Chocolate, Prémios Nobel e experiências naturais


A tomada de decisões racionais, desde a escolha de um medicamento por um médico a opções de política económica por um governo, só é possível com base no conhecimento dos efeitos dessas decisões, ou seja, das relações de causa-efeito subjacentes.


Por Mário Figueiredo, Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

Descobrir relações de causa-efeito é um objectivo central em muitas áreas da ciência. Isto é verdade não só em ciências naturais (desde a física, à biologia e à investigação clínica), mas também sociais (nomeadamente a economia, a sociologia). Muitos leitores certamente já ouviram ou leram a frase “correlação não é causalidade”, isto é, o facto de duas quantidades ou ocorrências estarem correlacionadas não implica que uma cause a outra. Um exemplo pitoresco e que foi alvo de discussão é a forte correlação que existe entre o consumo de chocolate e o número de prémios Nobel (ambos per capita, por país). Embora o artigo no qual estes dados surgiram pela primeira vez avançasse a hipótese de que o consumo de chocolate pode aumentar o desempenho intelectual, essa hipótese foi (infelizmente) desmentida: é fácil perceber que estas variáveis estão correlacionadas por ambas dependerem fortemente do nível de desenvolvimento económico dos países.

O método padrão para avaliar relações de causa-efeito é conhecido como “estudo de controlo aleatório” (randomized control trial(s) – RCT), nalguns contextos conhecido também como “A/B testing”. Recentemente, os RCT tiveram grande exposição pública devido à visibilidade dos estudos de eficácia das vacinas contra a Covid-19. Estes estudos, de elevadíssimo rigor e exigência e obrigatórios para aprovação pelas autoridades sanitárias de intervenções médicas (entre as quais vacinas e medicamentos), avaliam a relação de causa-efeito entre a intervenção (por exemplo, uma vacina) e o efeito pretendido (redução de mortalidade pela doença em causa). A metodologia standard consiste em dividir aleatoriamente os participantes em dois grupos: um grupo recebe a intervenção em estudo (por exemplo, um medicamento); o outro, dito grupo de controlo, recebe uma intervenção neutra (chamada placebo, tipicamente um comprimido ou injecção semelhante ao que contém o medicamento, mas sem o referido medicamento). Num RCT correctamente executado, nem os participantes, nem os médicos e enfermeiros que administram as intervenções conhecem a constituição dos grupos, para que esse conhecimento não possa de algum modo influenciar os resultados. Finalmente, o efeito em estudo é avaliado nos dois grupos (por exemplo, a taxa de mortalidade) o que permite tirar conclusões acerca da relação de causalidade entre a intervenção e o seu efeito. A ideia chave de um RCT é que a escolha de quem recebe ou não a intervenção (a constituição dos grupos) é independente de qualquer outro factor que possa influenciar o resultado, conseguindo-se assim isolar o efeito da intervenção em estudo.

Em muitas circunstâncias, pode ser impossível realizar um RCT para avaliar um mecanismo de causa-efeito de interesse. Por exemplo, pode não ser ético (se a intervenção for considerada demasiado arriscada para os participantes), o fenómeno em estudo pode ter ocorrido no passado ou a intervenção não ser possível por motivos práticos. Estes dois últimos casos são comuns em economia e outras ciências socias; exemplos famosos são a avaliação do efeito do aumento do salário mínimo na taxa de desemprego ou do número de anos de escolaridade no nível salarial. Nestas circunstâncias, ganham especial relevância as chamadas “experiências naturais”, nas quais a constituição dos grupos não foi realizada (aleatoriamente) pelos investigadores, mas sim por algum fenómeno natural ou intervenção humana independente do mecanismo em estudo. Esta independência permite encarar os dados como se tivessem resultado de um RCT. Assim, uma experiência natural pode ser vista como um RCT que ocorreu acidentalmente/naturalmente permitindo estudar um mecanismo de causa-efeito sem que tenha sido realizada qualquer intervenção desenhada para esse fim.

Foi por contribuições para a metodologia das experiências naturais e a sua aplicação em economia (ou talvez por terem comido muito chocolate) que David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens receberam o Prémio Nobel da Economia de 2021. Para além de contribuições metodológicas, Angrist e Imbens estudaram o efeito da duração da educação no nível salarial, enquanto Card mostrou que o aumento de salário mínimo não causa necessariamente uma redução de oferta de emprego e que a imigração não aumenta o desemprego.

A tomada de decisões racionais, desde a escolha de um medicamento por um médico a opções de política económica por um governo, só é possível com base no conhecimento dos efeitos dessas decisões, ou seja, das relações de causa-efeito subjacentes. Isto dá ao estudo de experiências naturais um papel muito importante na ciência moderna, nomeadamente em economia, saúde, educação, ambiente e muitas outras áreas em que as relações de causa-efeito podem ser complexas e raramente é possível realizar RCTs. A imensa quantidade de dados hoje produzidos e armazenados nas sociedades modernas é uma mina de informação na qual podem existir inúmeras experiências naturais à espera de serem descobertas e interpretadas por investigadores do presente e do futuro. Para tal ser possível, é crucial que esses dados sejam armazenados, mantidos, organizados e disponibilizados a toda a comunidade de investigação. Em particular, a pandemia de Covid-19, com as consequentes bruscas alterações de comportamentos em quase todas as áreas de actividade e a enorme variedade de respostas dos diferentes países, pode ser uma valiosíssima fonte de experiências naturais, não só na área da saúde, como em muitas outras, como a economia, a sociologia, a educação, o ambiente, referindo as mais óbvias. Assim saibam e queiram os governos e entidades responsáveis armazenar, organizar, manter e disponibilizar todos estes dados.

