se faz o perigo. E se através da tecnologia conseguíssemos reproduzir a voz das pessoas, mesmo que estas não falem ou já estejam mortas? No ano passado, o lançamento do documentário Roadrunner: Um filme sobre Anthony Bourdain, mostrou que a tecnologia de reprodução da voz humana avançou de uma maneira em que é quase impossível distinguir um discurso real de outro criado digitalmente.

Nele, Morgan Neville usou inteligência artificial para transformar frases que Bourdain escreveu, mas nunca disse, em narrações em off. E, por não ter especificado o que era original e o que era fake, o cineasta foi acusado de “enganar o público”. Por sua vez, o também cineasta Jordan Peele, do aclamado filme Corra!, criou um vídeo do ex-Presidente americano Barack Obama usando a tecnologia deepfake, que misturou imagens reais com falas falsas, para alertar sobre os riscos do fenómeno. “Estamos a entrar numa era em que os nossos inimigos podem fazer com que qualquer um pareça dizer qualquer coisa”, ouve-se pela voz fake de Obama.

O perigo reside, por isso, na possibilidade de replicar vozes reais para, por exemplo, fins políticos, fraudes ou ataques a reputações. Mas, ao que parece, este é um mercado em ascensão. De acordo com dados do instituto de pesquisa MarketsandMarkets, o setor movimentou 8,3 mil milhões de dólares em 2021 e deverá alcançar 22 mil milhões até 2026 – uma área que inclui assistentes virtuais como Siri, da Apple, e Alexa, da Amazon.