A vida brusca

A vida brusca


Muito mais do que uma obra auto-referencial, Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos deixa testemunho de um tempo, que continua a ser o nosso, de precariedades várias…


Tomás é um escritor em crise, bloqueado, tal como a sua relação com Elsa, pintora e trepadeira social – conhecer as pessoas certas, frequentar os lugares certos, mote e modo de vida –; Marvel é o parceiro de Tomás para este trabalho que não desata. Argumentista de BD, esforça-se por explicar (ainda em 2000, data da primeira edição deste livro…) que escrever uma BD para adultos não implica fazer pornografia. Como na literatura, a BD explora todos os universos, uma vezes melhor, outras, pior – como em tudo, incluindo a literatura… 

Pedro Brito (Barreiro, 1975) também desenhador, assina o argumento, estando o desenho a cargo de João Fazenda (Lisboa, 1979), dois autores então muito jovens e que contribuíram, cada um a seu modo, para que os quadradinhos nacionais dessem um salto assinalável nas últimas duas décadas.

Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, a obra de hoje, é uma história desenhada que se desenvolve entre a crise criativa e a crise conjugal de Tomás, temas recorrentes, grandes temas, tendo obtido um assinalável eco há vinte anos, com o Prémio Amadora BD para o melhor álbum português, no acanhado meio bedéfilo nacional, notoriedade a a que não é alheio o já então singular talento de João Fazenda, como o tempo se encarregou de comprovar, não apenas como autor de BD, mas também como ilustrador e grafista.

Muito mais do que uma obra auto-referencial, Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos deixa testemunho de um tempo, que continua a ser o nosso, de precariedades várias: a relacional, em que tudo é provisório, breve e egoísta, a começar pelo relacionamento amoroso, e a precariedade da BD em particular, mas também o logro duma nebulosa que dá pelo nome de arte contemporânea, em que o rei tantas vezes vai nu, a irritante afectação que se lhe associa, para não falar, permita-se a bucha, da mercadoria em que se tornou, aparente garante de investimento seguro para a vampiragem da finança. O descrédito é grande e a irrelevância também. Todas as lagostas de Berardo não valem a moldura que encaixilha o Bruegel de Salgado, em boa hora transitado para o Museu de Évora. 

Enfim, uma oportuna reedição, enriquecida com entrevista aos autores por André Oliveira, posfácio de Pedro Moura, esboços e composição de pranchas; um argumento que não envelheceu, realista com um toque de maravilhoso – a mulher dos sonhos dele, Tomás, e o estranho papel de uma planta tão feia quanto benfazeja. É feia? Sim, mas como disse num verso o divino Carlos Drummond de Andrade, a propósito duma flor pouco galharda: “Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” Últimas palavras para o trabalho de Fazenda: cores (apenas duas) fulgurantes, um desenho irresistivelmente dinâmico e pessoal, um traço brusco, como o podem ser a vida, as relações, os sentimentos, os desafios.

Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos
Texto Pedro Britoome Desenho João Fazenda
Editora 2.ª edição, Comic Heart e A Seita, Prior Velho, 2021 

 

BDTECA

É Natal! Para crentes e não crentes, e para quantos têm um Norte, Com votos de Boas Festas, aqui fica um Presépio desenhado por Fernando Bento (1910-1996), um homem dos jornais e das revistas, do Diário de Lisboa ao Cavaleiro Andante – ambos de óptima memória – extraído do seu primeiro livro, A Última História da Xerazade (E.N.P., Lisboa,1944), em que deu brilho às palavras de Adolfo Simões Müller. 

Abecedário
T, de Tintin (Hergé, 1929). A caminho do centenário – e com exposição do autor na Gulbenkian –, o repórter que não escreve, trotamundos na companhia do insdeparável fox-terrier Milu; um jovem íntegro, a própria face da pureza que não se exime a aplicar um uppercut bem puxado num qualquer patife. De Tintin no País dos Sovietes até Tintin no Tibete ou As Jóias da Castafiore, que extraordinário percurso.

LIVRO
O Amor Infinito que Te Tenho e Outras Histórias, de Paulo Monteiro.
Já em quarta edição, voltamos a falar desta esplêndida obra de BD, um livro cheio de amor, sob as várias formas que este pode ter. Poesia impura, da melhor. (Edições Polvo)