O Burlão nas Índias
Texto Ayroles
Desenho Guarnido
Editora Ala dos Livros, Benavente, 2021
Não tenhamos medo das palavras: O Burlão nas Índias, de Ayrolles e Guarnido, é obra-prima da narrativa sequencial por imagens, vulgo banda desenhada (ou quadradinhos). O ponto de partida é uma novela de Francisco de Quevedo, La Vida del Buscón (1626), escrita no Século de Ouro (entre os reinados de Carlos V e Felipe IV), em que a Espanha é a maior potência universal. É o tempo de Cervantes e do Dom Quixote, que representa o estertor do ideal medieval cavaleiresco, quando o comércio burguês conhece um definitivo impulso (muito bem retratado no livro), e o mundo é uma vasta Barataria sem lugar para cavaleiros-andantes. Reflexo disso mesmo é o surgimento da novela picaresca, com o Lazarilho de Tormes (1554), de autor anónimo, inaugurando um género propriamente castelhano – embora com algumas extensões fora de portas, como entre nós o do grande Aquilino Ribeiro com o seu Malhadinhas (1922) –, em que o protagonista é um descarado e triunfador vigarista. Por isso, um pensador notável como Gregorio Marañón podia confessar no fim da vida, num prefácio ao Lazarilho, que embora tocada pelo génio, execrava a novela picaresca pelo que continha de glorificação dos maiores patifes: “«É uma das misérias da arte”, escreveu a propósito. Mas o picaresco ganharia o favor do público e do Tempo, e não é difícil saber porquê: num mundo socialmente estratificado, em que a uns poucos, a nobreza e os príncipes da Igreja, estava reservada a opulência dada pelo comércio e pela rapina nas Índias (as Américas), uma imensa mole humana esgatanhava-se das alfurjas de onde provinham, simplesmente para não morrer de fome – outro aspecto muito bem focado aqui.
O Burlão nas Índias tem um argumento original brilhantíssimo do occitano Alain Ayrolles (Saint-Ceré, 1968) e desenhos de grande mestria do espanhol Juanjo Guarnido (Granada, 1967) – ou não estivéssemos a falar do co-autor da série Blacksad, vindo do campo da animação, dos Estúdios Disney, tendo trabalhado em filmes como “O Corcunda de Notre Dame”, “Hércules” e “Tarzan”. A obra de Quevedo conta a história de Pablos, um jovem natural de Segóvia, filho de um barbeiro e ladrão e de uma curandeira ou bruxa, que se faz escudeiro de um nobre, com vários incidentes de percurso, levando-o a embarcar para as Índias Ocidentais, para refazer a vida. O dramaturgo espanhol anunciou uma sequela que nunca chegou a escrever; fizeram-no Ayrolles e Guarnido, situando a acção em Cuzco, no Peru, depois da conquista de Pizarro, derrotando o Império Inca. O Peru do ouro e da prata e do mirífico Eldorado, que oportunidades para um vigarista! Pablos vai comportar-se como esperamos, mas nem uma linha mais escreveremos a propósito. Apenas que se trata de uma obra superior no que respeita à ideia, aos recursos narrativos, à composição, ao desenho e á cor. O preço não é convidativo, mas as suas 219 páginas valem cada cêntimo.
BDTECA
ABECEDÁRIO
S, de Spirou (Rob-Vel, 1938). Jovem e voluntarioso groom do Moustic Hôtel, Spirou deu nome a uma revista que ainda hoje se publica, e com enorme qualidade. Ao contrário de Tintin, Spirou conheceu uma série de autores, todos de categoria, entre os quais se contam Jijé, Franquin, Tome & Janry ou Émile Bravo. De Spip, o inseparável esquilo de estimação, ao grande amigo Fantásio, jornalista, passando pelo Barão de Champignac ou o Marsupilami, sem esquecer os bandidos como Zantáfio e Zorglub, Spirou rivaliza com Tintin não apenas no carácter como no contributo que deu a uma aura muito própria da 9.ª Arte.
LIVROS
Tintin no País dos Sovietes, de Hergé. Edição colorida, uma opção sempre questionável, pois de alguma forma adultera o original; mas é inquestionável a qualidade do trabalho. E trata-se duma grande história. (Asa)
Dicionário Ilustrado dos Insultos do Capitão Haddock, de Albert Algoud. As injúrias de Haddock são épicas, que o digam os Dupond(t), Serafim Lampião, a Castafiore ou o próprio Professor Tournesol. Obra já com uns bons anos, conhece em boa hora uma versão portuguesa. Para quem sempre quis saber o que era um bachi-bouzouk, um ectoplasma, ou que raio quereria ele dizer com um impropério como tchouck-tchouck nougat… (Asa)