A nova vaga da pandemia


Na verdade, para defesa do Estado de Direito, é preferível para o país ter um estado de emergência decretado, do que viver num aparente estado de normalidade constitucional, mas em que os direitos constitucionais dos cidadãos não são respeitados, nem é observada a repartição de competências entre os órgãos de soberania.


O que se tem vindo a passar nas últimas semanas demonstra quão exagerado foi o optimismo manifestado pelos responsáveis políticos de que a vacinação permitiria alcançar a imunidade de grupo e assim terminar com a pandemia. Na verdade, a Europa está neste momento a atravessar uma nova vaga da covid-19, a qual circula de oriente para ocidente, estando por isso agora a chegar a Portugal. O Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC) já veio considerar a situação na Europa altamente preocupante, havendo o risco de se começar a assistir a racionamento do acesso aos cuidados intensivos nos hospitais europeus.

Perante este cenário, voltamos a assistir nos diversos países a medidas restritivas dos direitos fundamentais dos cidadãos. A Áustria decretou novo confinamento de todos os seus cidadãos e impôs a vacinação obrigatória a partir de Fevereiro. A Alemanha, que já tinha impedido o acesso dos não vacinados a qualquer estabelecimento comercial, acaba de decretar o estado de emergência e não exclui novo regresso ao confinamento.

Em Portugal a situação ainda não atingiu a gravidade dos outros países europeus, mas é manifesto que começa a justificar preocupação, até porque iremos ter a dissolução do Parlamento, sabendo-se que a esmagadora maioria das medidas que possam ser tomadas para controlar a pandemia são da sua competência, como a de decretar o teletrabalho obrigatório ou estabelecer restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É manifesto que não seria possível, sob pena de total descredibilização da classe política, adiar a data das eleições legislativas, que já foi anunciada para 30 de Janeiro. A crise política tem que ser resolvida e o país precisa de um novo Parlamento que possa aprovar rapidamente um orçamento. Apesar disso, o Presidente da República admitiu esticar a data da dissolução até 5 de Dezembro, em ordem a permitir ao Parlamento aprovar novas medidas que possam ser consideradas necessárias. Receamos, no entanto, que tal leve à aprovação de medidas precipitadas, que depois dificilmente poderão ser revertidas, uma vez que o Parlamento será dissolvido.

Mais controverso é saber da possibilidade de ser decretado novamente o estado de emergência com o Parlamento dissolvido. Embora haja quem sustente que, como o art. 172º da Constituição proíbe a dissolução do Parlamento na vigência do estado de emergência, também não seria possível dissolver o Parlamento e só depois decretar esse estado de emergência, não nos parece que a Constituição estabeleça essa proibição. Pode ocorrer uma situação de calamidade pública após a dissolução do Parlamento e aí é necessário que o estado de emergência seja decretado. Para esse efeito, refere o art. 179º, nº3, f) que é da competência da Comissão Permanente conceder essa autorização, cabendo-lhe a seguir, nos termos do art. 179º, nº4, convocar o plenário logo que possível, mesmo estando a Assembleia dissolvida.

Se for necessário estabelecer a suspensão dos direitos fundamentais dos cidadãos, é imperioso que o estado de emergência seja decretado na forma constitucional, respeitando o que determina o art. 19º da Constituição. Na verdade, para defesa do Estado de Direito, é preferível para o país ter um estado de emergência decretado, do que viver num aparente estado de normalidade constitucional, mas em que os direitos constitucionais dos cidadãos não são respeitados, nem é observada a repartição de competências entre os órgãos de soberania.

Neste âmbito, espera-se que não se volte a assistir ao estabelecimento de restrições ou mesmo suspensões dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, através de simples resoluções do Conselho de Ministros, meros regulamentos do Governo, que nem sequer são sujeitos a promulgação pelo Presidente da República. Com a dissolução do Parlamento, o país deixará de ter em funcionamento o seu principal órgão legislativo, a quem competia fiscalizar a actividade do Governo, o qual, apesar disso, se mantém na plenitude das suas funções constitucionais. Será por isso preocupante que o Governo tenha carta branca, até à eleição do novo Parlamento, para restringir os direitos dos cidadãos, quando a Constituição não lhe reconhece competência para tal. Esta nova vaga da pandemia pode ser assim altamente perigosa para o nosso Estado de Direito.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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