Este texto nasce do cruzamento aleatório de dois acontecimentos. A chegada ao cinema do novo filme de Pedro Almodóvar, Madres Paralelas, e a divulgação das conclusões preliminares de um grupo de peritos das Nações Unidas sobre a discriminação de Pessoas de Ascendência Africana em Portugal.
No filme, Janis (personagem interpretada por Penélope Cruz) vive a necessidade absoluta da verdade: tanto a que não queria encontrar sobre a sua vida, como a que procurava sobre a vala comum onde estavam enterrados os mortos do franquismo na sua aldeia.
No relatório, o grupo de trabalho diz estar preocupado com a “prevalência de discriminação racial e a situação dos direitos humanos das pessoas de ascendência africana em Portugal”, sublinhando que a “identidade portuguesa” continua a ser definida pelo seu passado colonial e o seu envolvimento direto no tráfico de pessoas escravizadas.
Num e noutro caso, há duas conclusões: todos carregamos um património genético; e todos precisamos de saber a verdade sobre esse passado para poder escolher livremente o futuro. De qualquer forma, negá-lo encerra perigos imprevisíveis.
A sociedade portuguesa é herdeira de um passado colonial. E mesmo desmontado o império, construímos a democracia sem espreitar os monstros que se esconderam debaixo da cama e continuaram cantar baixinho o seu fado tropical:
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo
(além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…” (1)
Tal como o Estado Espanhol tem de desenterrar mortos de valas comuns, Portugal tem de enfrentar o seu passado colonial. Reconhecer que no seu ADN há glória e terror, séculos de genocídio, tortura e escravatura, uma geração a cujo sacrifício tiramos o sentido, mortos de uma guerra que não devia ter existido, traumas enterrados vivos nas histórias por contar em nome de uma reconciliação que nunca chegou.
Portugal não é apenas um país onde existe racismo estrutural, é um país semeado em cima desse substrato. É uma ferida imensa que nos atrapalha o futuro, que nos nega, porque recusa a identidade capaz de servir um país livre, soberano e democrático: a que reconhece que “tuga é ser Criolo, e ser Mwangope é a nossa música. Tuga é ser o Dino, é ser Amália, a escolha é múltipla” (2).
O peritos confirmaram. “Foi surpreendente ver como a identidade de Portugal permanece agarrada a uma narrativa colonial e até a ideia de diversidade de linguagem não é vista como algo forte, mas tornou-se uma fonte de pureza de dialeto e para menorizar estudantes baseada não no seu intelecto, mas no tipo de língua que falam”.
Ser tuga tem de ser – só pode ser – o que o GSON diz: uma escolha múltipla. Se só a verdade sobre o passado pode trazer reconhecimento e libertar-nos para sermos o país que na realidade somos, vamos a ela. Sem medos. Porque o pior é viver na corda bamba.
(1). Fado Tropical, Chico Buarque
(2). 3,14 GSON feat. Sam The Kid
e Slow J
Deputada do Bloco de Esquerda