Sidney Poitier. O “Martin Luther King” da sétima arte

Sidney Poitier. O “Martin Luther King” da sétima arte


Na adolescência interrogava-se sobre o seu destino: será que estaria “escrito” que passaria a vida a lavar pratos? Estava enganado. Sidney Poiter é um dos nomes que ressoa no pensamento cada vez que ouvimos falar da história de Hollywood e dos movimentos antirracistas da década de 60.


Sidney Poitier, que ajudou a quebrar as barreiras de cor em Hollywood, nas grandes telas, antes de se tornar um dos maiores atrativos de bilheteira dos anos 60 em filmes como O Sol Tornará a Brilhar, Adivinha Quem vem Para Jantar e Aconteceu no Sábado, morreu na sexta-feira passada, aos 94 anos. 

O primeiro homem negro a ganhar um Óscar de Melhor Ator, com o filme Uma Voz nas Sombras, em 1963 – onde faz o papel de um trabalhador que ajuda freiras brancas a construir uma capela – e um modelo exemplar para as gerações seguintes, morreu nas Bahamas. A notícia foi dada pela imprensa local do próprio país do qual o ator e realizador era oriundo e onde cresceu – primeiro pelo site Eye Witness Bahamas, que cita o ministro dos Negócios Estrangeiros, Fred Mitchell, depois pela NBC News que confirmou o óbito junto de uma fonte da família do próprio Poitier. “Perdemos um ícone, um herói, um mentor, um combatente e um tesouro nacional”, escreveu o vice-primeiro-ministro das Bahamas na sua página da rede social Facebook, sem mencionar mais detalhes sobre a morte.

Uma infância difícil Alto e majestoso, com uma voz baixa e sedutoramente suave, Poitier, que projetava uma dignidade silenciosa em papéis que destruíram estereótipos, nasceu em Miami a 20 de fevereiro de 1927, quando os seus pais visitaram os EUA, tendo crescido nas Bahamas. Em adolescente, mudou-se de novo para os EUA, Nova Iorque, contudo, as coisas não correram bem. Aos 13 anos largou a escola e começou a trabalhar como ajudante de escavadores de valas de água e, mais tarde, como operário num depósito. Dois anos depois, em 1943, o jovem e mais alguns amigos foram presos durante a noite por roubar espigas de milho, e o seu pai, temendo que este pudesse ter mais problemas, enviou-o para morar com o seu irmão mais velho, Cyril, em Miami. Foi precisamente aí que, enquanto trabalhava como arrumador de carros, Poitier lidou com “o racismo institucionalizado”. Para escapar desse cenário “assustador”, o ainda adolescente decidiu viajar rumo à cidade de Nova Iorque. Chegando sozinho com menos de quatro dólares no bolso, na altura com 16 anos, dormia em casas de banho públicas pagas e no telhado de um edifício. Mais tarde, arranjou emprego como copeiro em restaurantes, onde ganhava cinco dólares por semana. 

Depois de um período no Exército – Poitier mentiu sobre a sua idade para entrar, dizendo que tinha 18 ao invés de 16 – em 1944, este voltou ao restaurante Harlem, onde já havia trabalhado e recuperou o seu emprego a lavar pratos. Um dia, enquanto procurava anúncios no Amsterdam News, um jornal negro, leu: “Procuramos atores para um Pequeno Grupo de Teatro” – era um anúncio do American Negro Theatre, grupo de teatro do Harlem ao qual também pertenceu o seu amigo Harry Belafonte, bem como outros nomes do cinema e teatro negro americanos como Ruby Dee ou Ossie Davis. ​Numa entrevista ao The Times, em 1992, o artista lembrou que, na audição, recebeu o argumento e disseram-lhe para o ler em partes. Contudo, com apenas um ano e meio de ensino, este lia e escrevia com “muita dificuldade” e ainda tinha um forte sotaque das Índias Ocidentais.
 
A “luta” pela representação Quando Frederick O’Neal, um dos fundadores do teatro, o acompanhou depois até à porta, alertou-o para que este “não desperdiçasse mais o tempo das pessoas” e interrogou ainda o porquê do jovem não “arranjar um emprego a limpar pratos”. “Fiquei abalado com o comentário e lembro-me de ter pensado: ‘Será que há alguma coisa em mim que me está a dizer que o meu destino será mesmo como copeiro?’”, contou o ator na mesma entrevista. Mas a paixão era maior e, determinado a tornar-se um ator, mesmo que apenas para provar a O’Neal que poderia ir mais longe, Poitier comprou um rádio de 13 dólares e passou a estar horas a ouvir os locutores, imitando a pronúncia e os ritmos de fala com o objetivo de se livrar do sotaque. Para melhorar a sua leitura, passava o máximo de tempo possível a ler jornais, com o colega mais velho no restaurante que lhe serviu de “tutor”. Seis meses depois, voltou ao American Negro Theatre para fazer uma nova audição e, apesar da sua prestação não ter sido elogiada, o jovem foi aceite “à experiência” durante três meses – um acordo que acabou por se estender quando este foi contratado como segurança do teatro em troca de aulas de atuação.