 

 

Chocolate, Prémios Nobel e experiências naturais


A tomada de decisões racionais, desde a escolha de um medicamento por um médico a opções de política económica por um governo, só é possível com base no conhecimento dos efeitos dessas decisões, ou seja, das relações de causa-efeito subjacentes.


Por Mário Figueiredo, Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

Descobrir relações de causa-efeito é um objectivo central em muitas áreas da ciência. Isto é verdade não só em ciências naturais (desde a física, à biologia e à investigação clínica), mas também sociais (nomeadamente a economia, a sociologia). Muitos leitores certamente já ouviram ou leram a frase “correlação não é causalidade”, isto é, o facto de duas quantidades ou ocorrências estarem correlacionadas não implica que uma cause a outra. Um exemplo pitoresco e que foi alvo de discussão é a forte correlação que existe entre o consumo de chocolate e o número de prémios Nobel (ambos per capita, por país). Embora o artigo no qual estes dados surgiram pela primeira vez avançasse a hipótese de que o consumo de chocolate pode aumentar o desempenho intelectual, essa hipótese foi (infelizmente) desmentida: é fácil perceber que estas variáveis estão correlacionadas por ambas dependerem fortemente do nível de desenvolvimento económico dos países.

O método padrão para avaliar relações de causa-efeito é conhecido como “estudo de controlo aleatório” (randomized control trial(s) – RCT), nalguns contextos conhecido também como “A/B testing”. Recentemente, os RCT tiveram grande exposição pública devido à visibilidade dos estudos de eficácia das vacinas contra a Covid-19. Estes estudos, de elevadíssimo rigor e exigência e obrigatórios para aprovação pelas autoridades sanitárias de intervenções médicas (entre as quais vacinas e medicamentos), avaliam a relação de causa-efeito entre a intervenção (por exemplo, uma vacina) e o efeito pretendido (redução de mortalidade pela doença em causa). A metodologia standard consiste em dividir aleatoriamente os participantes em dois grupos: um grupo recebe a intervenção em estudo (por exemplo, um medicamento); o outro, dito grupo de controlo, recebe uma intervenção neutra (chamada placebo, tipicamente um comprimido ou injecção semelhante ao que contém o medicamento, mas sem o referido medicamento). Num RCT correctamente executado, nem os participantes, nem os médicos e enfermeiros que administram as intervenções conhecem a constituição dos grupos, para que esse conhecimento não possa de algum modo influenciar os resultados. Finalmente, o efeito em estudo é avaliado nos dois grupos (por exemplo, a taxa de mortalidade) o que permite tirar conclusões acerca da relação de causalidade entre a intervenção e o seu efeito. A ideia chave de um RCT é que a escolha de quem recebe ou não a intervenção (a constituição dos grupos) é independente de qualquer outro factor que possa influenciar o resultado, conseguindo-se assim isolar o efeito da intervenção em estudo.

Em muitas circunstâncias, pode ser impossível realizar um RCT para avaliar um mecanismo de causa-efeito de interesse. Por exemplo, pode não ser ético (se a intervenção for considerada demasiado arriscada para os participantes), o fenómeno em estudo pode ter ocorrido no passado ou a intervenção não ser possível por motivos práticos. Estes dois últimos casos são comuns em economia e outras ciências socias; exemplos famosos são a avaliação do efeito do aumento do salário mínimo na taxa de desemprego ou do número de anos de escolaridade no nível salarial. Nestas circunstâncias, ganham especial relevância as chamadas “experiências naturais”, nas quais a constituição dos grupos não foi realizada (aleatoriamente) pelos investigadores, mas sim por algum fenómeno natural ou intervenção humana independente do mecanismo em estudo. Esta independência permite encarar os dados como se tivessem resultado de um RCT. Assim, uma experiência natural pode ser vista como um RCT que ocorreu acidentalmente/naturalmente permitindo estudar um mecanismo de causa-efeito sem que tenha sido realizada qualquer intervenção desenhada para esse fim.

Foi por contribuições para a metodologia das experiências naturais e a sua aplicação em economia (ou talvez por terem comido muito chocolate) que David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens receberam o Prémio Nobel da Economia de 2021. Para além de contribuições metodológicas, Angrist e Imbens estudaram o efeito da duração da educação no nível salarial, enquanto Card mostrou que o aumento de salário mínimo não causa necessariamente uma redução de oferta de emprego e que a imigração não aumenta o desemprego.

A tomada de decisões racionais, desde a escolha de um medicamento por um médico a opções de política económica por um governo, só é possível com base no conhecimento dos efeitos dessas decisões, ou seja, das relações de causa-efeito subjacentes. Isto dá ao estudo de experiências naturais um papel muito importante na ciência moderna, nomeadamente em economia, saúde, educação, ambiente e muitas outras áreas em que as relações de causa-efeito podem ser complexas e raramente é possível realizar RCTs. A imensa quantidade de dados hoje produzidos e armazenados nas sociedades modernas é uma mina de informação na qual podem existir inúmeras experiências naturais à espera de serem descobertas e interpretadas por investigadores do presente e do futuro. Para tal ser possível, é crucial que esses dados sejam armazenados, mantidos, organizados e disponibilizados a toda a comunidade de investigação. Em particular, a pandemia de Covid-19, com as consequentes bruscas alterações de comportamentos em quase todas as áreas de actividade e a enorme variedade de respostas dos diferentes países, pode ser uma valiosíssima fonte de experiências naturais, não só na área da saúde, como em muitas outras, como a economia, a sociologia, a educação, o ambiente, referindo as mais óbvias. Assim saibam e queiram os governos e entidades responsáveis armazenar, organizar, manter e disponibilizar todos estes dados.