Depois de nove meses, tornou-se o substituto de um ator desconhecido, Harry Belafonte, o protagonista na produção anual dos alunos. Certa noite, no ensaio, Poitier teve que substituí-lo e um produtor da Broadway que se encontrava presente, impressionou-se com ele, convidando-o para um pequeno papel numa versão totalmente negra da comédia grega Lysistrata na Broadway. Após quatro apresentações, a peça acabou por chegar ao fim. Contudo, foi o necessário para se começar a ouvir o nome: Sidney Poitier. Foi então contratado como substituto na companhia de estrada do espetáculo de sucesso da Broadway, Anna Lucasta, uma peça sobre uma família polaca que se transformou numa história sobre uma família negra.

Os anos “gloriosos” e a marca na história O ator fez a sua estreia no cinema em 1950, interpretando um jovem estagiário numa enfermaria de um hospital municipal em Falsa Acusação, um filme pensado sobre o olhar explosivo do diretor Joseph L. Mankiewicz sobre o preconceito racial abrilhantado por Richard Widmark. Contudo, só “se fez notar”, cinco anos depois, no filme Sementes de Violência, realizado por Richard Brooks. Mal sabia Poitier que o seu nome ficaria marcado na história do cinema para sempre. 

A verdade é que, ao longo da sua carreira de mais de 50 filmes, o artista foi, muitas vezes, o pioneiro. Além de ter quebrado barreiras ao vencer um Óscar, ainda antes disso, em 1957, tornou-se também no primeiro negro a ganhar um prémio no Festival de Cinema de Veneza, pela participação no filme Sangue Sobre a Terra. Foi ainda o primeiro negro nomeado para a categoria de melhor ator nos Óscares, em 1958, depois de entrar em Os Desafiadores. Em 2002, tornou-se igualmente o primeiro artista negro a receber um Óscar honorário pelo conjunto da obra de mais de 50 filmes. “Antes de Sidney, os atores afroamericanos tinham de assumir papéis secundários nos grandes estúdios”, para que fosse “fácil cortá-los em certas partes do país”, recordou Denzel Washington nesse ano, quando Sidney Poitier recebeu o prémio. “Mas não se podia cortar Sidney Poitier de um filme de Sidney Poitier”, concluiu o também ator na cerimónia da Academia. Além disso, o ator foi, “o primeiro homem negro” a beijar uma mulher branca num filme e dar uma estalada a um homem branco na sétima arte. 

Quando ganhou o Óscar de Melhor Ator, o movimento dos direitos civis estava a fazer-se sentir nos EUA e o seu percurso parecia já estar escrito “nas estrelas”. Tal como refere o New York Post a sua carreira artística ligou-se “à integração pacífica dos objetivos do movimento negro da época”. “É uma escolha, é uma escolha clara. Se a sociedade fosse diferente, gritaria para os céus a pedir para representar vilões, para lidar com imagens diferentes da vida de um negro. Mas, raios parta, o que seria de mim se o fizesse nesta altura do campeonato”, referiu numa entrevista em 1967, período em que se tornou num dos atores mais bem pagos de Hollywood, com filmes a esgotar bilheteiras.
Em plena época de segregação racial, Sidney Poitier, marcou, por isso, a geração afro-americana do seu tempo ao se tornar num verdadeiro ícone antirracista, de “mão dada” com a luta política de figuras como Martin Luther King e Rosa Parks. “Tinha um sentido de responsabilidade, não só para comigo e para com o meu tempo, mas, certamente, para as pessoas que representava”, reconheceu numa entrevista em 2008. Por isso foi apelidado de “Martin Luther King” dos filmes, por vários biógrafos.

Em 2009, foi a vez do Presidente Barack Obama lhe conceder a Medalha Presidencial da Liberdade. Em 2020, o Academy Museum of Motion Pictures quis dar o seu nome à entrada do edifício – o Sidney Poitier Grand Lobby. 
O ator foi também realizador, tendo-se estreado em 1972 com o western Um Por Deus Outro Pelo Diabo, sendo também responsável por comédias como Dumb & Dumber, com Richard Pryor e Gene Wilder, de 1980. Além da sétima arte, Poitier, foi, ao mesmo tempo, financiador do movimento dos direitos civis negros, tendo participado na Marcha sobre Washington. Entre 1997 e 2007, foi embaixador não-residente das Bahamas no Japão.

O primeiro casamento de Poitier, que terminou em divórcio em meados da década de 1960, foi com a dançarina e modelo Juanita Hardy, com quem teve quatro filhas. Em 1976, casou-se novamente, com a atriz e modelo canadiana Joanna Shimkus, com quem teve mais duas filhas.